O mito de David Bowie

Como David Bowie ultrapassou as convenções artísticas e sociais, adiantou o futuro e se tornou atemporal

Janelas do Olhar
Janelas do Olhar
7 min readJul 18, 2016

--

por Ana Rosa Alves

O mito de David Bowie | Foto: Masayoshi Sukita/Japan Times

Um dos primeiros mitos de David Bowie foi Ziggy Stardust, um rockstar marciano em encarnação humana. Um messias enviado pelo homem das estrelas que trazia a salvação para uma Terra com os dias contados. Era esguio, bissexual e tinha cabelos cor de fogo. Cantava para uma juventude deslocada e estranha que não se encaixava em lugar algum, dizia que não estavam sozinhos. Morreu graças aos hedonismos do rock ’n roll, pelas mãos dos mesmos fãs que tentava salvar. Seu alter ego humano, David Bowie, quase teve o mesmo fim: só sobreviveu porque soube se reinventar.

Bowie foi tudo e todos: ultrapassou as barreiras do gênero e da sexualidade, criou suas próprias personas, não se limitou a nada. Misturava rock, pop, jazz e punk num som plástico e único que falava sobretudo de ser diferente. E foi diferente durante toda a sua vida. Sua arte foi a rebeldia, a vanguarda, a mudança e o futuro.

David Bowie inovou como uma tentativa de se destacar. No início de sua carreira, tinha uma pegada puxada para o folk. Faltava, contudo, a poesia de Bob Dylan e o ativismo de Crosby, Stills e Nash. O máximo que conseguiu foi um quinto lugar nas paradas britânicas com Space Oddity, uma canção sobre um astronauta que se perde para além da Lua.

A virada veio em cinco de julho de 1972, quando Ziggy e sua banda, “as aranhas de Marte”, subiram no palco pela primeira vez. Era uma visão excêntrica, extraterrestre, que conquistou quem não se sentia mais representado pela violência dos Rolling Stones ou pelos Beatles. O sonho do rock alucinógeno havia, afinal, ido embora com os anos 1960. Os marcianos falavam de sexo, de drogas e de política. Tocavam para os gays, para os não-binários, para quem, assim como ele, não se encaixava.

A figura de Bowie, por toda a sua carreira, transbordou as determinações sociais de gênero e seus estereótipos. Foi andrógino ao posar de vestido na capa de The Man Who Sold the World (1971). Usou cabelos compridos, maquiagem e roupas consideradas femininas. Assumia publicamente que mantinha relações com homens e mulheres. Tudo na década de 1970, em um Estados Unidos que acabava de legalizar a homossexualidade e em uma sociedade em que era impensável não pertencer a um gênero único.

A não conformidade se refletia em suas músicas. Depois de Ziggy, Bowie se mudou para Berlim, onde dividia quarto com Iggy Pop, precursor do proto-punk e de quase tudo de chocante que o mundo do rock já viu. Juntos, tentavam se livrar da cocaína e produziam arte. Bowie compôs e produziu várias obras punks para Pop enquanto lançava a trilogia Berlim, considerada um dos pontos altos de sua carreira. Misturou eletrônica, pop, rock, new wave e world music em melodias limpas e minimalistas que ainda são avant-garde quase 40 anos após seu lançamento.

David Bowie e Iggy Pop, Hulton Archive | Foto: Getty Images

E não foi só no punk que o trabalho de Bowie teve papel seminal. Colaborou com Lou Reed, um dos pais do underground, e fez duetos com Cher, Mick Jagger e Queen. É difícil achar algum cantor famoso atual, de Marilyn Manson a Madonna, que não seja assumidamente inspirado pela música e pelas performances do camaleão do rock. Chegou até a compor uma canção para o filme dos Anjinhos, popular desenho animado da Nickelodeon.

Bowie enveredou também pelo cinema, em papéis tão opostos que variaram de Pôncio Pilatos (A Última Tentação de Cristo, 1988) a Andy Warhol (Basquiat, 1996). O mais famoso, contudo, foi Jareth, o rei Goblin de Labirinto, musical de fantasia que ganhou status cult.

Sua carreira solo continuou paralelamente. O sucesso comercial e de crítica não foi mais o mesmo desde Scary Monster and Super Creeps (1980), álbum com uma pegada mais pop e fortes influências japonesas, mas Bowie continuou a ser autêntico. Puxou inspirações na música eletrônica, no neoclassicismo, no romantismo e até no jazz. Tudo isso até 2006.

Em 2004, Bowie sofreu um infarto durante um show na Alemanha. Recuperou-se rapidamente. Até que dois anos depois, sem qualquer tipo de anúncio prévio, fez sua última apresentação pública: um dueto com Alicia Keys em uma gala de caridade. Virou, do dia para a noite, um rockstar aposentado. Trocou as drogas por um personal trainer e as turnês por manhãs na escola de sua filha menor, Lexi. Tornou-se mais um anônimo em Nova Iorque, com dedicação quase exclusiva para seus filhos e sua esposa, a top model somali Iman. Essa mudança só aumentou a sua lenda. A estrela hedonista, revolucionária e vanguardista que cansou da fama e decidiu “ser normal”. Parece que fugir do olho do furacão só aumentou sua potência.

