Reflexo

introspectivo e profundo

Eduardo Papke Rocha
mar da vida
Published in
4 min readJan 19, 2014

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O que esperar de um corriqueiro café da manhã? Uma fina camada derretida de manteiga no pão, café estrondosamente delicioso, habitual preguiça matinal. Nada além do trivial. Porém, a inquietude eclodiu em paralelo com a estranha sensação de estar sendo observado. A intuição de não estar só era quase palpável.

O espirito desbravador o forçou a vasculhar, de maneira cautelosa, algo ou alguém, até então, oculto.

- Opa! — disse, de sobressalto, após deparar-se com um rosto — co-como, o que você faz aqui?
- Não se faça de sonso, sabe quem sou. Conhecemo-nos há muito tempo – disse sem pestanejar, com voz suave, mas o bastante para se impor e paradoxalmente serena para não o assustar o rosto estranhamente familiar.
- Suas feições não me são estranhas. Esse tom de voz, nada mal – a curiosidade o fustigava, seria um velho colega? Amigo de infância? Familiar distante? Como entrou na casa? Eram questionamentos que fazia a si mesmo.
- Engraçado não me reconhecer – respondeu, abrindo um sorriso de canto.
- Oh não! Espere, espere um momento… – ficou perplexo, as palavras não passavam da garganta, sua pele passou de um bronze caribenho a palidez cadavérica, sensação de um buraco negro abrindo sob seus pés.

Neste exato momento, um turbilhão passou a contaminar seu cérebro. Pensamentos, suposições, teorias. Charlie estava ficando louco?

- Estamos progredindo. O primeiro passo é aceitar. – Respondeu o estranho e apavorantes rosto familiar.
- Como se fosse simples… — murmurou Charlie.
- Eu escutei, Charlie.
- Como você sabe meu nome?! — indagou perplexo.
- Sei muitas coisas sobre você…
- Então devemos dispensar apresentações? Todavia, este é meu primeiro dialogo introspectivo. – Charlie ironicamente rebateu em voz alta, de certo modo, embasbacado pela situação.
- Engraçadinho…
- Engraçadinho? Encontre uma razão razoável para esta proza?!
- Acredite, sou eu! Não temos tempo para discutir o que é plausível ou não. Estou contando os dias, semanas, meses, para nosso encontro, você não cumpre com suas obrigações – respondeu ríspido.
- Você é meu reflexo? – perguntou perplexo e sem compreender a situação.
- Não! Eu sou você.

Abismado. Charlie estava falando consigo mesmo e estranhamente desconfortável com tal situação. Não se tratavam de reflexões, mas sim, de um esquisito dialogo. Ele olhou para o espelho e como se surgisse de dentro do seu corpo, uma fumaça negra neblinou a visão refletida que tinha de seu rosto.

- Impossível! – negou sem convicção alguma.
- Não tenho tempo para brincadeiras, encare a realidade, ao menos uma vez na vida! – respondeu pesadamente seu “eu”.
- Como não o reconheci antes? – a ficha não caiu, Charlie estava incrédulo.
- Charlie, você não me surpreenderia se topasse consigo mesmo e não se reconhecesse. Ops! De fato, isto esta acontecendo. – ironicamente seu “eu” respondeu.

Estranhamente, Charlie estava conhecendo uma nova faceta de si próprio. Ou seria um estranho sonho?

- Sabe… Não tenho conversas desta espécie, trata-se de uma novidade – rebateu.
- Normal. Esperava esta atitude.
- Normal? Como posso estar conversando com meu reflexo? Onde se encontra a senhora coerência? Vamos bater na sua porta e perguntar quem esta com a razão – os ânimos se exaltaram, Charlie não aceitava a situação.
- Charlie. A culpa desta situação estar ocorrendo é sua…
- Agora a culpa é minha? Oh, não, não! Espero que neste devaneio alguém possa vir-me beliscar – interrompeu com aspereza.
- Não me interrompa. Lembre-se, eu sou você. Nossa conversa só existe pelo fato de você não me conhecer ou se conhecer– acalmou os ânimos o outro eu de Charlie.
- Como não me reconhecer? – de súbito questionou sem compreender.
- Ora ora, Charlie. Você não tem sido você. Parece-me obvio. Tu estas em falta conosco e com todos ao teu redor. Precisamos reverter, antes que seja tarde demais…
- Tarde demais? Ou… – atordoado e sem prumo Charlie estaqueou e não compreendera o momento, por mais incompreensível que seja confabular com seu reflexo.
- Charlie, você terá que desvendar a espessa e imunda nuvem que nos encobre, não posso ajudar, lembre-se, sou apenas seu reflexo. Mas compreenda: a resposta esta em você, mergulhe dentro de si próprio e reconheça lá em seu âmago as suas clarezas e as suas escuridões. – adotando feição e tom sóbrio, o reflexo recordou seu pai, quando lhe dera conselhos.

Extasiado frente a seu peculiar e singular reflexo, Charlie não percebeu que as areias do tempo esvaiam-se dentre a fina silhueta da ampulheta.

Charlie tentou balbuciar qualquer palavra, mas sua boca movia-se sem emitir som algum. Subitamente o quarto começou a distorcer. As vividas cores davam lugar a borrões enegrecidos. A confusão chegara a sua percepção. Inexplicavelmente não sentia o chão sob seus pés. A sensação era sublime, única. Um turbilhão de sentimentos, percepções e imagens deformadas plasticamente. Novamente Charlie executou os músculos de fala, sem sucesso. Em meio a desordem mental, Charlie observou que algo lhe fitava na obscuridade da sala, não te todo reconhecível, mas algo instigava Charlie que se tratava de seu alterego. Apenas sorriu, e enquanto fechava os olhos podia jurar que ele também. De súbito os sentidos de Charlie anuviaram…

O ultimo grão havia tocado o fundo da ampulheta. Seu companheiro havia desaparecido ao alvorecer.

E lá estava Charlie. Trancafiado entre quatro paredes, brancas, essencialmente brancas. Porta, piso, paredes almofadados. Nada de janelas, apenas uma luz sobre sua cabeça, suspensa. Onde se encontrava o espelho? O que aconteceu com seu reflexo? Perguntas sem respostas. Charlie estava sob amarras. Para ser mais especifico, uma camisa de força.

Quarto 719. Paciente: Charlie Gatz. Patologia: Transtorno dissociativo de identidade.

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Eduardo Papke Rocha
mar da vida

Mistura de mágica com alguns fragmentos da realidade! @rochaedu