Vivemos uma era de caos e incertezas… O mundo atual é VUCA ou BANI?

Renata Tonezi
Itaú Design Team
Published in
11 min readDec 10, 2020

Algumas reflexões sobre esse novo contexto em constante mutação

Foto by Guillaume Bourdages on Unsplash

O ano de 2020 foi desafiador.

A perspectiva de uma pandemia é conhecida por mais de uma década. Epidemiologistas alertaram que uma pandemia que ocorre uma vez a cada cem anos poderia devastar o planeta e que mesmo as nações mais avançadas estão mal preparadas para as consequências. A própria OMS (Organização Mundial da Saúde) alertou para esse risco, assim como Bill Gates (em um Ted Talks em 2015).

Dessa forma, poderíamos ter antecipado suas consequências na economia mundial, dado o grau de conectividade do mundo em que vivemos. Pandemias e riscos climáticos compartilham dos mesmos atributos, ambos são sistêmicos — na medida em que suas manifestações diretas e seus efeitos indiretos se propagam rapidamente em um mundo interconectado.

Globalmente, estamos sentindo os impactos das mudanças provocadas pelo COVID-19 que se espalhou rapidamente. Embora alguns países tenham obtido sucesso na redução da taxa de contágio, o aumento dos casos em todo o mundo ainda demonstra ser exponencial, provocando mudanças das quais nós não estávamos preparados.

Quem poderia imaginar que estaríamos vivendo um fenômeno como esse, por tantos meses? Nota-se pelos dados de busca do Google, que em semanas, vivemos acontecimentos que levariam décadas para serem incorporados em nossas rotinas. As jornadas de compra de diferentes setores se digitalizaram nos últimos meses. E a conectividade está se estabelecendo nos hábitos, questionando o consumo, valores e o estilo de vida, o que nos levou também a dar um novo significado para o tempo e a utilizá-lo a nosso favor.

A forma como as pessoas se envolvem com as marcas também estão sendo redefinidas. Desde a forma como compramos, até o nível de segurança e vigilância em que estamos acostumados. Fomos forçados a mudar a forma que vivemos, trabalhamos e nos divertimos, nos tornando incomodamente distantes das pessoas que amamos e cada vez mais próximos da solidão. O isolamento social deixou muitas pessoas desempregadas, muitos autônomos sem renda e muitas crianças sem aulas. Muitas pessoas perderam além de seus empregos, clientes… amigos e familiares.

Isso significa reconhecer que a nossa vida mudou radicalmente, e que mesmo com vacinas promissoras a vista, o mundo caminha rumo a algo ainda desconhecido… e que pode levar meses ou anos para voltarmos a ter a sensação de liberdade. Há suspeitas que Covid-19 pode ser mais do que uma pandemia, e sim uma sindemia (reflete a ideia de que o vírus não atua sozinho, mas sim compactuando com outras doenças. E que a desigualdade social tem papel-chave nisso, ou seja, o contexto social importa), segundo Richard Horton, editor-chefe da revista The Lancet (publicação científica).

Dentre as muitas lições difíceis e dolorosas, estamos tendo que aprender a lidar com incertezas e com o inesperado. A pandemia nos levou a enfrentar esse desafio confuso e interconectado, mas acelerou além da digitalização, a colaboração remota, a experimentação, a telemedicina (chegando em locais onde pessoas não tinham acesso), testes de PCR…). Um grande aprendizado é que a corrida por uma vacina é a prova de que podemos superar desafios dessa magnitude.

Imaginem aproveitar essa mentalidade pandêmica e aplicar a outros problemas de escala global, como questões das mudanças climáticas, pobreza, desemprego…Ou mesmo as doenças infecciosas, como HIV, malária ou dengue, que atualmente não têm vacina?

E para um novo mundo, uma nova linguagem: do VUCA ao BANI.

Recentemente li um artigo "o mundo não é mais VUCA, agora o mundo é BANI", e alguns amigos perguntaram minha opinião sobre o novo termo (o que me motivou a escrever esse post com minhas reflexões pessoais), pois investigo cenários futuros e tendências, e lidero uma iniciativa que investiga Futuros e se chama *muVUCA (inspirada no mundo VUCA), que tem como intenção ajudar a organização que faço parte, a entender os impactos das novas tecnologias e as mudanças da sociedade e do mercado.

A ideia de que vivemos em um mundo cada vez mais difícil de compreender está implícita no acrônimo *VUCA: Volatille (Volátil), Uncertainly (Incerto), Complex (Complexo) e Ambigue (Ambiguo), e vem sendo usada há décadas.