Até que em seu aniversário de 66 anos, dia 8 de janeiro de 2013, surgiu no site oficial do cantor o clipe de Where Are We Now?, sua primeira música inédita em dez anos. Sem qualquer fanfarra ou aviso prévio, lançou um álbum novo que havia gravado em segredo. The Next Day foi seu disco mais aclamado em duas décadas e um dos lançamentos mais comentados do ano. Nele, o cantor volta à Berlim, à loucura e à religião.

Logo após seu renascimento artístico, entretanto, Bowie adoeceu. Foi diagnosticado com câncer, mas só os mais próximos dele sabiam. Apesar disso, voltou aos estúdios, onde gravava entre uma sessão de quimioterapia e outra. Seu último trabalho, Blackstar, foi relançado em seu aniversário de 69 anos. Dois dias depois, 10 de janeiro, Bowie voltou para as estrelas.

Sua morte parou o mundo por alguns instantes. Ninguém falava de outra coisa. Quase imediatamente, seus álbuns voltaram às paradas e as buscas por explicações começaram. E Bowie havia se preparado para que houvesse material mais do que suficiente para isso.

Seu último single foi Lazarus. Na tradição católica, Santo Lázaro foi um exemplo da força da fé: sua crença fez com que Jesus o ressuscitasse. Bowie canta de uma maca, com seus olhos vendados e uma camisa de força. Diz que está no paraíso e que vai finalmente ser livre. Talvez não tenha voltado à vida como o santo cristão, mas sua obra ganhou um destaque ainda maior. Blackstar foi seu único álbum a atingir o topo das paradas americanas.

Sua carreira começou e terminou na lenda. Passou de um Ziggy que se autodestruiu antes de salvar a humanidade para um Lázaro que se vê, finalmente, feliz no paraíso. Mitos não pertencem ao tempo dos homens e não respondem às relações causais da sociedade humana. Bowie foi um mito. Um mito para quem não cabia nos moldes e não se sentia representado por ninguém. Sua arte permitiu que muitos virassem, encarassem o sufoco e se tornassem homens e mulheres diferentes E isso, por si só, lhe garante a eternidade.

Precisamos falar sobre estupro e fascismo

É comum que esqueçam os pecados de uma pessoa quando ela morre, ainda mais quando a figura em questão é David Bowie. Contudo, três episódios em particular de sua vida não podem passar despercebidos.

No início dos anos 1970, Bowie vivia em Los Angeles, Califórnia, onde a idade de consentimento sexual era — e ainda é — 18 anos. Apesar disso, o cantor mantinha relações sexuais com Lori Mattix, uma adolescente de 15 anos. Décadas depois, em uma entrevista ao site Thrillist, ela olha para a experiência positivamente e questiona: “quem não gostaria de perder a virgindade com David Bowie?”. Ainda assim, o que aconteceu é caracterizado como estupro de menor. Bowie, um rockstar de vinte e poucos anos, tinha um enorme poder de dominação sobre a adolescente — e dominação é diferente de consentimento. Ele não foi o único: Iggy Pop, Marvin Gaye e Elvis Presley são alguns dos nomes que cometeram o mesmo tipo de crime.

Em 1987, Bowie foi acusado de estuprar Wanda Nichols, de 30 anos, após um show em Dallas, Texas. Ele, que chamou as acusações de ridículas, foi inocentado pelo júri por falta de provas. Culpado ou não, a verdade é que as denúncias falsas de estupro correspondem a um percentual mínimo — pesquisas norte-americanas estimam que de 92 a 98% das denúncias sejam verdadeiras — e muitos homens, principalmente os famosos, saem impunes.

Outro episódio obscuro da carreira de David Bowie foram suas ligações com o fascismo, em 1976. De acordo com David Buckley, seu biógrafo mais importante, Bowie foi detido pela alfândega na fronteira da Rússia com a Polônia carregando materiais nazistas. No mesmo ano, em entrevista para a Playboy, ele disse que “acreditava com veemência no fascismo” e que “Adolf Hitler foi um dos primeiros rockstars”. A gota d’água foi quando o fotografaram realizando um gesto que pode ser interpretado como a saudação nazista. Ele jurou que estava apenas acenando.

Foto: Getty Images

Posteriormente, Bowie se desculpou, retirou tudo o que disse e afirmou que as acusações, com exceção do aceno, eram verdadeiras. Em entrevista à edição de setembro de 1980 da revista NME, disse que estava, em 1976, no pior ano de sua vida, profundamente envolvido pela mitologia que o nazismo carrega e por Rei Arthur. Ele afirmou ainda que estava emocionalmente exausto e que seu consumo de cocaína atingia as alturas.

--

--