Da fluidez dos tempos

Ocupação de prédio do Ministério da Cultura evidencia “relação indissociável” entre política e cultura

Janelas do Olhar
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6 min readJul 18, 2016

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Por Anita Prado, Breno Crispino, Bruna de Lara, Hellen Guimarães e Paulo Henrique Assad

Ocupação do Palácio Capanema, sede do Ministério da Cultura no Rio de Janeiro | Foto: Breno Crispino

Os alemães têm uma palavra para descrever o amontoado de crenças e significações de uma determinada sociedade sobre seu tempo e espaço. Zeitgeist, literalmente o espírito do tempo, pode ser entendido como espírito de uma época. O termo jamais deve ser lido de forma simplista: todo tempo tem uma multiplicidade e uma fluidez que são representados em sua totalidade no Zeitgeist, e talvez na cultura ele encontre sua incorporação mais concreta.

Assim, como apontou Henry Miller em A Hora dos Assassinos, não é de se estranhar que artistas e filósofos europeus como Rimbaud, Nietzsche, Wagner e Van Gogh tenham, cada um a seu modo, refletido em suas obras o pessimismo e a desordem de uma Europa à beira do colapso no fim do século XIX. Numa era de desencantamento e de crescimento vertiginoso do positivismo, o mal-estar na sociedade gritava e era traduzido por artistas descontentes com o estabelecido. Sua arte era ao mesmo tempo uma representação e um questionamento do Zeitgeist, esse espírito do tempo tão múltiplo e contraditório quanto a sociedade que o significa. No Brasil do século XXI, na disputa pela cultura evidenciada pela extinção e ocupação do Ministério, não se vive tempos menos turbulentos.

Para além das crises institucional e econômica, o país, seu entendimento e sua interpretação do mundo enquanto nação estão em disputa e, com eles, seu próprio Zeitgeist. Grosso modo, as narrativas que tentam explicar nosso tempo podem ser identificadas em dois projetos políticos: o primeiro, alinhado a uma concepção neoliberal, é inaugurado junto à redemocratização e retorna com o processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff. O segundo, embora plural, encontra unidade justamente na contraposição ao primeiro e em algumas pautas sociais, como o direito à cidade e ao campo, a defesa da expressão de si e da troca com o outro e, segundo a pesquisadora de Comunicação e Cultura da UFRJ, Liv Sovik, a ocupação do espaço pelos corpos, ao invés do alto grau de ocupação destes em um cotidiano que os sufoca: “Há uma relação indissociável entre política e cultura”, afirma ela.

Foto: Breno Crispino

Faz sentido, então, que de tais nortes comuns derive o conceito de “cultura” que começou a ser usado pelo Governo Federal a partir de 2003. Passou a ser compreendida pelos poderes oficiais como algo vivo e fluido, que perpassa todas as esferas da sociedade, em vez de algo restrito aos grandes salões de teatro, auditórios e museus. Diante da perspectiva de retorno a esse segundo entendimento, com a instalação do governo interino de Michel Temer e a subsequente extinção do Ministério da Cultura, artistas e produtores culturais de todo o país organizaram uma série de ocupações nos prédios administrativos do falecido ministério. A pasta, por sua vez, se tornou uma secretaria do novo Ministério da Educação, comandado por Mendonça Filho, para quem um ministério exclusivo para a Cultura sequer é necessário por “não garantir fundamental e naturalmente recursos que possam ser aplicados na área”.

Pressionado pelas críticas e pela repercussão negativa em relação à fala do ministro, Temer recuou. O movimento de oposição que se formara, entretanto, não se contentaria apenas com o retorno do MinC. Para os produtores de cultura contrários ao impeachment, que consideram o novo ministério tão ilegítimo quanto o governo que lhe deu origem, a pauta principal é o “Fora, Temer”. Pouco menos de uma semana depois da posse do peemedebista, no Festival de Cannes, a equipe do filme Aquarius verbalizou essa insatisfação da classe artística em um protesto de repercussão internacional. Contrariado, o recém-empossado ministro da Cultura Marcelo Calero classificou a manifestação como um ato “de uma irresponsabilidade infantil”.

