A vez da maioria do mundo?

Rodrigo Firmino
Jararaca
Published in
6 min readOct 31, 2022

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Digerindo a vitória de Lula em 2022

Foto: Ricardo Stuckert

Quando estou na cidade, tenho a impressão que estou na sala de visita, com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludo, almofadas de cetim. E quando estou na favela, tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. […] nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerada marginal. Não mais se vê os corvos voando às margens dos rios, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos. […] Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido. O Brasil devia ser dirigido por quem passou fome.”

(Carolina Maria de Jesus, “Quarto de despejo”, 1960)

Carolina Maria de Jesus nunca foi tão atual em sua descrição das agruras do povo periférico, sobre as dificuldades de se viver nas margens da cidade formal, na favela. Mas também nunca foi tão atual por mostrar a força que emana dos territórios da maioria do mundo. A maioria do mundo que é constantemente explorada, oprimida, violentada, e invisibilizada quando convém às classes hegemônicas. Trata-se, segundo AbdouMaliq Simone (2018)[1], de uma maioria urbana (urban majority).

“Na pós-colônia, distritos “de maiorias” serviram em grande parte como interstícios entre a cidade moderna de cadastros, redes, emprego contratual, zoneamento e instituições demarcadas setorialmente, e as zonas de residência temporária, improvisada e em grande parte empobrecida” (tradução livre).

A cidade é o foco. O foco das tensões, dos conflitos, das disputas, dos privilégios e das desigualdades, da sobrevivência, da resistência, e da constante reconstrução de possíveis futuros menos desiguais, mais justos e democráticos. É na cidade em que se dão as guerras, as guerras de mundos — mesmo quando essas guerras não envolvem apenas o espaço físico das cidades, e estejam na floresta e no campo. E é na cidade onde aparecem as vísceras das lutas, das derrotas e das vitórias do povo e dos trabalhadores.

Em outubro de 2018, sofremos o que talvez tenha sido a pior derrota institucional nessas lutas, com raízes em anos anteriores (com o golpe contra a Presidenta Dilma em 2016, nas manifestações com camisetas da CBF, com todos os retrocessos no legislativo, etc.), mas com sinais muito claros de uma estrutura centenária de opressões e repressões presentes desde a chegada dos europeus nessas terras. Bolsonaro protagonizou o pior governo da história do país em períodos fora de regimes ditatoriais. De maneira muito preocupante, espalhou a destruição e a opressão sob o manto de uma certa legitimidade democrática. O governo Bolsonaro torceu e tensionou todas as relações institucionais e democráticas modernas e mostrou o tamanho da fragilidade das estruturas sociais que formam o país. Afinal, foi possível entender que um Fascista (com “F” maiúsculo) pode destruir opositores e minorias com a lei e as instituições aos seu lado, quase repetindo o que o povo alemão viveu na década de 1930. Pior, o movimento simbolizado por Bolsonaro chocou o ovo da serpente, e fez despertar um exército de bolsonaretes fascistas espalhados pelo país, prontos a defender seus privilégios e de guardar para si o direito de escolher e executar seus próprios inimigos. Em “Amanhã vai ser maior”, Rosana Pinheiro-Machado (2019)[2] simplifica a descrição desse período no Brasil, ao dizer que a “ameaça comunista é uma mentira. A ameaça fascista é uma realidade”.

Card de campanha contra Bolsonaro, autoria desconhecida.

Foram, ou melhor, têm sido anos difíceis, quase impossíveis de se descrever. Não cabe nessas linhas o tamanho da destruição e as inúmeras ações do governo (ou estimuladas por ele) de matar corpos matáveis, da necropolítica (Mbembe, 2018)[3], na mais explícita gestão da morte de que se tem notícia na história do Brasil. A morte da maioria urbana. A morte de corpos opositores fortes, como Marielle Franco, Bruno Pereira e Dom Philips, e tantos outros que caíram lutando ou porque sempre lutaram. A morte meticulosamente gerida das mais de 700 mil vítimas da Covid-19, por uma deliberada e documentada negligência em reconhecer a importância e seriedade da nova doença. Mas também a morte de milhares de corpos tornados indesejáveis pelo simples fato de serem mulheres, indígenas, pretos e periféricos, covardemente eliminados em operações violentas das polícias, pela mineração ilegal, e pelas políticas econômicas e sociais de desprezo ao sofrimento do povo. Não é possível esquecer também que foi um governo de mentiras (ou desinformação) e de milicianos vampiros. Bolsonaro é um genocida! O bolsonarismo mata! O fascismo mata!

