Semiótica psicanalítica e design

A subjetividade da psicanálise e a estruturação da semiótica podem ser grandes aliadas durante seus processos de design thinking.

Raissa Tonon
Itaú Design Team
10 min readMay 28, 2021

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Fotografia de duas pessoas, um homem e uma mulher, trabalhando de forma colaborativa em um mural.

Como designer, sempre senti a necessidade de tentar entender a mente humana para poder projetar melhor. Não há outra forma de dizer isso. É tão simples (e utópico) quanto isso. Entretanto, a jornada em si não foi tão simples.

Minha primeira tentativa foi vagar pelos campos da neurociência — o que se mostrou extremamente frutífero e com diversas questões aplicáveis ao nosso universo — mas não era exatamente o que eu estava procurando. Havia uma daquelas grandes questões que não saia da minha mente: como projetar considerando que cada pessoa é um ser humano único, com experiências e percepções diferentes? Trabalhando no Itaú e me deparando com uma infinidade de oportunidades, perfis de clientes e estando diante da amplitude do trabalho que a gente realiza, essa questão se tornou ainda mais relevante para mim. Foi quando decidi me especializar em semiótica psicanalítica.

Podemos dizer, de forma bem simplificada, que a semiótica é o estudo de todas as linguagens, sejam elas orais, escritas, imaginárias, faciais, ou até sonhadas (nossos sonhos também são uma forma de linguagem).

Ela estuda as formas, os tipos, os sistemas de signos e os efeitos do uso dos signos, sinais, indícios, sintomas ou símbolos. Os processos em que os signos desenvolvem o seu potencial são processos de significação, comunicação e interpretação. (SANTAELLA & NOTH, 2017, p.7)

A semiótica moderna foi fundada por Charles Sanders Peirce um filósofo, lógico, cientista, matemático e linguista americano — entre outras atribuições. Para tal, baseou-se em princípios fenomenológicos, lógicos e cognitivos. Um dos fundamentos da teoria peirciana, é que todo signo se refere a outro signo — sendo assim, ideias e pensamentos também são signos. “O fato de que toda ideia é um signo, junto ao fato de que a vida é uma série de ideias, prova que o homem é um signo” (PEIRCE, 1868, p. 5314 CP 5.314).

Isto posto, podemos também dizer que o design está profundamente ligado à comunicação e a tentativa de convergir uma ideia de forma clara para alguém — o que está intimamente conectado à processos cognitivos. Dessa forma, a ligação entre design e semiótica é clara. Mas, para compreender verdadeiramente as linguagens e como as percebemos, temos que investigar a questão mais fundo, dando espaço também para a subjetividade. Isso pode ser feito por meio dos estudos da Psicanálise.

Como afirma Oscar Cesarotto em seu texto “Psicanálise e Semiótica: uma convergência assintótica”, o desejo, patrimônio do psicanalítico, é o que a semiótica assimila, permeando as linguagens. (CESAROTTO, 2013). O que isso significa, basicamente, é que a própria linguagem é uma condição que pertence a ambos: ao inconsciente, estudado pela psicanálise e ao simbólico, da semiótica. Ambos estudos convergem lindamente, apresentando a possibilidade de uma percepção analítica, mas extremamente humana para a exploração do simbólico.

Existiria melhor maneira de resolver problemas humanos do que ter uma perspectiva verdadeiramente humana, considerando nossa subjetividade e projetando para pessoas, e não apenas para clusters? Pessoalmente, acho que não. Eu realmente acredito que a semiótica psicanalítica como uma ferramenta de design é um caminho eficaz para o design centrado no ser humano (o famoso human-centered design).

Como meta-conectar os pontos

A grande questão é: como aplicar isso de forma prática na rotina diária de trabalho? Infelizmente, a resposta não pode ser dada de forma tão direta. Não há maneira de transformar processos orgânicos e subjetivos em frameworks engessados. Mas é aí que está o pulo do gato.

