Gamificação sem pontos, badges e leaderboards

Kiko Herrschaft
Itera Ideia
Published in
9 min readJul 11, 2017

O lado sutil da gamificação

Pontos, badges e leaderboards (PBL) são a forma mais comum de gamificação em projetos digitais. Apesar de haver vários cases de sucesso por aí, temos que nos atentar ao fato de que a gamificação é muito mais ampla que implementar um punhado de técnicas pré-listadas.

Gamificação diz respeito à utilização de elementos e técnicas de jogos para auxiliar em contextos alheios aos jogos.

Jogos são por natureza atraentes e estimulantes. Isso pode ser explicado pelos elementos de jogos, que são alguns fatores responsáveis pela nossa imersão e engajamento, como por exemplo a competitividade, a busca por recompensas ou a superação de desafios.

A gamificação vai tentar utilizar esses mesmos conceitos para tornar tarefas chatas e difíceis mais atraentes e cativantes. O que geralmente vemos em gamificação são propostas bem óbvias e explícitas de utilização desses elementos de jogos, o que pode resultar em interações exageradas e artificiais. Mas o que acontece se partirmos dos mesmos elementos, porém agora com uma visão mais abrangente e os utilizarmos de uma forma mais sutil, orgânica e simbiótica com a natureza da tarefa / projeto?

Hoje quero compartilhar com você uma visão menos óbvia da gamificação: aplicações sutis dos principais conceitos, onde quase não se nota a similaridade com jogos.

Feedbacks rápidos e desenvolvimento

De acordo com a Teoria de Auto-Determinação, o ser humano tem uma necessidade psicológica por competência: sentir que está evoluindo, melhorando, se realizando. Queremos crescer e melhorar, por isso estudamos, trabalhamos, cuidamos da saúde e praticamos esportes, por exemplo. Mas o mundo é um lugar chato: quando lemos um livro, não sabemos o quanto ficamos mais inteligentes. Quando entregamos um trabalho, não sabemos o quanto crescemos como profissionais no processo.

Uma das coisas mais interessantes dos jogos é que eles criam a sensação de que estamos toda hora crescendo o nos tornando melhores. Os feedbacks rápidos são os responsáveis por isso: eles nos dizem instantaneamente qual é o resultado das nossas ações, para que possamos aprender muito rápido se estamos fazendo algo certo e balizar nossas ações para atingir os resultados desejados.

Nos RPGs, a cada monstro derrotado, uma barrinha de XP aumenta, indicando que agora você está mais forte e mais próximo do seu objetivo (upar ou completar uma quest). Se você matou 3 monstros e seu HP caiu para os 30%, você já entende que é melhor encontrar outro local para treinar. No Just Dance, a cada movimento realizado você tem um feedback instantâneo (Perfect, Good, Ok, Fail) que te permite alterar seu jeito de jogar e ir melhorando sua performance no decorrer da música.

Existem inúmeros exemplos de aplicação do conceito de feedback e desenvolvimento em projetos de design. Um exemplo clássico disso são as barras de progresso: você completou uma tarefa, aumenta a barra em 20%; ou avança o stepper para a próxima etapa; ou assinala um item da checklist. Tem os contadores de XP: você vai usando o sistema e acumulando pontos que te fazem subir de nível, ser mais influente e respeitado (vide StackOverflow). Abstraindo um pouco, temos os feedbacks de validação de formulários, corretores ortográficos ou trackers de tempo gasto. Todos eles nos devolvem feedbacks instantâneos para que possamos direcionar nossas ações e evoluir.

Um exemplo de gamificação sutil e muito comum nas nossas vidas é o sistema de navegação por GPS do Waze, Google Maps e aplicativos do tipo. Vejam só. Eu tenho um objetivo, que é chegar no endereço selecionado. Eu tenho um caminho composto de vários pequenos desafios de virar à esquerda, virar à direita ou seguir reto que eu preciso realizar no timing certo. A cada virada de rua, a interface me comunica que eu virei corretamente e que eu estou mais próximo do meu objetivo. Se eu dirigir (jogar) direitinho, o tempo de chegada diminui e eu alcanço o meu objetivo mais rápido. Talvez não pensemos no Waze como um exemplo de gamificação, mas com certeza ele usa elementos comuns de jogos para nos motivar e concentrar na atividade.