Hoje é 31 de outubro de 2022. Ontem, ao contrário da disputa acirrada que os noticiários e a contagem apertada de votos (pouco mais de 2 milhões de votos de diferença), parecem mostrar, Lula garantiu a vitória nas eleições mais desequilibradas da história democrática do Brasil, lutando contra uma máquina gigantesca de compra de votos e produção de desinformação. Essa vitória tem inúmeros aspectos valiosos, dentre os quais o mais óbvio talvez seja a história incrível desse líder dos trabalhadores brasileiros. Para resumir, trata-se de um trabalhador que formou-se político no sindicalismo, ajudou a fundar um dos partidos trabalhistas mais fortes do mundo, que perdeu três eleições seguidas antes de se eleger (e se reeleger), que deixou o governo com 88% de aprovação e ajudou a eleger sua sucessora (a primeira mulher a presidir o país), que foi perseguido e preso por 580 dias, que escolheu respeitar a lei e ganhar sua liberdade na justiça, e que agora volta para ser eleito democraticamente derrotando o governante fascista que tinha todas as artimanhas (legais e ilegais) e o poder da máquina do governo ao seu lado. Quem não se emociona com a história de Lula, é insensível, mal-informado ou mau-caráter.

Um outro aspecto importante dessa vitória diz respeito à necessidade de se pensar a democracia brasileira, e sobre a dificuldade que nós, e Lula, teremos na luta para desmontar o fascismo bolsonarista. Já está claro que o atual modelo institucional é frágil demais para fazer isso sozinho. Para Boaventura de Sousa Santos (2022)[4], ainda vivemos sob o altíssimo risco de um golpe continuado, que nos acompanha a cada movimento do tabuleiro político desde 2014, e segue em curso. A presença de Lula na presidência significa muito pouco, principalmente pelo tipo de apoio que ele teve que construir para ganhar essas eleições. É claro que estamos aliviados e felizes por tirar Bolsonaro da presidência. A máquina administrativa é gigantesca e faz muitos estragos. Mas será necessário repensar, reorganizar e reconstruir muita coisa, no governo, nas demais instituições, e nas ruas.

Ilustração: Henrique Abreu (designcontrabolsonaro.org)

Há muitas lutas a serem lutadas. A vitória de Lula apresenta um sinal importante sobre as possibilidades de barrar e derrotar o fascismo bolsonarista, mas não representa a derrota desse movimento nefasto. Nem tampouco significa a mudança dos modelos históricos de opressão que construíram o Brasil. Infelizmente, a vitória de Lula está longe de significar a vitória do povo oprimido, pois está cercada de outros tantos interesses econômicos e políticos que buscam a continuidade da opressão e do extrativismo das forças e das vidas dos trabalhadores e dos empobrecidos. Mas a vitória no dia 30 de outubro de 2022 foi um passo necessário, inescapável. E o importante é que estamos na luta e seguiremos esperançosos e atentos as tentativas de aumento da opressão contra a maioria urbana, a maioria do mundo.

Não é fácil, nunca foi, e nunca será.

[1] Simone, AbdouMaliq. 2018. The Urban Majority and Provisional Recompositions in Yangon. Antipode 50(1): 23–40.

[2] Pinheiro-Machado, Rosana. 2019. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Editora Planeta.

[3] Mbembe, Achille. 2018. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições.

[4] Santos, Boaventura de Sousa. 2022. O golpe de estado continuado. Sul21, Opinião, 31/10/2022.

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