Máscaras de proteção— Uma história de Design, cultura e tendências

Felipe Assis
IxDA Belo Horizonte

--

Disclaimer:

Esse texto tenta abordar e exemplificar o design de produtos como algo social e, até certo ponto, vernacular. Apesar de ser possível comparar a situação descrita aqui com frameworks e buzzwords atuais, tentei ser mais democrático e deixar a intertextualidade a cargo de quem lê.

No final do artigo você encontra todas as fontes utilizadas e uma playlist de músicas orientais para ouvir enquanto lê.

Espero que goste. :)

Máscaras! Máscaras por todo o lugar.

Se existe uma representação visual que marca e que provavelmente sempre será utilizada como símbolo e priori para a pandemia causada pela COVID-19, definitivamente é a máscara facial.

Desde o inicio de 2020 o mundo adentrou o que se tornou o novo status quo para movimentação urbana.

As máscaras sumiram das lojas, tomaram conta das ruas, da mídia, das mentes das pessoas e até mesmo das leis e regulamentos relacionados à locomoção por lugares públicos por todo o mundo.

O motivo, para quem possa duvidar, se mostra claro nos resultados do google trends e nos vídeos do youtube.

Pesquisas pelo termo COVID-19 (Google trends)
Pesquisas pelo termo Face Mask (Google trends)

São páginas e mais páginas de tutoriais, comparativos e demonstrações sobre os modelos e sobre a eficácia que eles tem quanto ao que diz respeito a proteção contra o vírus.

Resultados de pesquisa no Youtube

Apesar de toda essa popularização que aconteceu sobre a utilização do produto, para muitos sua popularidade, utilização, estética e até simbologia quanto e prevenção de pandemias não são de hoje.

A mascara e o oriente

Fonte: Pandemic Manual

Os entusiastas de cultura oriental, consumidores de conteúdo que vem de lá ou os que já se aventuraram pelo lado leste do globo com certeza sabem que a popularidade do produto, apesar de não tão grande quanto a atual, não vem de hoje.

Em países como China e Japão, antes do período de escassez, era possível encontrar máscaras de diversas cores, estampas, materiais e até mesmo com aroma sem nem precisar procurar muito.

O mundo da moda daquela parte do globo também bebeu muito dessa fonte de inspiração durante os anos. Marcas de luxo ou de streewear lançam diferentes modelos de mascaras de pano há anos.

Coisa que só foi acontecer pelos lados de cá em grande escala agora.

Esquerda: Máscara desenvolvida pela Xiaomi | Direita: Máscara da marca de roupas BAPE

A máscara acima custa em torno de 200 dólares e vem sendo produzida pela A Bathing Ape (BAPE) há mais ou menos 10 anos. A Xiaomi, fabricante de smartphones e afins, tem um modelo de máscara “high tech” que é vendido desde 2018 e boatos dizem que no momento eles trabalham em uma nova versão da máscara que consegue se auto-limpar.

Sempre existiu uma curiosidade por parte dos ocidentais em saber o motivo das máscaras serem populares no oriente. Como pessoa que se encaixa no espectro do fã de cultura oriental, comigo também não era diferente.

A explosão de máscaras em todo lugar me deixou curioso e por isso comecei a pesquisar sobre a história do produto.

O que pouca gente sabe, muito provavelmente devido ao nosso modelo de história eurocentrista, é que não só as máscaras tem um histórico de popularidade como o design original das máscaras que utilizamos hoje foi criado na China e foi essencial no combate de uma epidemia que aconteceu por lá 100 anos atrás.

Foto dos trabalhadores de saúde durante a praga da Manchúria | Autor: Hsu Chung-mao

Uma luta de máscaras pré-Coronavirus

Em 1910 a China foi acometida pela “Peste da Manchúria” que atingiu escalas nunca vistas antes pelo povo chinês. A epidemia, que chegou perto de se tornar uma pandemia, tinha características parecidas com as do COVID-19 como a febre alta e tosse. A doença se espalhou em uma enorme velocidade pelo território russo e chinês, que na época compunham parte da Manchúria.

A praga continuou se espalhando, sem que fossem identificados todos os canais de contágio até que o Doutor Wu Lien-Teh, médico nascido no Malaia e educado na Inglaterra, foi colocado como responsável do caso.

Dr Wu Lien-teh | Foto: Hsu Chung-mao

Quando o doutor chega com sua equipe para trabalhar no problema a peste já havia se espalhado por toda a Manchúria, que era conectada por várias ferrovias incluindo a Transiberiana.

Até o início das pesquisas do médico acreditava-se que a doença, assim como a peste bubônica, não era transmitida pelo ar. Aquele era um cenário ainda não presenciado.

O processo de pesquisa de Wu Lien-teh

Durante os estágios iniciais da pesquisa a comunidade médica acreditava que a doença, assim como outras conhecidas, era apenas transmitidas por animais, como roedores e insetos. As medidas necessárias para exterminar esse animais das cidades já estavam sendo tomadas, mas a doença continuava a se espalhar entre a população.

Foi quando, além de observar os dados que provinham do estudo do virus em si, o dr. Wu Lien-teh começou a estudar o padrão de comportamento das pessoas e a forma com a qual novos pacientes começavam a apresentar os sintomas da doença.

A partir do trabalho de observação somado as autópsias performadas nas vítimas, Wu determinou que ao contrário do que pensavam as pessoas e a comunidade médica, a doença não era transmitida por animais e sim pelo ar a partir do contato com alguém infectado.

