Plataformas de mobilidade urbana: entre o público e o mercado

André Pecini
Jararaca
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7 min readApr 26, 2023

Uma plataforma digital pública pode ajudar a mudar a visão da sociedade sobre o transporte de passageiros nas cidades.

Crédito: Carlos Barreta (Fonte: Wikimedia Commons)

Há pouco mais de um mês, a prefeitura de São Paulo lançou o MobizapSP, “um aplicativo (app) de mobilidade urbana que visa melhorar as condições de acessibilidade e mobilidade urbana dos munícipes, com foco em facilidade, eficiência, segurança e preço justo, além de entregar uma maior remuneração aos motoristas parceiros”.[1] Em suma, um concorrente para Uber, 99 e similares.

O aplicativo é apresentado na página de perguntas e respostas como “única plataforma gerida pela gestão pública para motoristas e passageiros que fazem viagens privadas”.[1]

Aplicativo ou plataforma?

O uso dos dois termos pela prefeitura evidencia que os aplicativos são apenas as interfaces das plataformas digitais. Ou seja, são a parte visível de estruturas tecnológicas, jurídicas e empresariais que atuam na mediação de interações e atividades como o transporte privado de pessoas. Não fazem uma intermediação passiva, ou a simples aproximação de “usuários” — por exemplo, clientes e trabalhadores. Ao definir regras para cadastro, formas de remuneração, mecanismos de avaliação do serviço, definir perfis, coletar dados e, para além disso, fazer lobbies a fim de influenciar na legislação e fiscalização dos serviços, elas instauram lógicas próprias nos setores em que atuam (SRNICEK, 2016).

Nossa sociedade é atravessada por plataformas corporativas privadas em diversos setores de interesse público: transporte, hospedagem, saúde etc. (VAN DIJCK et. al., 2018).

Plataformas setoriais (Transporte, Saúde, Educação e Notícias) e infraestruturais (no centro). Autor: Fernando van der Vlist In: van Dijck et. al., 2018

Neste cenário, a criação de uma plataforma pública aparece como uma novidade. Contudo, o documento de termos de uso para motoristas aponta que estes devem “seguir as políticas e procedimentos estabelecidos pelo Consórcio 3C”[2] e os termos para passageiros “estabelecem o relacionamento contratual entre você, na qualidade de usuário(a), e o Consórcio 3C (proprietária do aplicativo de mobilidade MobizapSP)”[3]. Surge então a questão: de quem é a plataforma?

Vale pontuar que o processo de licitação é alvo de investigação pelo Ministério Público de São Paulo a partir de requerimento de vereador da cidade com informações de que o processo permanece em sigilo, não teria havido concorrência de fato, o consórcio foi formado cerca de uma semana antes de vencer a licitação e as empresas que fazem parte dele respondem por desvio de verba pública.

O MobizapSP começa a funcionar pouco após a aprovação do relatório final da CPI dos Aplicativos realizada pela Câmara Municipal de São Paulo, que lista Uber, 99, iFood, Rappi e Loggi entre as empresas que prestaram esclarecimentos.[6] Em suas conclusões e pontos críticos (cap. XI), o relatório cita supostos crimes de evasão fiscal, suposta fraude na contagem de quilômetros rodados pelos condutores pela demora ou negligência no envio de seus cadastros para a prefeitura (pp. 146–8), impactos no transporte coletivo — que teve queda de quase 10% de passageiros entre 2016 e 2019 (p. 165) –, imposição de riscos a passageiros e condutores pela obtenção de liminar que suspende a exigência de inspeção veicular (p. 178), precariedade nos sistemas de prevenção e solução de fraudes e atos violentos e a tentativa de desvincular relações trabalhistas, apontando, por exemplo, falta de autonomia dos trabalhadores (p.188–9).

É cedo para avaliar o funcionamento da MobizapSP e seu impacto no transporte de passageiros. Mas a iniciativa traz à tona diversas questões, desde o estatuto jurídico e de fato das empresas-plataforma que operam serviços de interesse público, passando pelos mecanismos de mediação de atividades e gerenciamento de trabalho, o cálculo de tarifas e sua lógica subjacente, até a coleta, guarda e o processamento dos dados por essas empresas. Neste texto, trataremos apenas do modelo de cálculo de tarifas, seus pressupostos e suas implicações.

A lógica de oferta e demanda no transporte de passageiros

A característica da MobizapSP que mais chama atenção — e se choca mais diretamente com as plataformas corporativas — é a forma de cálculo do preço de uma corrida. Enquanto a Uber possui o preço dinâmico e a 99, o preço variável, o valor das corridas no MobizapSP é resultado de apenas três variáveis: “tempo estimado de viagem, distância e horário”.[1]

O cálculo é feito por algoritmos que, nas plataformas corporativas, são considerados proprietários, ou praticamente segredo industrial. Simplificando, a modelagem algorítmica produz fórmulas a partir do processamento de dados e aprendizado maquínico. Podemos aproximar as fórmulas geradas por esses algoritmos da fórmula dos refrigerantes, que são guardadas a sete chaves. Mas o que acontece quando essas fórmulas afetam o espaço público e a sociabilidade? A opacidade desses algoritmos não apenas dificulta ou impede que sejam auditados por órgãos reguladores, mas em uma extrapolação do caso em questão, representam riscos à democracia (SILVEIRA, 2019).

