O Brasil de Eckhout e Frans Post

Jefferson Ricardo
5 min readSep 13, 2020
Uma Paisagem Brasileira (1650). Foto: MET Musuem Collection

O ano era 1630 e a Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais fundava no Nordeste brasileiro a Nieuw Holland (Nova Holanda). Para governar a nova colônia é escolhido o conde João Maurício de Nassau, que trouxe para a capital colonial (Recife) tudo o que a América nunca havia recebido.

Durante o período de domínio holandês Recife se tornou a joia do Novo Mundo, de longe era a cidade mais próxima do modelo urbanístico europeu. Contava com palácios, pontes, jardins, sobrados, observatórios, entre outras coisas únicas para o continente americano no período. Também durante a colonização neerlandesa foi permitida a liberdade de culto (algo proibido pelos portugueses que eram oficialmente católicos), permitindo a construção de igrejas protestantes e a primeira sinagoga das Américas.

Mas muito além de avanços urbanísticos e sociais, o conde Maurício de Nassau também trouxe consigo vários intelectuais e artistas. Entre estes estavam Frans Post e Albert Eckhout, pintores responsáveis por retratar a Nieuw Holland.

Os primeiros a pintar a América

Olinda (Frans Post — 1650/55). Foto: Wikimedia Commons (Domínio Público)

Apesar de anos de exploração portuguesa, existiam poucas representações visuais da colônia. Muito provavelmente devido ao fato de os portugueses serem católicos e Roma desincentivar a pintura e representação de temas profanos. Essa falta de imagens das terras americanas só acabou com a chegada dos holandeses ao Nordeste: Frans Post foi o primeiro pintor a pintar panoramas na América, já Eckhout foi o responsável por pintar o primeiro retrato etnográfico da colônia.

Porém temos que ressaltar que ambos pintavam a mando da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais, ou seja, seus registros eram de importância para a República Holandesa. Em especial as pinturas e gravuras de Post que retratavam as vilas e regiões dominadas, servindo assim de maneira para conhecer os domínios da Companhia das Índias Ocidentais.

Retrato fiel?

Apesar de Post e Eckhout serem considerados os primeiros a retratar a América, muito se questiona sobre que América eles pintaram. Afinal não se pode retirar eles do contextos nos quais estavam inseridos. Eles eram europeus que vieram retratar uma colônia a mando de uma metrópole europeia, isso já define muito da visão deles sobre o território ao qual eles iam pintar.

O Rio São Francisco (Frans Post — 1635). Foto: Wikimedia Commons (Domínio Público)

No imaginário europeu a América era vista dentro de uma dualidade: o paraíso natural intocado (o Éden) ou o território desconhecido habitado por seres desprovidos de vergonha ou moral (o Inferno). Mas independente com qual visão o europeu compactuava, o Novo Mundo sempre seria tido como algo exótico.

A idealização de um Brasil

Uma diferença óbvia da realidade brasileira e da suposta realidade pintada por Post e Eckhout é a luz. As pinturas de ambos artistas retratam um céu muito mais sombrio que o céu ensolarado dos trópicos. Consequentemente as cores dos seres, vegetais e paisagens retratadas se mostram bem menos vívidas. Eles importam sua visão de mundo europeia para retratar a colônia.

Porém, as diferenças das obras com a realidade vão muito além de a utilização de uma paleta de cores menos dolorida. Tanto Eckhout em sua série de retratos etnográficos, quanto Post em seus panoramas retratam a população negra (naquele período escravizada) de maneira bem distante da realidade.

Mulher Africana com Criança (Albert Eckhout — 1614). Foto: Wikimedia Commons (Domínio Público)

Por exemplo, na tela A Mulher Negra, a mulher retratada conta com brincos de pérola, além braceletes e colares. Uma realidade bem diferente da vivenciada por esta parcela da população durante o período. Uma forma que muitos especialistas consideram que os europeus usaram para esconder a barbárie que foi a escravidão nas Américas.

O imaginário de uma superioridade étnica

Além de retratar uma realidade distinta da verdadeira, as obras de Eckhout (especificamente) retratam um ideal de superioridade étnica. Se prestarmos a atenção nas telas perceberemos mensagens subliminares. Por exemplo a representação dos índios tapuias e tupi. Ambos eram aliados dos holandeses durante o período da Nieuw Holland, porém foram retratados de maneira diferente. Enquanto que os tapuias foram retratados como o “exótico selvagem”, os tupis foram retratados de maneira a representar uma certa civilidade.

Mulher Tapuia (Albert Eckhout — 1641). Foto: Wikimedia Commons (Domínio Público)

Na tela Mulher Tapuia, a índia é retratada carregando pés humanos em uma espécie de bolsa. Além de segurar com uma de suas mãos uma mão humana decepada. Os Tapuias tinham costume de praticar o canibalismo quando alguém querido morria, ou seja, eles consumiam os corpos mortos de seus entes. A mulher aparece completamente despida e cercada por natureza, uma clara representação do que seria para os europeus um “selvagem”.

Mulher Tupi (Albert Eckhout — 1641). Foto: Wikimedia Commons (Domínio Público)

Já na tela Mulher Tupi, a índia é retratada carregando sua criança no colo e um baú com várias ferramentas dentro sobre a cabeça, além de uma combuca em um dos braços. Analisando a tela já podemos perceber certas diferenças, a mais evidente é a vestimenta. A índia tupi aparece apenas com os seios à mostra, já que veste uma saia branca. O ambiente retratado também é diferente, ao seu lado vemos uma bananeira (planta asiática introduzida pelos colonizadores europeus). Já ao fundo vemos uma propriedade, com sua plantação e uma casa. Assim a mulher tupi representa uma imagem de “selvagem socializado”.

O Brasil na Europa

Uma curiosidade sobre o trabalho artístico de Frans Post e Eckhout é que assim que os portugueses conquistaram novamente o controle do Nordeste, os holandeses partiram e levaram com eles maior parte das obras. Durante muito tempo as obras foram dadas e recebidas como presentes entre membros da alta nobreza europeia. Atualmente poucas peças se encontram em solo brasileiro, estando a maioria em exposições de museus europeus.

O legado

Apesar de todas as problemáticas já citadas anteriormente, as obras de Post e Eckhout continuam sendo revisitadas seja por historiadores ou por alunos do ensino médio. O fato de os artistas estarem associados ao Brasil Holandês, período único na história colonial brasileira, acaba por auxiliar e muito na manutenção do interesse perante a obra dos mesmos.

O primeiro retrato do que viria a ser o Brasil e do que seria sua identidade reverbera até hoje. Infelizmente a romantização (presente nas obras) das dores sofridas pela população indígena e negra ao longo dos séculos em nosso país também vigora. Cabe a nós analisarmos conscientemente qual a nossa identidade enquanto país, aceitando e não romantizando os episódios perversos pelos quais passamos.

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Jefferson Ricardo

Jornalista | Trabalho no @jc_pe | Trabalhei na @folhape e no @tracklist