O conceito surgiu no ambiente militar no US Army War College no final dos anos 80. E no início dos anos 2000 começou a ser incorporado no vocabulário corporativo. Esse conceito ilustra o tipo de mundo que emergiu de um cenário pós-Guerra Fria cada vez mais interligado e digital. O VUCA é uma das maneiras de descrever a dinâmica das mudanças do mundo.

Eu particularmente vejo muitas oportunidades no uso da estrutura VUCA.

Volatille (Volátil): Mudanças instáveis e inesperadas que se apresentam e geram grandes impactos e podem não ter duração definida, ou novas tecnologias gerando disrupção em mercados tradicionais. O importante é ter agilidade e flexibilidade para se preparar/adaptar para lidar com mudanças cada vez mais inesperadas, exercitando a habilidade de orquestrar diferentes cenários simultaneamente, ao invés de investir muito tempo em um único cenário.

Uncertainly (Incerto): Situações imprevistas (pode até ser o surgimento de um produto/serviço) com efeitos até então pouco imagináveis, trazendo questionamentos sobre seus possíveis impactos, provocando novas tendências de comportamento, além de riscos e incertezas sobre como o mercado irá reagir. A provocação aqui é investir em pesquisa/descoberta contínua para explorar sinais de mudança, e interpretar os sinais para fornecer base de informação para direcionar a estratégia.

Complex (Complexo): Situações complexas (pense em uma necessidade de rápida adaptação para uma mudança cultural, tributária ou regulatória), que são realidade em todas as empresas. Reflete inúmeros fatores, componentes e principalmente a necessidade de lidar com a emergência das redes que quando interconectadas causam instabilidade e falta de uma visão tradicionalmente linear. Em contextos complexos, quanto mais ampla a visão, maior a probabilidade de tomar melhores decisões. O foco aqui é trabalhar com um time de profissionais de diferentes áreas do conhecimento (multidisciplinares), a fim de possibilitar maior abrangência nas discussões e criar melhores alternativas de soluções, do ponto de vista da inovação e da entrega de valor.

Ambigue (Ambiguo): Remete ao desafio de lidar com o desconhecido, assim como a falta de clareza e concretude (por exemplo a necessidade de expandir o negócio para um mercado/nicho emergente), afetando fortemente as decisões racionais, pois os impactos de uma transformação disruptiva não podem ser analisados com base no histórico e em experiências anteriores. Tomar decisões num contexto ambíguo remete a correr riscos. Uma forma de lidar com esse aspecto é promover uma cultura de experimentação e testes de hipóteses. É importante estar aberto a cometer erros e a promover uma cultura de compartilhamento dos aprendizados.

O VUCA provou ser uma estrutura útil para expressar o quão volátil, incerto, complexo e ambíguo é o ambiente de negócios e o mundo que vivemos. No entanto, alguns especialistas sugerem que enfrentamos um caos ainda maior do que o VUCA em muitas esferas da vida.

Voltando ao mundo BANI, após compreender melhor o significado do termo, gostaria de compartilhar minhas reflexões.

Em 2018, Jamais Cascio, renomado futurista do Institute for The Future (IFTF), apresentou em um evento um novo termo propondo a substituição ao VUCA, o BANI: Brittle (Frágil), Anxious (Ansioso), Nonlinear (Não linear) e Incomprehensible (Incompreensível). Em seu artigo Facing the Age of the Chaos, ele sugere que para um novo paradigma, precisamos de uma nova terminologia, uma nova linguagem. BANI, também é um acrônimo:

Brittle (Frágil): Muitos dos sistemas sociais, econômicos e tecnológicos com os quais interagimos são mais frágeis do que se parecem. Então, quando eles falham, eles nos pegam desprevenidos. Poucos teriam visto a democracia como um sistema frágil, até percebermos o quanto a democracia funcional depende da responsabilização por falsidades intencionais (exemplo: fake news). Se algo é frágil, requer capacidade e resiliência. A prioridade deve ser a construção de sistemas resilientes ou ‘anti-frágeis’.

Anxious (Ansioso): Enfrentamos novas situações até então desconhecidas, que surpreendem e deixam as pessoas desorientadas e angustiadas com o futuro distópico que alguns traçam ou com as teorias da conspiração que surgem, e trazem um sentimento de beco sem saída. Sabemos que está cada vez mais difícil distinguir entre a verdade e as notícias falsas, mas ainda assim, as pessoas estão mais viciadas do que nunca nas mídias e nas redes sociais. Se as pessoas estão ansiosas, elas se sentirão impotentes e incapazes de tomar boas decisões. É necessário que as pessoas e organizações busquem ter mais empatia e atenção plena a esses sentimentos.

