Como (re)produzir democracias no Tecnoceno?
A participação pública e o envolvimento do povo no desenvolvimento de políticas públicas é uma questão muito discutida recentemente nos estudos urbanos e nas ciências sociais de forma mais ampla. Mas será que o empoderamento e a emancipação podem ser alcançados por meio de iniciativas públicas que envolvem as pessoas em processos deliberativos? Qual é o papel das tecnologias (digitais) nesse cenário? Como (re)produzir democracias no Tecnoceno?
No dia 16 de fevereiro de 2023, aconteceu em Lisboa (Portugal), o seminário Citizen Participation (Participação Cidadã). O evento, organizado pelo Shift Hub do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, juntou dois pesquisadores conhecidos pela atuação nesse tema: Paolo Cardullo e Manuel Arriaga. Paolo, especialista em participação pública em cidades inteligentes, atualmente é pesquisador na Universitat Oberta de Catalunya. Ele organizou o livro The Right to the Smart City junto com Rob Kitchin e Cesare Di Feliciantonio e lançou, mais recentemente, a obra autoral Citizens in the ‘Smart City’. Participation, Co-production, Governance (Cidadãos na ‘Cidade Inteligente’. Participação, Coprodução, Governança). Manuel é professor na New York University e um dos principais atores na promoção e no desenvolvimento do Conselho de Cidadãos de Lisboa, uma iniciativa de participação cívica para a construção da cidade. Essa inesperada combinação de disciplinas e pontos de vista, acabou por ser uma mistura interessante.
Uma das principais ideias debatidas e reforçadas, foi que o discurso das cidades inteligentes já é ultrapassado. Esse conceito ambíguo e volátil assume diversas formas para avançar uma agenda de urbanização neoliberal, carregada de problemas relacionados à excessiva vigilância e controle, pelo tratamento de pessoas como pontos de dados a serviço de sensores urbanos e pela concentração de poder intrínseca à versão atualmente dominante do capitalismo, cimentado no colonialismo de dados. No evento, o caso paradigmático de Barcelona foi apresentado como uma referência de soberania digital, representado por sua plataforma digital de participação, Decidim.Barcelona. Segundo Paolo Cardullo, o sucesso local precede um histórico iniciado por uma agenda de cidade inteligente corporativa que, devido às particularidades da cidade, passou por uma onda de movimentos sociais anti-smart protagonizados por hackers cívicos, desenvolvedores de software livre e intelectuais acadêmicos. Como consequência, um novo regime político assumiu o poder e pôs fim ao discurso de cidade inteligente. Paolo ainda ressaltou que, por mais que exemplos de emancipação e empoderamento como esse sejam escassos, podemos aprender como avançar nessa direção, da criação de processos digitais genuinamente participativos, enquadrados em discursos políticos de direito sociais, cidadania política, democracia deliberativa e no comum.
Assim como o aparato digital das cidades inteligentes, as iniciativas de participação cidadã também podem ser interpretadas como tecnologias, um conjunto de técnicas que controlam, supervisionam e manipulam as populações. A partir desta perspectiva, cunhada por Foucault em suas palestras sobre segurança, território e população de 1977–78, as próprias cidades podem ser compreendidas com tecnologias. Nesse sentido, podemos pensar nos mecanismos de participação pública como, por exemplo, os orçamentos participativos e os conselhos de cidadãos, a partir de uma perspectiva tecnopolítica e, assim, concluir que o envolvimento de cidadãos em processos decisórios políticos não determina, necessariamente, o empoderamento dessas pessoas. Por isso, a problematização de intervenções sociotécnicas, de suas motivações e implicações, de suas metodologias e resultados, é extremamente importante para compreender a sociedade de hoje e caminhar para um mundo mais justo, inclusivo e democrático.
Para problematizar as intervenções sociotécnicas, no caso dos processos participativos, podemos questionar a legitimidade democrática de conselhos de cidadãos ao levantar perguntas como: quem são os cidadãos que participam nos processos, quem faz a moderação deliberativa e garante que as vozes são igualmente escutadas e consideradas, quem escolhe os especialistas que apoiam as discussões? Para as plataformas digitais de participação, a problematização é semelhante, uma vez que, geralmente, tais tecnologias são criadas de forma paternalista e consumerista. Até mesmo em circunstâncias em que isso não ocorre, como na adoção da plataforma Decidim no Chile (a plataforma foi replicada/exportada para centenas de cidades ao redor do mundo), o uso da tecnologia pode ser distorcido e suas características originárias, negligenciadas (a utilização da Decidim no Chile é muito criticada por não envolver processos deliberativos). Similarmente, em outras cidades como Nova Iorque, Helsinque e Milão, as quantias atribuídas à orçamentos participativos são questionados devido aos baixos valores que não permitem a realização de grandes intervenções deliberadas pelo povo. Para efeito de comparação, essas cidades atribuem em torno de 5 milhões de euros, enquanto Barcelona atribui aproximadamente 70 milhões. O sucesso da plataforma — e da agenda de participação cidadã — em Barcelona é o resultado de uma nebulosa de fatores que combinam momento e força política, parceria entre academia e instituições do poder público com movimentos populares potentes e radicais, que se manifestam mutuamente para uma economia do comum.
A interseção entre essas duas temáticas é extremamente relevante para uma (re)politização da sociedade, em contraponto à despolitização promovida pela agenda neoliberal de expansão capitalista global. Além disso, a luta contra o iluminismo das trevas (movimento neorreacionário) e suas práticas obscurantistas, como a pós-verdade, passa pela busca pelo comum, por práticas participativas e inclusivas, pela busca do empoderamento e da emancipação; para, assim, superar a onda global de autoritarismos digitais corporativos.