“Estão comprometendo [a imagem do país] em nome de uma tese política, e isso é ruim. Eu acho até um pouco totalitário, porque você quer pretender que aquela sua visão específica realmente cobre a imagem de um país inteiro”, declarou Calero. O conflito coloca em evidência o debate sobre a legitimidade do próprio ministério perante a classe. Entoado cotidianamente pelos membros das ocupações, o grito “o MinC é nosso” revela a divergência entre governo e ocupantes na forma de encarar o espaço público e a intenção dos descontentes diante dessa cisão: o de não desocupar os prédios até que se sintam, de fato, representados pelo Ministério e o governo.

No centro do Rio de Janeiro, o Palácio Capanema ocupado ilustra essa disputa. Uma das primeiras construções modernistas do país e sede do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) e da Fundação Nacional da Artes (Funarte), o Capanema simboliza uma grandiosidade arquitetônica e cultural. Contudo, até poucas semanas atrás, vivia invariavelmente às moscas. Agora, barracas de camping tomam conta do mezanino, abrigando cerca de 60 ocupantes e dividindo espaço com dezenas de visitantes e atividades variadas, que vão desde rodas de capoeira e oficinas de estêncil até shows de grandes nomes nacionais, como Caetano Veloso e Lenine.

Concerto pela Democracia | Foto: Breno Crispino

Chefe da Representação Regional do Rio de Janeiro e do Espírito Santo no MinC e professor de Comunicação da PUC-Rio e da UERJ, Adair Rocha lembra das inúmeras vezes que pediu a taxistas para que o levassem ao Palácio Capanema, apenas para ser encarado por rostos hesitantes: quase nenhum conhecia o prédio. “É com a ocupação que o prédio está recebendo mais pessoas, possibilitando mais circulação e troca. Agora as pessoas estão indo lá visitar, participar dos eventos”, conta o professor.

Para Adair, quanto mais se reduz o acesso, mais se restringe o significado da coisa pública. “Se o prédio é público, é de todos”, diz ele. Ao ilustrar a mudança de concepção em relação ao que é público, a ocupação do Capanema pretende transcender o âmbito da cultura e se estender também às políticas de outros setores, demarcando sua posição contrária à noção de Estado que o novo governo defende. “Nós não vamos conseguir sustentar o nível de direitos que a Constituição determina. Quanto mais gente puder ter planos, melhor, porque vai ter atendimento patrocinado por eles mesmos, o que alivia o custo do governo em sustentar essa questão”, afirmou o engenheiro Ricardo Barros, o primeiro Ministro da Saúde não médico em 13 anos, sobre redimensionar o SUS.

O professor reforça que o significado do Brasil está, de fato, em disputa. Para ele, isso faz parte do jogo democrático, um processo sempre inconcluso, mas cuja construção, ainda assim, “é o que há de mais revolucionário hoje”. Liv Sovik, por sua vez, questiona a real importância dos rituais democráticos quando mais de 60% da população parece ignorá-los. Para ela, aqueles que se sentem representados pelo governo interino têm uma concepção de sociedade clara: “É a meta irreal de uma sociedade em que a riqueza abunda e dane-se quem não ficar rico”, constata, fazendo uma longa pausa. “O mais incrível é como as coisas não são estáveis, como são reversíveis”, conclui, reflexiva.

Este é precisamente o conceito de Zeitgeist: fluido e múltiplo. Ele se molda ao sabor dos anseios, sem jamais ter forma definida. Então, talvez não surpreenda que a permanência no poder de determinado projeto político por 13 anos não venha a assegurar a continuidade de suas ideias na nação, embora aparentemente consolidadas. Os significados estão sempre em disputa.

O tempo parece não ter dono.

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