Propriedade e posse

Quando você sente que possui algo, você se importa mais com isso e quer protegê-lo, ampliá-lo. Sempre lembro do Sim City, onde você é o prefeito-deus de uma cidade, controlando toda a sua construção e acompanhando o seu desenvolvimento.

A aplicação óbvia disso é um sistema de pontos, pois eles partem do princípio que os usuários vão querer coletar e multiplicar suas riquezas. Essa é uma mecânica que pode ser muito legal ou muito bosta, dependendo de como esses pontos se relacionam ao contexto do projeto e às expectativas dos usuários. Um sistema que acumula pontos ou moedas aleatoriamente sem isso se traduzir em nenhum valor para os usuários está fadado ao fracasso lento e doloroso.

Outro exemplo simples é a criação de personas e avatares. Você constrói um personagem e quer tomar conta desse personagem e vê-lo prosperar. O Habitica é um gerenciador de tarefas que lembra o Trello, mas nele você cria um personagem e toda hora que você completa uma tarefa, esse boneco ganha itens e fica mais forte. E você quer continuar realizando tarefas para o boneco evoluir e prosperar.

Existe também o exemplo da customização, que conversa diretamente com este conceito. A partir do momento em que eu percebo que consigo destacar um pedaço do sistema para chamar de meu, quero cuidar dele e fazê-lo prosperar. Isso é muito comum em marketplaces como o Enjoei ou em perfis de qualquer rede social por aí.

Liberdade para experimentar e errar

Essa é uma das coisas mágicas dos videojogos. Você sempre pode falhar e tentar de novo. Ou tentar completar o jogo por um caminho diferente, jogando diferente. Isso nos permite encontrar soluções melhores, porque testamos várias alternativas com um nível baixo de comprometimento e podemos errar muito cedo (lembrou do "falhe cedo para acertar cedo", do Tim Brown?).

Alguns bons exemplos são a possibilidade de trocar a cor do tênis dentro de um e-commerce para saber se o modelo vai combinar. Ou fazer o preview de como o seu perfil ficaria se você quisesse trocar o fundo por um degradê arco-íris, sem ter de aplicar a alteração de fato. Existem alguns exemplos em realidade aumentada, onde você pode testar como a mesa que você quer comprar ficaria na sua sala de estar. Tem apps que te dão um arquivo de exemplo pra você bagunçar e aprender como o sistema funciona. Indo mais longe ainda, não faltam por aí aplicações que te permitem testar gratuitamente e sem compromisso o sistema, até que você descubra se o app é o ideal para você ou não.

Tudo se baseia na liberdade para experimentar e errar, porque o nível de comprometimento (risco) é baixo ou nenhum.

Imprevisibilidade e curiosidade

O ser humano é um bicho curioso. Justamente por você não saber o que vai acontecer, você não para de pensar naquilo! Talvez seja esse o motivo de cassinos serem tão famosos, mesmo que todos saibam que eles são projetados para você perder e se viciar. Lembremos do Facebook: quem nunca se prendeu meia hora scrollando a timeline simplesmente pela curiosidade incontrolável de saber se tem algo novo para ser visto?

Vejamos o Kickstarter. Você entra no site sabendo que vai ser surpreendido por tecnologias que nunca pensou na vida, e mesmo ao apoiar algum projeto, você mantém a curiosidade sobre se aquela ideia vai atingir a meta ou se eles vão conseguir de fato desenvolver o que estão prometendo.