Considerando a questão processual, tanto o design quanto a psicanálise buscam compreender algo e então abrir caminhos para novas estruturações. Mas o que seria mais eficaz: uma abordagem puramente subjetiva ou uma abordagem baseada em dados? Poderíamos dizer que depende das necessidades e do momento da iniciativa… Mas por que não de ambos? Afinal, essas necessidades só aparecem de fato se você aprender a ouvi-las diretamente, e toda estratégia data-driven abre caminhos para abordagens qualitativas com recorte mais específico.

Nó Borromeano de Lacan mostrando três círculos (real, simbólico e imaginário) se entrelaçando e formando o "sintoma" em seu centro.
Nó Borromeano de Lacan mostrando três círculos (real, simbólico e imaginário) se entrelaçando e formando o “sintoma” em seu centro.

Tal como elaborado originalmente por Freud e desenvolvido posteriormente por Lacan, somos apresentados pela psicanálise como triádicos: somos seres falantes, sexuados e mortais. Também vivemos em uma realidade triádica de Simbólico, Imaginário e Real que nos permite estudar a subjetividade e o mundo dos signos.

Uma tríade similar já estava em Freud (id, ego e super-ego), e Freud nunca chegou a conhecer Peirce. Aponto para este fato para evidenciar que a correlação entre Peirce e Lacan já seria possível, mesmo que Lacan não tivesse se baseado em Peirce na divisão dos seus três registros. (…) Como se sabe, para Peirce, o signo é uma relação triádica entre um primeiro, o signo, que representa, indica ou sugere um segundo, seu objeto, para um terceiro, ou seja, produz algum tipo de efeito em uma mente atual ou pontencial, que vem a ser o interpretante do signo. Tomando-se essa lógica relacional como parâmetro, tem-se que a pulsão, sob a dominância do Real, localiza-se na posição lógica do Objeto, a demanda de amor, que está sob a dominância do Imaginário, situa-se na posição do Signo, e o desejo, sob a dominância do Simbólico, situa-se na posição do Interpretante. Essas posições lógicas ajudam a compreender as intrincadas e indissolúveis interações entre os três registros lacanianos (com seus conteúdos específicos: pulsão, amor e desejo), assim como plantam esses registros no mapa lógico da estrutura semiótica. (SANTAELLA, 2003)

Conforme exposto em um grande exemplo prático, novamente, por Oscar Cesarotto, dessa vez em seu manifesto “Os Dez Cata-Ventos”, “a semiótica entende a função simbólica da internet, mas somente a psicanálise pode explicar por que os sites mais visitados são relacionado a pornografia.” (CESAROTTO, 2013)

Somos seres movidos pelo desejo e pela repetição. O tempo todo temos um desejo por tudo, essa é nossa verdadeira natureza. O desejo de deixar a fome, de dormir e então cessar o desconforto do sono, de se relacionar e, acima de tudo, o desejo de amar — e ser amado. E repetimos isso em padrões mentais infinitos. Como disse Lacan, “toda demanda é uma demanda de amor” (LACAN, 1957–1958/1999 ).

Por que nós projetamos alguma coisa? Podemos responder a essa pergunta de diversas maneiras. Para resolver um problema. Para ajudar alguém com alguma coisa. Para obter algum lucro em algo interessante. Mas qual é a real necessidade que almejamos com o design?

Nosso objetivo como designers é satisfazer desejos. Diversos desejos, que muitas vezes o usuário nem mesmo reconhece. Também almejamos uma realidade melhor, não? Todo designer, em algum momento, quer mudar o mundo para melhor. Ou, pelo menos, para algo mais palatável ou prático. Mas que realidade seria melhor? Melhor para quem? Essas questões estão relacionadas ao fato de que somos seres humanos, e de que pensamos da maneira como pensamos. A única forma de nos aproximarmos dessas verdadeiras respostas — ou novas perguntas mais perspicazes — é considerando o ser humano como o centro da nossa forma de projetar.