Nonlinear (Não linear) Em um mundo não linear, causa e efeito são aparentemente eventos desconectados ou aleatórios, quando a realidade é que isso não é verdade. Pequenas decisões resultam em consequências enormes, boas ou más. Estamos no meio de uma crise de não linearidade, onde a escala e o escopo desta pandemia vão muito além da nossa experiência cotidiana. O cérebro humano não evoluiu para pensar em uma escala exponencial. Nesse contexto de não linearidade, exige a necessidade de entender profundamente os contextos e a busca constante pela adaptabilidade.

Incomprehensible (Incompreensível): A incompreensibilidade é efeito da infoxicação, causada pela sobrecarga de informações, trazendo mais confusão e tornando difícil separar o sinal do ruído. É da natureza humana, buscar explicações para as situações e fenômenos que observamos ao nosso redor, porém as respostas encontradas não estão mais fazendo sentido. O nível de incompreensibilidade parece estar intrínseca ao tipo de sistemas que estamos construindo, como por exemplo, machine learning (aprendizado de máquina) e IA (inteligência artificial). À medida que IAs evoluem, torna-se mais necessária a discussão sobre o uso ético da IA, dos dados coletados, assim como o desenvolvimento de códigos de programação que não sejam racistas, sexistas ou tendenciosos. Se algo é incompreensível, exige mais transparência e intuição.

“Não é simples instabilidade, é uma realidade que parece resistir ativamente aos esforços para entender o que está acontecendo. Este momento atual de caos político, desastres climáticos e pandemia global — e muito mais — demonstra vividamente a necessidade de uma forma de dar sentido ao mundo, a necessidade de um novo método ou ferramenta para ver as formas desta era de caos.” Jamais Cascio

Segundo Jamais Cascio, o ambiente VUCA mudou substancialmente desde que foi cunhado, e BANI é uma estrutura que oferece novos insights sobre o estranho momento histórico que vivemos. A complexidade, por exemplo, parece estar evoluindo para o caos. Embora traga um ponto de vista bastante distópico, e até apocalíptico, ele também sugere opções viáveis ​​para respondermos aos desafios atuais.

Foto by Greg Rakozy on Unsplash

E aí, o mundo é VUCA ou BANI?

A questão é que o coronavírus virou nosso mundo de cabeça para baixo. Vivemos essa nova realidade, provocada por diversas questões sistêmicas que reforçam a urgência de refletirmos sobre como iremos reagir a tudo isso que está acontecendo. Para as empresas, está claro que humanizar os negócios, ou seja, colocar as pessoas em primeiro lugar, é essencial para se manter relevante, além da busca pela adaptação rápida a esse novo contexto. Além disso há claramente uma grande reorganização em curso.

A revista Time dedicou uma edição inteira para promover uma iniciativa chamada “The Great Reset”. De acordo com o Fórum Econômico Mundial (WEF), o principal defensor da iniciativa, 'The Great Reset' busca abordar uma necessidade urgente dos países cooperarem na gestão simultânea das consequências diretas da crise COVID-19, com um meta expandida de melhorar 'o estado do mundo'.

“A crise COVID-19 mostrou-nos que os nossos antigos sistemas não estão mais aptos para o século XXI. Ele revelou a falta fundamental de coesão social, justiça, inclusão e igualdade. Agora é o momento histórico, a hora, não apenas de lutar contra o vírus, mas de [re]moldar o sistema … para a era pós COVID … Em suma, precisamos de uma grande restauração (Great Reset).”

Ambas as estruturas (VUCA ou BANI), descrevem elementos do novo mundo que estamos moldando.

Cascio levanta a necessidade de substituição do modelo VUCA pelo BANI com objetivo de nos ajudar compreendermos melhor o sentido das coisas, assim como aceitar os novos tempos e orientar as nossas ações em um mundo caótico em andamento.

Que tal se pudéssemos considerar de forma complementar ambos os conceitos?

Essas estruturas nos fornecem caminhos e podem muito bem ser mais reações do que soluções. Elas não irão responder como será o futuro, mas podem nos ajudar a entender as possíveis variáveis do que pode acontecer em um mundo cada vez mais complexo e hiperconectado, onde pequenos eventos em um lugar remoto podem acabar causando catástrofes de dimensões inimagináveis.