Foto: University of Cambridge/Centre for Research in the Arts, Humanities and Social Sciences (CRASSH, The University of Cambridge)/The University of Hong Kong Libraries

Ao declarar sua descoberta, o médico e questionado por boa parte da comunidade que não dava crédito a declaração pelo simples fato de que quem estava fazendo a afirmação era uma médico chinês.

Wu foi confrontado por um médico francês que era famoso na região. O médico disse não se podia esperar muito de um chinês e para provar que Wu Lieh-teh estava errado, foi atender pacientes com a doença sem usar nenhuma proteção para as vias orais e nasais.

O médico francês morreu 2 dias depois do ato contaminado pela doença.

Do protótipo à N95

Em 1910 as máscaras cirúrgicas já existiam e eram utilizadas mundialmente, porém o tecido e modelo de corte das mesmas não era suficiente para filtrar gotículas pequenas presentes no ar. Essas máscaras tinham o objetivo proteger o usuário de contato com resíduos maiores durante uma cirurgia.

Para aumentar a proteção e conseguir bloquear as pequenas partículas que poderiam carregar o virus, o médico criou um design com um corte que se adaptava melhor ao rosto. Essa base era feita de várias camadas de gaze e algodão que, depois de posicionadas, eram envolvidas em várias camadas de pano para manter tudo preso ao rosto e dar mais proteção.

Após obter sucesso com seu modelo de máscara outros médicos da região começaram a experimentar e criar diversos modelos diferentes. Segundo registros, alguns pouco práticos e diferentes que poderiam ser comparados com “capuz com óculos” ou máscaras de mergulho.

Apesar dos esforços de outros médicos e pesquisadores, a máscara de Wu foi a mais popular e bem sucedida porque conseguia comprovadamente bloquear a bactéria causadora da doença e por ter um design simples, fácil de ser reproduzido e feito com materiais baratos, até mesmo em casa.

Após o sucesso e popularidade internacional, o design foi adaptado para ser produzido industrialmente se tornando um sucesso de mercado.

Posteriormente, junto com um molde de sutiã, serviu como parte da inspiração para o design das máscaras N95 que foram criadas para uso industrial por Sara Little Turnbull que prestava consultoria para a 3M durante os anos 50 e estudando os cenários de atuação da empresa, viu a oportunidade de unir a tecnologia do material com soluções de máscaras para setores industriais, de construção e mineração que até o momento só contavam com soluções pouco práticas e extremamente incômodas para proteger seus trabalhadores de inalarem resíduos.

Sara Little Turnbull ao centro | Fonte: Design Museum Everywhere
Sketch de máscara N95 e modelo de sutiã 3M criado por Sara Little Turnbull | Fonte: Fast Company

Anos depois, devido ao atual contexto, as máscaras fizeram seu caminho para dentro dos hospitais como a opção de melhor relação praticidade, eficiência e custo para evitar o contágio da COVID-19.

Posicionamento de produto e aceitação social

A máscara de proteção foi usada em larga escala pela população chinesa durante e praga e despertou grande interesse na imprensa internacional, principalmente pelo impacto visual causado pela fotografia das pessoas se locomovendo pela cidade utilizando a nova “peça de roupa”.

A eficácia e popularidade fez com que o uso de máscaras fosse socialmente aceito e que fosse visto, não como um sinal de doença, mas como um sinal de prevenção.

Mais tarde, durante a gripe espanhola, as máscaras voltaram a tomar as ruas, dessa vez em mais lugares do que apenas na China, com o governo japonês publicando o Manual da Pandemia com várias ilustrações recomendando o uso de máscaras para evitar o contágio.

Apesar de nunca ter alcançado a popularidade que é hoje, a experiência positiva com o uso do produto e da segurança passada pelo mesmo fizeram com que ele se encaixasse bem na cultura e no status quo do lugar.

Com o passar do tempo o produto, mesmo mantendo sua função primária, foi ressignificado e utilizado por outros motivos como a estética e até por timidez de descrição.

Daqui para o futuro

Acredito que contar histórias de design e de como um bom design pode, de fato, modificar o mundo ao nosso redor ajuda a mostrar como olhar para o passado, entender o presente e projetar o futuro.

Já estava tudo lá! A pesquisa, a observação, o mvp, o protótipo, a curva de aceitação…

Não acho que o mundo ocidental vá abrir mão do uso de máscara em sua história futura e, talvez, se não tivéssemos uma visão tão eurocentrista da história poderíamos estar projetando futuros melhores e mais plurais, sem precisar passar por muitas coisas pela “primeira vez”

E você? Se vê entrando no ónibus ou no metrô sem máscara daqui pra frente?

Eu poderia fazer várias comparações com nossos frameworks modernos, how to’s e palavras grandes mas, como disse lá no início, essa relação você consegue fazer sozinho. 😉

Obrigado e fique em casa se puder ❤️

Para escutar: https://open.spotify.com/playlist/5GUMdZ8frMRZdJlD7BBTbq?si=OaDZ5pKBQ_mcmi8Ge9-Tgw

Fontes:

http://www.spoon-tamago.com/2020/04/25/japan-spanish-flu-pandemic-manual/

https://www.fastcompany.com/90479846/the-untold-origin-story-of-the-n95-mask

https://www.thinkchina.sg/photo-story-manchurian-plague-outbreak-and-malayan-doctor-wu-lien-teh

https://open.spotify.com/episode/6hgIuBNXNVBOQOH8iLHQRz?si=AY5IwZ8nTFWql0mlaacDTQ

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/04/19/em-1911-outra-epidemia-varreu-a-china-naquela-epoca-o-mundo-se-uniu

https://designmuseumfoundation.org/ask-why/

--

--

Felipe Assis
IxDA Belo Horizonte

Product and UX designer at Ci&T. Writes about design, culture and life. IG: felipeisassis