No cálculo das corridas, esta nova lógica resulta em diferenças significativas nos preços. Testes feitos pelo Estadão no dia 23 de março mostram que os preços da plataforma pública são mais caros do que de seus concorrentes corporativos às 15h, horário de menor movimento: a maior diferença foi de cerca de 40% em relação à 99 no trecho Estação da Sé — Terminal Rodoviário Tietê Mas são muito menores às 18h, horário de mais trânsito, quando a 99 passa a ser quase 40% e a Uber, cerca de 23% mais caras no mesmo trecho. Entre a Estação da Sé e o aeroporto de Congonhas, a Uber chega a ser 77% mais cara às 18h.[7]

Fonte: Estadão [7]

Em um primeiro momento, pode parecer apenas outra forma de precificação. Mas significa uma nova abordagem do transporte de pessoas nas cidades. A precificação dinâmica usada pelas plataformas corporativas se torna um problema para os cidadãos em situações extremas como temporais, calamidades públicas, horários ou dias específicos em que haja grande demanda por transporte e baixa oferta de motoristas. Um caso reportado pelo New York Times foi uma tempestade de neve em Nova Iorque, quando a tarifa chegou a mais de 8 vezes o preço médio normal.

A plataforma pública pode colocar em xeque uma lógica de oferta e demanda que dá mostras de ser potencialmente prejudicial aos fluxos de pessoas em situações extremas, ainda mais quando o aumento do transporte particular influencia o planejamento da oferta de transporte público — conforme aponta a queda de passageiros de ônibus mencionada no relatório da CPI dos Aplicativos.

Outra lógica de cálculo também evidencia que há alternativas aos modos de operação das plataformas que hoje intermediam as mais diversas atividades. A transparência desses cálculos também deve entrar em pauta. Uma plataforma pública, se este for realmente o caso da MobizapSP, pode ajudar a sociedade a avançar no exame desses mecanismos.

A MobizapSP vai oferecer microdados que podem ser usados pela administração pública para a compreensão e melhoria do transporte na cidade. Esses dados são tratados como proprietários pelas plataformas corporativas que os coletam e processam, tornando as cidades dependentes de sua boa-vontade para compartilhá-los.

Por um lado, os dados em posse da administração pública terão (possivelmente) mais regulação e maior escrutínio. Por outro, podem compor bases de dados mais robustas sobre os cidadãos, o que não deixa de ser uma temeridade em países como o nosso, que se mostrou vulnerável a projetos antidemocráticos de governo.

Por fim, a licitação para o desenvolvimento de uma plataforma pela Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito de São Paulo reforça a questão sobre o estatuto dessas plataformas e suas relações com os setores da economia e da sociedade em que atuam. Ao se posicionarem como empresas de tecnologia de intermediação, as plataformas contornam a regulamentação desses setores. Em outros casos, as empresas parecem agir a fim de evitar inspeções, como mostra o caso da liminar obtida pelas plataformas de transporte para que os veículos cadastrados não sofressem vistoria, mencionado na CPI dos Aplicativos (pp. 42, 127). Os mecanismos de avaliação da qualidade do serviço por parte dos passageiros é enganoso, pois a regulação funciona exatamente para garantir a segurança e a legalidade das atividades, especialmente em relação a detalhes invisíveis aos clientes (SLEE, 2017).

A plataforma da prefeitura de São Paulo levanta inúmeras questões, muitas das quais só poderão ser respondidas com o tempo. No entanto, seu lançamento já nos permite mostrar algumas das dimensões da ação das plataformas digitais na sociedade e avançar em alguns debates que se encontram obstruídos no momento.

[1] https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/mobilidade/noticias/index.php?p=343648

[2] https://termo-motorista.mobizapsp.com.br/

[3] https://termo-passageiro.mobizapsp.com.br/

[4] https://diariodotransporte.com.br/2018/03/30/aplicativo-sptaxi-sera-lancado-na-segunda-feira-em-sao-paulo/

[5] https://www.capital.sp.gov.br/noticia/motoristas-de-aplicativos-ja-podem-solicitar-documentos-exigidos-por-regulamentacao-da-prefeitura-para-transportar-passageiros

[6] https://www.saopaulo.sp.leg.br/wp-content/uploads/2021/02/Relatorio-Final-CPI-Aplicativos.pdf

[7] https://einvestidor.estadao.com.br/negocios/mobizap-sp-app-transporte-prefeitura-precos/

SILVEIRA, S. A. Democracia e os códigos invisíveis: como os algoritmos estão modulando comportamentos e escolhas políticas. São Paulo: Edições Sesc SP, 2019.

SLEE, Tom. What’s yours is mine: Against the sharing economy. Or Books, 2017.

SRNICEK, Nick. Platform capitalism. John Wiley & Sons, 2017.

VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; DE WAAL, Martijn. The platform society: Public values in a connective world. Oxford University Press, 2018.

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André Pecini
Jararaca
Writer for

Doutorado em Tecnologias da Comunicação (ECO-UFRJ). Pós-doutorado no PPGGI-UFPR. Pesquisador nos grupos de pesquisa InfoMedia (UFPR) e Jararaca (PUC-PR)