Para onde estamos indo?

Débora Rocha
Jararaca
Published in
6 min readMay 6, 2024
Photo by CardMapr.nl on Unsplash

No apagar das luzes de 2023, a Prefeitura de Curitiba anunciou a abertura de uma consulta pública sobre MaaS. Por trás de uma atitude que pode parecer democrática, a direção desta consulta é, no mínimo, contrária para a qual deveríamos ir. Vou te contar o porquê.

Ao acessar o portal Conecta Curitiba, no qual a consulta pública foi realizada, dois parágrafos com letras muito pequenas “explicavam” do que se trata a participação:

No âmbito do Programa de Mobilidade Urbana Sustentável de Curitiba, a Prefeitura de Curitiba se prepara para lançar um edital de contratação de inovação para responder ao desafio: Como oferecer uma solução inovadora que integre os serviços de mobilidade na capital e na região metropolitana buscando aumentar o número de usuários de maneira mais sustentável, eficiente e inclusiva? O objetivo é receber contribuições para subsidiar futura e eventual contratação de solução inovadora para os usuários de serviços de transporte que reúna diferentes funcionalidades e tenham dados compartilhados com a administração pública para o planejamento do transporte coletivo, dentro do conceito Mobilidade as a Service (MaaS).

No primeiro parágrafo uma pergunta grande e poderosa. Para respondê-la existem milhares de possibilidades. Certamente os cidadãos e cidadãs que moram na região sul de Curitiba podem ter várias soluções, quem mora no centro, outras. Portanto, não custa lembrar que há diversas formas para "aumentar o número de usuários de maneira sustentável, eficiente e inclusiva" sem a utilização de "uma solução inovadora" que não envolva tecnologia digital. Como exemplo, a tarifa zero para o uso do transporte coletivo e a ampliação de ciclovias e ciclofaixas por toda a cidade.

"Ah Débora, lá vem você sendo contra a tecnologia!" — alguém pode ter pensado. Então preciso dizer, não sou contra ela. E posso provar.

Tecnologia a favor da mobilidade

No edital, a Prefeitura coloca apresenta como contexto do projeto a diminuição da utilização do transporte coletivo nos último anos, refletindo em aumento das viagens por veículos individuais ou "em sistemas complementares", ocasionando congestionamentos adicionais, reduzindo a velocidade dos ônibus e, consequentemente, aumentando o tempo de deslocamento. Essa dinâmica é amplamente conhecida (e não precisa ser um especialista para saber disso). Veja abaixo como esse contexto é exatamento o que mostra o ciclo vicioso do transporte público e individual, sistematizado por Reck (2023):

Fonte: Reck (2023) com base em Ortuzar e Willianson (2011).

Para sair do ciclo vicioso, não precisamos inventar nenhuma roda (e nenhum aplicativo!). É preciso investir maciçamente em alternativas coletivas para que o uso do transporte coletivo e mobilidade ativa sejam atrativos e convenientes em relação ao uso do carro e, assim, as preferências mudem já que congestionamento significa que tem mais veículos nas ruas ao mesmo tempo.

Enquanto a integração for física, nos terminais e estações tubo, continuaremos alimentando o ciclo vicioso. Por isso, a Prefeitura poderia investir em tecnologia para viabilizar o bilhete integrado temporal, para todos os usuários, com diversas possibilidades de tarifa (bilhete diário, semanal, mensal, anual). Essa solução é simples, barata, amplamente utilizada no mundo todo. Por que não se usa ainda em Curitiba? Talvez porque na cidade mais inteligente do mundo (!) fazer o que dá certo possa ser inteligente demais.

As paradas de ônibus poderiam ser equipados com esquemas espaciais e informações sobre os ônibus e linhas que param ali, aliados à painéis luminosos com o horário previsto dos próximos. Essa solução também não é inovadora, já que além de ser do século 20, ela deveria "normal", o básico, o mínimo, o default (para os tecnológicos…rs). Informação simples, acessível para qualquer cidadão ou cidadã em tempo real. Simples assim. E ainda sem a necessidade de estar conectado à internet. Detalhe: grande parte da frota dos ônibus curitibanos já tem GPS integrado. Ou seja, com um pouco de boa vontade, essa informação poderia ser disponibilizada facilmente para os usuários.