O mundo não deixou de ser volátil, incerto, complexo e ambíguo (VUCA). Ele contínua sendo tudo isso, e ainda mais. Ele traz consigo questões de fragilidade, ansiedade, a não linearidade dos fenômenos, e a falta de compreensão do que está por vir.

Toda a adaptação da humanidade traz em si mudanças. Acredito que ninguém é especialista o suficiente para prever o futuro ou saber como o mundo irá sair da pandemia, mas precisamos estar atentos para os sinais e as mudanças radicais que estão em curso em diversos setores, para moldarmos o futuro (um mundo melhor do que o de hoje).

Segundo o empreendedor Peter Diamondis, “somos pensadores lineares vivendo em um mundo exponencial ”. Ou seja, os seres humanos pensam linearmente. Esse é o nosso viés cognitivo que nos impede de compreender o que está acontecendo diante de mudanças tão radicais em diversos setores. Estamos tentando pensar em soluções para problemas que estão se disseminando de forma exponencial em um mundo global.

Como paradigma, o VUCA traz como provocação que é impossível afirmar qualquer coisa sobre o dia de amanhã em função da complexidade, ambiguidade, volatilidade e incerteza da realidade que vivemos. Em um mundo BANI, temos uma nova estrutura para a pensarmos em novas abordagens. Essas são reações e não soluções para qualquer problema.

Então eu diria que é o mundo é VUCA e é BANI. E que o “novo normal” que buscamos já chegou: ele é uma ruptura contínua. Se pudermos tornar compreensíveis os processos disruptivos, traduzindo seus sinais por meio de estruturas como essas, talvez possamos nos preparar melhor para os riscos, mudanças e implicações que ainda estão por vir. A única certeza que podemos ter é que a incerteza veio para ficar, e que o momento é de investir em pesquisa e inovação, assim como testar e experimentar novos serviços, novas ofertas de produtos, novos meios de comunicação e linguagens, pois as relações também mudaram, provavelmente para sempre.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman sempre buscou entender os questões sobre as relações humanas e suas transformações. Suas críticas à sociedade moderna popularizou-se através do conceito da ‘modernidade líquida’. Ele dizia que “a mudança é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza”. Penso que podemos dizer o mesmo sobre o mundo atual.

Foto by Jannik Selz on Unsplash

O futuro demanda solidariedade e o auto aprimoramento

Costumo dizer que o futuro não é um prazo, é sim um mindset. Acredito que a habilidade de enxergar futuros nos permite enxergar possibilidades. Precisamos questionar a ideia de um único futuro, se quisermos habitar um lugar onde a diversidade e os valores humanos sejam centro de tudo. Futuros contemplam novos olhares e novas perspectivas. Mudanças tecnológicas, ambientais e políticas provavelmente irão afetar os negócios e as estruturas sociais.

Como podemos nos preparar para um mundo diferente, até mesmo inimaginável, que chegará mais rápido do que o projetado?

As mudanças podem também ser uma oportunidade para que a sociedade e as empresas possam refletir para serem melhores, e mais conscientes de suas responsabilidades sociais e ambientais. Sobre essa mudança da sociedade que tanto buscamos, Daisaku Ikeda (humanista e líder budista) escreveu no jornal Brasil Seikyo:

“Numa obra escrita em seus últimos anos de vida, Tolstoi declarou: ‘A tarefa na vida de cada pessoa é tornar-se um indivíduo cada vez melhor”. Em essência, isso é revolução humana. Sem isso, qualquer revolução social seria incompleta.’ De acordo com Tolstoi: ‘Se reconhecer que a sociedade está organizada de forma ruim, e você gostaria de corrigi-la, deve compreender que existe apenas uma forma de a sociedade melhorar. Todos devem se aprimorar. Para aprimorar cada pessoa, tem-se apenas um método sob seu controle — você próprio é que deve se tornar uma pessoa melhor’. Em outras palavras, cada um de nós deve começar com a própria revolução humana. É essencial dar esse primeiro e corajoso passo para se tornar uma pessoa melhor. A partir daí, iniciará sem falta uma poderosa transformação rumo a uma nova história”.

Enfim, nos vemos em um outro post, em breve.
Obrigada por ter lido até aqui. Fica o convite para você compartilhar suas percepções e opiniões.

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Renata Tonezi
Itaú Design Team

Foco em pesquisa e estratégia, Itaú. Apaixonada por entender as pessoas e movimentos do mundo. Entusiasta futurista e designer comportamental. Eterna aprendiz ❤