Biometrias no desastre: Reconhecimento Facial e Desaparecidos nas Enchentes do Rio Grande do Sul

Julia F Abad
Jararaca
Published in
5 min readMay 16, 2024
Fonte da imagem: Divulgação Engeplus

Henrique Kramer e Julia Faustina Abad

As recentes e devastadoras enchentes no Rio Grande do Sul têm gerado uma comoção nacional, convocando tanto o Poder Público quanto a sociedade civil a unir esforços em operações de resgate, incluindo a necessidade de identificar e localizar desaparecidos. O desespero das famílias que buscam notícias de entes queridos perdidos nas enchentes tem despertado a necessidade de uma resposta imediata.

Nesse sentido, as empresas A_Lab e Photos.live criaram uma plataforma — a desaparecidosrs.com — que busca, por meio de reconhecimento facial, auxiliar na localização de pessoas em abrigos e centros de assistência. Na plataforma é possível fazer o “upload” de uma foto da pessoa desaparecida, que será comparada com fotos de pessoas abrigadas. Caso haja identidade entre as fotos coletadas a partir da plataforma, é fornecida a localização da pessoa.

A nobre iniciativa de aplacar a angústia de quem procura pessoas desaparecidas expõe a solidariedade com os atingidos pelas enchentes e, também, o modo como, diante de desastres, recrudesce o uso de tecnologias digitais de vigilância, como a biometria facial.

Um episódio que ilustra este movimento ocorreu em 2021, durante a pandemia da SARS-CoV-2 (vírus da família do coronavírus). A CUFA, Central Única das Favelas, anunciou o uso do reconhecimento facial para garantir a entrega de doações às pessoas em vulnerabilidade nas favelas onde a organização atua. Foi alegado que o protocolo tornaria mais segura a distribuição de alimentos. Após a decisão, pesquisadores do tema de coleta de dados biométricos trouxeram o debate sobre o uso dessas tecnologias, inclusive por organizações não governamentais, especialmente em contextos como o das favelas. O uso da tecnologia foi interrompido. Isso porque, muito embora a alegação de mais segurança para prestação de contas às empresas doadoras, o uso dessa medida levantou preocupações sobre privacidade e conformidade com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). Sabe-se que a ausência de regulação no uso desses dados pode acarretar numa ausência de transparência no processo de coleta, armazenamento e sua possível utilização por terceiros.

Antes ainda da pandemia, a série documental “All Hail The Algoritm”, da emissora Al Jazeera, noticiou que em Za’atari, campo de refugiados sírios na Jordânia, o Programa Mundial de Alimentos da ONU, em parceria com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), usava reconhecimento de íris — outra espécie de biometria — para fornecer suprimentos aos refugiados. Os refugiados poderiam adquirir alimentos sem precisar de qualquer cartão, carteira de identidade ou outro documento, apenas com o escaneamento da íris em um sistema chamado “EyePay”. A jornalista Stephanie Hare, ouvida no documentário, questionou se aqueles refugiados teriam a possibilidade de solicitar assistência jurídica para serem informados das consequências de ceder dados biométricos ou se poderiam simplesmente recusar esse sistema. Em resumo, a situação de extrema vulnerabilidade de pessoas que fogem de seu país em guerra prejudicaria a possibilidade de consentirem de modo livre e informado com o uso de seus dados biométricos.

Vale ressaltar de forma geral, as medidas tomadas durante a pandemia do coronavírus, pela urgência em assegurar o distanciamento social, por exemplo, o uso de plataformas para o ensino remoto e o uso de biometria facial em provas de vida de benefícios previdenciários, além de outras experiências de monitoramento de deslocamentos, contatos, etc., quase sempre sem debates públicos, sem informação e sem a devida proteção de dados pessoais. Agora, diante dos horrores das enchentes no Rio Grande do Sul e da urgência de localizar desaparecidos, novamente surgem soluções que fazem uso do reconhecimento facial.

O contexto e a finalidade a partir dos quais foi criada a plataforma “desaparecidosrs.com” é, evidentemente, diferente de um campo de refugiados ou da autenticação de doações pela CUFA, nos quais o acesso a bens essenciais como alimentos ou roupas, é — ou era -, em última instância, condicionado à entrega de dados biométricos. Além disso, os termos de privacidade da plataforma “desaparecidosrs.com” indicam expressamente que não haverá armazenamento de imagens ou informações pessoais e que serve apenas ao “propósito de auxiliar na localização de familiares de menores desaparecidos”.

No entanto, o surgimento de soluções que lançam mão de biometrias em contextos de crise, como no caso da “desaparecidosrs.com”, coloca a questão do modo como, nesses contextos, o uso de tecnologias digitais de vigilância avança sem muitos questionamentos, possivelmente, sem cautelas e, ressalte-se, a partir de experiências pessoais e coletivas extremamente traumáticas como a fome, a guerra ou eventos climáticos extremos. Apesar das reservas constantes nos termos de privacidade da “desaparecidosrs.com”, a dinâmica da plataforma indica que qualquer usuário poderá fazer buscas pela localização de outra uma pessoa, de modo anônimo, podendo obter acesso à imagem e à localização de terceiros, bastando, para isso, fazer o “upload” de um foto da pessoa.

Além disso, a expansão do uso de tecnologias de biometria facial geralmente se apoia em justificativas similares como a busca e a localização de crianças desaparecidas, combate à crimes sexuais. Por exemplo, na Assembleia Legislativa do Paraná tramita o Projeto de Lei 75/2021, que visa a criação de um banco de dados para o reconhecimento facial de pessoas desaparecidas, a denominada Lei do Reencontro.

O drama humano dos desaparecidos nas enchentes no Rio Grande do Sul é urgente. No entanto, também é fundamental o debate público sobre os limites e implicações do uso de biometria facial, especialmente em situações de crise e vulnerabilidade. Em última análise, é crucial garantir que o direito fundamental à privacidade e proteção de dados pessoais não seja sacrificado, mesmo em meio a calamidades humanitárias.

REFERÊNCIAS

ENGEPLUS. Com tecnologia de reconhecimento facial, site ajuda a reunir pessoas separadas durante enchentes no RS. 2024. Disponível em: https://www.engeplus.com.br/noticia/geral/2024/com-tecnologia-de-reconhecimento-facial-site-ajuda-reunir-pessoas-separadas-durante-enchentes-no-rs. Acesso em: 15 maio 2024.

W3NEWS. Empresários desenvolvem site que ajuda a encontrar pessoas separadas durante os resgates no RS. 2024. Disponível em: https://w3news.com.br/noticias/2799-empresarios-desenvolvem-site-que-ajuda-a-encontrar-pessoas-separadas-durante-os-resgates-no-rs. Acesso em: 15 maio 2024.

DESAPARECIDOSRS. Find Me. Disponível em: https://desaparecidosrs.com/find-me. Acesso em: 15 maio 2024.

PHOTOS.LIVE. Política de Privacidade. Disponível em: https://www.photos.live/privacidade. Acesso em: 15 maio 2024.

YOUTUBE. Vídeo: WFP, UNHCR using iris recognition for Syrian refugee food program in Zaatari. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rDnKl-VSalE. Acesso em: 15 maio 2024.

G1. Por que a Cufa interrompeu o uso de reconhecimento facial após polêmica. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/04/27/por-que-a-cufa-interrompeu-o-uso-de-reconhecimento-facial-apos-polemica.ghtml. Acesso em: 15 maio 2024.

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