Polifonias do amanhã

O amanhã é uma pauta recorrente nas canções e ultrapassa quaisquer limites de tempo e espaço definidos

Janelas do Olhar
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8 min readJul 18, 2016

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Por Andre Klojda, Ana Marques, Anna Carolina Castro e Helena Marques

Chico Buarque de Hollanda | Foto: Evandro Teixeira

O desejo do homem pelo conhecimento do futuro é tão antigo quanto a própria história da Humanidade. Filósofos como Platão, Aristóteles, Euclides e outros, desenvolveram métodos puramente dedutivos na busca do poder de predição. Segundo estudos psicológicos, o desejo do ser humano de prever o futuro está ligado à insegurança, visto que nos sentimos impotentes em relação a algumas situações da vida como o amor e a morte. A música é uma das formas mais genuínas de expressar criatividade, sentimentos, inspirações e divagações. Não ao acaso, o futuro e os anseios para o amanhã são temas recorrentes em canções.

A prosa e a poesia no amanhã cheio esperanças do maior eu-lírico feminino brasileiro

A música “Apesar de você” de Chico Buarque, lançada em 1970, fala da esperança para um futuro diferente durante os anos da ditadura militar no Brasil. Ela foi escrita logo depois o autor voltar do autoexílio e perceber que pouca coisa mudara no país. A canção conseguiu passar pela censura por parecer falar de um casal, quando na realidade, retratava a ideia de um amanhã que superasse a situação do momento.

A resistência na música de Chico Buarque tomou as ruas | Foto: Autor desconhecido

No início dos anos 70, foi introduzida a censura prévia em jornais, livros e outros meios de comunicação. Qualquer publicação, programa de rádio ou televisão tinha que ser submetido aos censores do governo antes de serem levados ao público. Era justificada pelo regime militar como uma forma de manter a moral e os bons costumes.

A canção traz detalhes das vontades dos artistas da época, aqui representados por Chico Buarque, que brigavam pela liberdade criativa em um país onde a expressão artística era reprimida. É uma das mais conhecidas canções sobre repressão, chegando a ser usada como música de protesto e tornando-se um hino da época do AI-5.

“Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia

Eu pergunto a você

Onde vai se esconder

Da enorme euforia

Como vai proibir

Quando o galo insistir

Em cantar

Água nova brotando

E a gente se amando

Sem parar”

“Apesar de você”, assim como outras composições da época, utiliza-se de metáforas e situações cotidianas para abordar o seu real significado. Por exemplo, nos trechos: “quando o galo insistir em cantar?” e “água nova brotando”. O presidente Emilio Garrastazu Médici aparece na canção como a pessoa autoritária que não permite o desenrolar dos acontecimentos de forma natural. A democracia é apresentada como poesia e jardins floridos, que iriam acontecer mesmo sem a vontade de “você”.

A esperança é o sentimento predominante na canção, o amanhã diferente. O futuro como motor de mudança é suscitado e reafirmado durante várias vezes pelo eu-lírico da canção. Chico Buarque, em mais uma oportunidade, se reafirma enquanto compositor e intérprete de clássicos atemporais da música popular brasileira.

Anos 70, contracultura, movimento hippie e a incerteza do futuro

A trajetória da banda inglesa Sex Pistols é espelho da história do próprio movimento punk: rápida e avassaladora. Tendo lançado apenas um álbum, o Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols, e permanecido juntos — sem contar as eventuais reuniões posteriores — por pouco mais de dois anos, os londrinos marcaram o futuro da música popular britânica e mundial. Em sintonia com os ideais rebeldes dos punks, nenhum dos integrantes do grupo era um virtuoso musical, e eles seguiam as estruturas simples do rock de garagem dos anos 60.

O “amanhã” nas canções da banda Sex Pistols | Foto: Adrian Boot

Esse cenário, no entanto, não transformou a curta obra do conjunto britânico em algo datado e de pouco valor. Compositores de canções tão ferozes quanto inteligentes, urradas pelo vocalista John Lydon (então Johnny Rotten), os Pistols se tornaram conhecidos, especialmente, por dois hinos dos anos 70: Anarchy in the UK (Anarquia no Reino Unido) e God Save the Queen (Deus salve a rainha). Segundo o próprio Lydon, eram canções com um significado, com um propósito. A imagem ofensiva da banda não era apenas um invólucro, e sim parte do conceito radical emanado pela música que tocavam. Aquela geração de jovens dos anos 70, nascida e criada durante a Guerra Fria, estava começando a tomar o mundo e a expressar suas dúvidas e frustrações quanto ao que seria de seu futuro.

Anarchy in the UK declara que a anarquia chegaria em “algum momento” ao Reino Unido, mas se recusa a fazer previsões: “pode ser que eu dê o tempo errado”. Acima de qualquer elemento factual, é uma canção cheia de energia e vontade, um arroubo juvenil. Já God Save the Queen — blasfema desde o título, ao carregar o nome do hino britânico — é mais taxativa em relação ao amanhã não só dos Pistols, mas de toda a sua geração: “Não há futuro no sonho inglês, nenhum futuro para mim, nenhum futuro para vocês”. Em relação à própria rainha, sentencia, como numa ameaça: “Nós somos o futuro — o seu futuro! ”. Nunca antes a música popular havia sido tão feroz.