Só podemos fazer isso, entretanto, se entendermos como pensamos, como percebemos o mundo e o que os signos realmente significam para nós e para aqueles com quem queremos estabelecer algum tipo de comunicação. Acima de tudo, precisamos recuperar a consciência de que cada ser humano é único, de uma forma ou de outra, e que estamos projetando soluções para humanos, não para máquinas.

Isto posto, cabe dizer que aos olhos da psicanálise, a percepção sobre os seres humanos pode estar profundamente ligada à noção de metadesign pois quando você projeta para indivíduos e não para grupos, categorias ou números, você precisa se reinventar o tempo todo. Ao dizer isso, estou falando sobre se adaptar, criar novas técnicas, e não deixar sua percepção sobre algo ser restringida por chefes, ou até mesmo frameworks e técnicas de design.

Abraçando a subjetividade da própria humanidade, podemos pegar muitos caminhos durante o processo de design, e todos eles podem estar corretos ou maravilhosamente errados — mas tudo leva ao aprendizado e, portanto, a um resultado final mais coeso e embasado. Verdade seja dita, é difícil se perder completamente na tradução e fazer um péssimo trabalho se você se esforçar para realmente ouvir o seu usuário.

Se propor a ouvir abertamente como uma “ferramenta” buscando compreender camadas mais profundas do que apenas o que é dito na superfície, pode te ajudar a evoluir a sua escuta e a compreensão do que ouve, a conectar as falas dos seus usuários e a criar uma melhor compreensão do que você recebe do seu público-alvo.

A semiótica, por outro lado, nos oferece uma forma estruturada de analisarmos não só o que recebemos dos nossos usuários, mas também aquilo que mostramos a eles, de forma categórica por meio da interpretação de signos.

E como transpor essas discussões para a rotina de trabalho?

A base da psicanálise é a escuta, como uma forma de arte. Então, por que não ouvir seus usuários? Parece algo simples, ou até mesmo que estou sugerindo que faça entrevistas, mas não é bem isso. É buscar escutar não apenas sobre o que você quer perguntar a eles, não apenas sobre sua hipótese, mas em vez disso, o que eles querem dizer a você — mesmo quando ainda não sabem disso.

Associação livre
Existe, por exemplo, muita riqueza a ser interpretada num simples exercício de associação livre com o seu usuário, por mais que isso extrapole o controle que sentimos ao ter um roteiro estruturado. Por exemplo, em um exercício que chamamos de “vem na mente” reunimos alguns usuário e trouxemos palavras-chave que representavam pilares de uma iniciativa de gamification que estávamos investigando e pedimos para que nos dissessem de forma completamente livre, que palavras/itens/situações vinham a mente diante daquelas palavras.

Imagem de proposta de framework para o exercício com três árvores para associação-livre e detalhamento de como utilizar a ferramenta.

Esse exercício nos trouxe uma infinidade de insights sobre como as pessoas relacionavam gamification com colaboração e dividir algo de positivo com pessoas que gostam. Isso se ramificou em diversas hipóteses e propostas que não estavam em nosso radar anteriormente.

Dar espaço para seus usuários trazerem inputs inesperados sempre se mostra produtivo, mesmo que as descobertas sirvam para um time parceiro e não diretamente para o seu.

outras ferramentas que podem ser adaptas para este tipo de uso:
Brain Writing por Board of Inovation
Analogy Thinking por Board of Inovation

Ato falho
Outra forma de ouvir seu usuário, é prestar atenção ao que ele não diz — ou não queria ter dito. Muitas vezes em uma entrevista ou workshop, seu usuário trocará uma palavra por outra acidentalmente ou falará algo fora de contexto. Talvez ele demonstrará algum lapso de memória ou dificuldade para encontrar palavras para uma resposta. Isso pode não ser apenas um sinal de nervosismo ou timidez, mas sim um ato falho, ou seja, uma pequena amostra do que aquela pessoa pensa de verdade — mesmo quando ela não quer dizer diretamente.