A tecnologia ajuda, viu?! Ou melhor, pode ajudar. Mas para isso é preciso que ela seja socialmente construída. O que quero dizer com isso é que "a tecnologia" per se tem sido utilizada como sinônimo de resolução de problemas, como se ela sozinha fosse capaz de dar conta "dos problemas" da cidade, também conhecido como tecnosolucionismo, ou mágica.

Mas, afinal de contas, você sabe o que é MaaS?

Essa perguntinha básica não é nada banal. Porém, a Prefeitura de Curitiba deve achar que todo mundo sabe o que é. Não se sinta mal. Na comunidade científica ainda não há um consenso sobre sua definição visto que o debate conceitual se apoia nas recentes experiências que o materializam, as quais são diferentes entre si.

Alyavina et al. (2022) definem a Mobilidade como Serviço (MaaS) como um "mecanismo holístico de fornecimento de transporte que atende às necessidades dos usuários de transporte, oferecendo soluções de mobilidade personalizadas por meio do acesso e da integração de uma ampla gama de tipos de veículos, experiências de viagem e serviços complementares em uma única interface digital". Em outras palavras, a ideia é que uma interface (que chamados de aplicativo) possibilite aos usuários planejar seu deslocamento integrando diversos modais de transporte (a pé, bicicleta e patinete compartilhados, aplicativos de veículos, transporte coletivo, etc), similar ao que o Google Maps faz, só que com mais possibilidades e formato.

A idéia é boa, não posso negar. Porém, refletindo sobre o que Sochor et al (2018) disseram sobre esse processo: “a transição para o MaaS pode ser considerada sustentável se o MaaS contribuir para o cumprimento das metas sociais, como a necessidade de descarbonização do sistema de transporte, redução do congestionamento, inovação e melhor acessibilidade” (p.12), a disponibilização de um aplicativo para planejamento de deslocamentos não vai ser suficiente para melhorar a mobilidade em Curitiba e Região Metropolitana.

A grande questão por trás dessa discussão que eu quero reforçar é: quem tem um smartphone, planos de dados e condições financeiras para escolher qual meio de transporte utilizar já está fazendo isso. Então, o aplicativo que pode ser contratado pela Prefeitura de Curitiba só vai ser mais uma opção para aqueles que já tem uma (ou mais de uma). E, no final das contas, ela não contribui em nada para trazer mais usuários para o transporte coletivo, conforme indicado como objetivo do projeto.

Se eu fosse resumir esse longo texto seria assim: a discussão sobre o aplicativo para MaaS em Curitiba é como se estivéssemos na farmácia analisando as várias opções de remédio para gripe para sarar de uma dor de barriga. Não é porque é remédio que vai resolver o problema, certo?

Estamos perdidos, e agora?

Não precisa chamar o Uber para sair dessa enrascada (mas se quiser, pode!).

No momento, visualizo que podemos esperar para ver se os resultados dessa consulta serão divulgados. E a partir deles, que tipo de solução está sendo validada, se há espaço para contribuições, e se a dita solução de fato trará algum benefício social, especialmente na atração de mais pessoas para o transporte coletivo (o que eu duvido, sinceramente).

Outra questão importante é ficar ligado nas discussões e propostas que serão apresentadas pelas candidatas e candidatos nas eleições locais deste ano. Em ano de eleição, promessas de diversas sortes são espalhadas ao acaso muitas vezes copiando soluções de outros contextos, completamente descoladas da realidade. Se a promessa de "um aplicativo novo" que a Prefeitura vai disponibilizar para a população no novo mandato vier a tona, sugiro rever a rota e buscar uma outra candidata ou candidato.

E se quiser conversar mais sobre isso, me escreve.

--

--

Jararaca
Jararaca

Published in Jararaca

Espaço para a publicação de artigos, ensaios, resenhas, verbetes, relatos oriundos das investigações teóricas e empíricas do coletivo de professores e pesquisadores de iniciação científica, mestrado e doutorado que constitui o Jararaca.

Débora Rocha
Débora Rocha

Written by Débora Rocha

Eu ajudo as pessoas a verem as cidades c/outros olhos. Trago informações técnicas/científicas sobre tecnopolíticas e mobilidade urbanas,de forma descomplicada.