Speed Camera Lottery: se você passa com o carro na velocidade permitida, entra numa loteria. Se for sorteado, ganha uma parcela das multas arrecadadas de quem passou acima da velocidade :)

Como outro exemplo temos o Pinterest, que é hoje é a fonte primária de inspiração para muita gente. Ele é projetado para surpreender, criar relação entre contextos diferentes (misturando paisagens, memes e comidas, por exemplo) e celebrar a descoberta. Ele tem até um recurso de procurar referências relacionadas a uma imagem específica, ou procurar mais referências baseadas em um elemento recortado de uma imagem.

E aquela lista no Spotify do que os seus amigos estão escutando no momento? Pra mim, é uma diversão ficar acompanhando aquilo; às vezes descubro umas pérolas, às vezes só dou risada!

Influência social e relacionamento

Essa é clássica, e tem muito a ver com o elemento "Vínculo", da Teoria de Auto-Determinação. Geralmente isso é trabalhado no contexto de competição, onde os players / usuários são incentivados a superar e passar o rolo compressor por cima dos seus amigos. Duolingo, Swarm, Fitbit são alguns exemplos neste sentido. Porém, a competição é apenas uma das várias dimensões sociais. O relacionamento construído entre os indivíduos, a colaboração, o sentimento de fazer parte de uma comunidade são exemplos de algumas dessas dimensões.

O Github é uma plataforma onde desenvolvedores contribuem em projetos de software de código-aberto (open-source). Eles não são remunerados para programar, mas qualquer um pode participar do desenvolvimento de qualquer projeto, e isso permite criar novos contatos com outros desenvolvedores, aprender com eles e contribuir com a causa do grupo. Além disso, o Github tem indicadores de contribuição de cada usuário, proporcionando maior autoridade para desenvolvedores mais experientes e engajados. No StackOverflow, o formato é semelhante: é um sistema de reputação onde o foco não é a competição, mas sim a colaboração.

Escassez e impaciência

Você deseja algo só porque parece especial ou raro, e faz você se sentir único por possuí-lo. É o desejo que motiva os players a baterem um recorde, possuir um item raro, desbloquear uma parte do jogo. Isso é comum no mundo offline nas áreas VIP's, nos cartões Black Tops Platinum, nas camisetas autografadas.

Uma técnica muito comum é usar o senso de urgência para fazer um dado parecer mais exclusivo do que ele é de fato. É dizer que só tem mais 3 produtos em estoque, que a promoção das passagens nesse preço só dura 20min, que só tem mais 1 semana para reservar o quarto, ou que o item vai ser leiloado para o usuário fulano por X dinheiros a menos que você faça um outro lance…

Existem serviços onde o usuário pode se cadastrar como um beta tester ou pode realizar uma doação e ser um usuário diferenciado (estrelinha). O que importa é estimular a sensação de que o usuário é de alguma forma especial, ou que ele correr para conseguir algo desejado.

Concluindo

Você deve ter percebido que vários exemplos aparentam não ter nada a ver com jogos ou gamificação. Mas temos que lembrar que esses são alguns dos elementos básicos que tornam os jogos tão cativantes e atraentes. E esse é o nosso objetivo com a gamificação no final das contas: buscar formas de estimular o engajamento, motivar os usuários, atrair sua atenção. Por que nos fecharmos nos estereótipos de jogos / gamificação, quando podemos partir dos conceitos básicos e construir interações muito mais sutis, naturais e que possuem o mesmo tipo de impacto no engajamento?

Busquei nesse breve texto quebrar um pouco o estereótipo das técnicas de gamificação para começarmos a pensar mais em oportunidades de engajamento e motivação do que em mecânicas de jogos propriamente ditas. A gamificação — uso de elementos de jogos — pode ser muito mais rica e intuitiva se aceitarmos olhar os jogos de uma forma muito mais sensível e curiosa.

E você, já tinha parado pra pensar em gamificação desse jeito? Concorda? Discorda? Como acha que isso pode ser utilizado melhor nos seus projetos atuais? Deixa aí nos comentários!

Falamos sobre gamificação no nosso podcast dessa semana e ficou bem legal! Se ainda não ouviu, vem dar um play no episódio! 🎧

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