Um ato falho pode parecer sem sentido ou desconexo, mas anote-o mesmo assim. Ao reassistir uma entrevista ou fazer um analise de algum workshop, você poderá perceber que aquele pequeno deslize se conecta à outras falas do usuário ao longo da conversa, ou até mesmo remete indiretamente a outros conceitos.

Por exemplo, você pode se deparar com algo muito claro, como um usuário lhe falando “isso é terrível” e logo corrigindo para “quis dizer incrível”. Sua resposta verdadeira seria a primeira, que fugiu dos filtros sociais e se mostrou à força na conversa. Ou então algo menos óbvio, como confundir o nome do seu produto com o de algum concorrente. Esses pequenos detalhes nos mostram caminhos para investigarmos mais a fundo questões que muitas vezes não estavam em nosso campo de visão.

Análise semiótica
A semiótica entra como uma ferramenta de análise que pode estar presente em diversas etapas do processo, do discovery à ideação. Focando nos exemplos trazidos anteriormente, podemos usar a semiótica como uma forma de analisarmos os signos que os usuários nos trazem em seu discurso — seja em associação livre, atos falhos ou na conversa como um todo.

Representação gráfica da estrutura do signo

A semiótica nos traz alguns prismas para analisarmos um signo. Como ícone, índice ou símbolo, diante da primeridade, secundidade ou terceridade. Essas diversas camadas e prismas nos ajudam a buscar uma compreensão real de como nossos produtos são, de fato, percebidos.

Mas os detalhes de como realizar uma análise semiótica na íntegra é outro papo. ;)

E para encerrar…

Não existe receita de bolo para a escuta, mas o importante é sempre buscarmos ouvir de fato e em profundidade o que nossos usuários têm a nos dizer — mesmo quando preciamos nos esforçar bastante para colhermos esses insights.

É válido também ressaltar que existem diversas linhas de estudo (paralelas ou distantes) à psicanálise que podem servir de base para esse tipo de discussão, tal qual os estudos junguianos. O importante é encontrar caminhos que funcionem para você e para o seu time aprimorarem a escuta e a análise qualitativa em seus processos de design.

Recomendações de leitura

  • Tríades do Design — Um Olhar Semiótico Sobre a Forma, o Significado e a Função. Frederico Braida e Vera Lúcia Nojima
  • Por que Design É Linguagem. Frederico Braida e Vera Lúcia Nojima
  • O Que é Semiotica. Lucia Santaella
  • Introdução à semiótica. Lucia Santaella e Winfried Nöth
  • Semiótica Psicanalítica: Clínicas da Cultura. Curadoria por Lucia Santaella e Fani Hisgail
  • Design, Comunicação e Semiótica. Estudo e Pesquisa das Relações Transversais. Vera Lúcia Nojima
  • Elementos de semiótica aplicados ao design. Lucy Niemeyer

Bibliografia utilizada

CESAROTTO, Oscar Psicanálise & semiótica: Uma convergência assintótica, em Semiótica Psicanalítica — Clínica da cultura — (Organizado por Lucia Santaella & Fani Hisgail) — Editora Iluminuras — São Paulo — 2013.

CESAROTTO, OscarOs Dez Cata-ventos, em Semiótica Psicanalítica — Clínica da cultura — (Organizado por Lucia Santaella & Fani Hisgail) — Editora Iluminuras — São Paulo — 2013.

LACAN, Jacques — Os seminários (diversas edições) 1957–1958/1999

SANTAELLA, Lucia & NOTH, Winfried — Introdução à Semiótica — Editora Paulus — São Paulo — 2017

SANTAELLA, Lucia — Semiótica e psicanálise: pontos de partida — Revista Psicanálise & Conexões PUCSP — São Paulo — 2003

PEIRCE, Charles — Collected Papers — 1868, CP 5.314

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Raissa Tonon
Itaú Design Team

Design leader at Itaú Bank, Semiotics and Psychoanalysis specialist, researcher. My mind is full of chaotic and pizza-related thoughts. I write that down