Foto: Adrian Boot

Ainda nos últimos anos da década de 70, mas principalmente durante os anos 80, o punk passou a ser dissolvido e sua influência se fez presente em outros ritmos e movimentos. Nessa linha, podemos citar desde o post-punk e o rock gótico até a música dançante. Mesmo que não seja possível decretar, de fato, um fim do punk rock, uma vez que muitas bandas posteriormente — e até os dias de hoje — se consideraram discípulas do gênero, é inegável que a raiz do movimento já se foi há muito. Registra-se que Morrissey, letrista e vocalista responsável pelo ultimato, tem como banda favorita os New York Dolls — outra gigante do punk, que, não coincidentemente, teve Malcolm McLaren, o homem que catapultou os Pistols ao sucesso, como empresário. Elemento seminal da cultura pop dos últimos 40 anos, os Sex Pistols não serão esquecidos enquanto houver rebeldia na música popular. Um amanhã moldado por nenhum futuro.

O Rei Roberto Carlos e sua ânsia por um amanhã repleto de romantismo

Um dos principais nomes da música nacional, Roberto Carlos, em parceria com o seu amigo de fé e irmão camarada, Erasmo Carlos, compôs a música Café da Manhã, lançada em seu disco homônimo de 1978, que logo se tornou um dos maiores sucessos de sua carreira. Até hoje, a canção é presente em seus especiais de final de ano e é reinterpretada por outros cantores ao redor do mundo.

Romantismo no “amanhã” de Roberto Carlos | Foto: Douglas Magno

Na letra, ainda que não nitidamente, o personagem principal parece angustiado com os rumos da sua atual relação amorosa. Ele espera que no “amanhã”, diante de sua mudança de comportamento, todos os seus problemas conjugais possam ser resolvidos e ele possa novamente encontrar a paz nos braços da sua mulher amada.

“Amanhã de manhã

nossa chama outra vez tão acesa

E o café esfriando na mesa

esquecemos de tudo

Sem me importar

Com o tempo correndo lá fora

Amanhã nosso amor não tem hora

vou ficar por aqui.

Pensando bem amanhã eu nem vou trabalhar

E além do mais temos tantas razões pra ficar”

Roberto é conhecido por fazer composições abusando de cenas descritivas, o que confere ao público um ar intimista, palpável e real. Sua obra predominantemente romântica é composta por diversas músicas de enfoque narrativo, como o caso de “Café da Manhã”.

Por utilizar-se desses artifícios, a canção apresenta uma atmosfera tão próxima ao presente, explicitada através da variedade de adjetivos e riquezas de detalhes que o autor utiliza. Assim, para um interlocutor mais desavisado, esse futuro, ainda incerto, pode soar como fato concreto. Roberto, aproveitando-se da licença poética parece se inspirar nas palavras do autor português Miguel Torga e se apresenta como o verdadeiro dono de sua história: “Recomeça… se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade.”

Um Amanhã Presente

Um futuro bastante atual já havia sido cantado por Cazuza em “O Tempo Não Para”. O sentimento do poeta, no final da década de 80 — há quase 30 anos — resume o que vivemos hoje. Uma mistura de contextos históricos que deixa qualquer um pensativo.

Como Cazuza cantou o “amanhã”? | Foto: Masao Goto Filho/Folhapress

Os versos “(…) o futuro repetir o passado” e “um museu de grandes novidades” tratam, na verdade, da essência do ser humano e, por isso, são tão recentes, tão intrínsecos. A maioria das pessoas se limita a enxergar seu presente e planejar um futuro próximo. Poucas conseguem refletir sobre o passado, transformando o agora em algo mais produtivo e vantajoso. Gênios como Cazuza e tantos outros músicos e artistas conseguiam brincar com o tempo e se tornaram atemporais.

E o amanhã do hoje, qual será? Quem está pensando nele?

Uma das maiores representantes do rock nacional do novo milênio, Pitty, escreveu certa vez sobre o tempo. “O futuro é o presente e o presente já passou” — verso que resume de maneira fácil a conduta social atual sobre o tempo.

O “amanhã” de Pitty: cheio de boas novidades | Foto: Jorge Bispo/Divulgação

Hoje somos treinados para o instantâneo. Econômica e politicamente. O tempo para nós é escasso, assim como a reflexão sobre ele. A comida é para o consumo de hoje. A presidente deve sair hoje. O prazo final daquele trabalho também é hoje. O amanhã de hoje é o próprio minuto seguinte. O conceito de tempo vai ficando para trás. Seremos todos gênios atemporais no futuro? Ou apenas alguns perdidos vagando em um eterno presente?

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