Qual lugar?

Rodrigo Firmino
Jararaca
Published in
10 min readOct 11, 2022

Violência e apagamentos na cidade neoliberal contemporânea

Porto Maravilha, "cidade fantasia".

O meu objetivo neste breve texto-comentário, é chamar a atenção para um tipo de produção de espaços públicos, fruto de uma configuração das cidades contemporâneas que se valoriza pela opressão contra o comum, contra o coletivo e contra o convívio das diferenças. A pergunta-título deste ensaio tem feito cada vez mais sentido, principalmente na consideração sobre o que poderiam ser espaços do comum, lugares abertos do encontro e do inesperado, territórios da mistura e do confronto saudável das diferenças. Não sei se essa idealização de “comum” associada aos espaços sequer já existiu, mas gosto de pensar que a ideia de uma espacialidade coletiva sempre esteve nas aspirações da concepção de cidades como pontos de concentração social, e que sempre esteve nas pautas de um pensamento crítico sobre o que as cidades são ou poderiam ser, por parte de urbanistas e pesquisadores preocupados com urbanidade.

No reinante modelo neoliberal de planejamento e urbanização, há uma insistente associação dos espaços públicos abertos [1] a meros lugares de conexão entre bolhas de uso privado, ou a meros interstícios de passagem. Há também uma estigmatização do espaço público como o lugar da pobreza, da violência, da inequidade, da desordem e do indesejado. Para este modelo de cidade, o espaço público é o lugar da sobra, do resto que não foi possível tomar como território privado, segregado, limpo, seguro, e esteticamente conectado a estilos e materiais que simbolizem tal exclusividade.

Há, portanto, uma constante disputa pela configuração do espaço público entre algo que assume a pluralidade e a territorialidade da mistura, do comum e do popular, e algo que pasteuriza esses lugares segundo a lógica de alguns tipos específicos de consumo e uso, eliminando — sob diferentes tipos de violência (racial, de gênero, por orientação sexual, ou aporofobia — usos, consumos e atores indesejados. Segundo Anna Minton (pesquisadora da University of East London e jornalista do The Guardian), “[Projetos de] ‘regeneração’ são muitas vezes uma luta injusta entre a população local e as finanças globais” [2]. À cidade neoliberal, não interessa o fomento ao encontro fortuito de coletividades diferentes se isso implica expor publicamente as gigantescas injustiças sociais e raciais em países como o Brasil. A produção do espaço contemporâneo, financeirizada e conectada aos mer- cados globais de capital, se alimenta da sobrevalorização da exclusividade (que ganha significados adaptados à diferentes realidades socioeconômicas) e da segregação entre indivíduos e coletivos de classes e raças distintas. Essa cidade hostil aos encontros tende a isolar, por fronteiras físicas ou invi- síveis, o uso (consumo?) de cada tipo de lugar (produto?). E isso se faz visí- vel na própria configuração dos espaços públicos, ou nas formas como são ocupados ou cooptados.

A consequência disso é um processo agudo de gentrificação por meio de diferentes projetos de renovação urbana. Não é coincidência que esses projetos sejam concebidos como parte de modelos de negócio nas chamadas parcerias público-privadas (PPP), operações urbanas consorciadas, ou mais recentemente, projetos de intervenção urbana (PIU), nos casos brasileiros. Sob a justificativa de renovar áreas desvalorizadas das grandes cidades, o mercado imobiliário promove grandes intervenções em áreas de interesse urbanístico (bem localizadas com relação a redes de infraestrutura e serviços) e passa a explorar comercialmente esses espaços, muitas vezes ocupando o papel de gestor de toda a área, inclusive os espaços públicos. Não se trata de um modelo novo, pois já é utilizado há décadas em países da Europa e América do Norte [3], sob outras denominações e com várias adaptações ao longo do tempo e das mudanças de mercado e contexto geopolítico. É importante notar que nem sempre os projetos são frutos de grandes empreendimentos imobiliários ou de operações no mercado financeiro, mas há sempre uma tensão importante entre a gestão pública e privada de parcelas do espaço urbano. O modelo de grandes incorporações financeirizadas tem se consolidado mais recentemente e tem sido promovi- do em países do sul global como importante alavanca para o setor da construção civil e como necessidade governamental para a manutenção (renovação) de grandes áreas urbanas consideradas desvalorizadas (e ocupadas por populações pobres).

Projeto de Intervenção Urbana do Novo Entreposto de São Paulo. Imagem: divulgação.

Com relação ao espaço público, o resultado inclui lugares planejados para um usuário específico (cidadão?) cujo consumo interesse aos empreendedores e investidores do projeto, em que o caráter público ou comum se dilui face às estratégias de gestão e securitização desses territórios. A cidade, e seus espaços públicos, passa a ser composta por uma sobreposição invisível de fronteiras de territórios cuja gestão (da limpeza à segurança, e a comercialização dos imóveis ou exploração dos serviços) se dá por diferentes atores privados, dotados de poder contratual e legal para a definição de permissões e proibições de atividades nos tais “interstícios” entre as bolhas de uso privado — o que costumávamos chamar de espaços públicos.

As tentativas de eliminação e apagamento podem ocorrer de inúmeras formas, pelo uso ostensivo de tecnologias e práticas de vigilância e segurança (pública ou privada) [4], pela constituição de lugares marcados pelo con- sumo de alto custo, ou por estratégias mais explícitas de separação, como na chamada arquitetura hostil. O recente debate sobre arquitetura hostil no Brasil [5], em que os espaços públicos (como espaços sob pontes e viadutos, locais protegidos por marquises e fachadas de edifícios comerciais, ou bancos de praças e parques) são modificados para dificultar a ocupação por pessoas consideradas indesejadas (como a população em situação de rua), funciona como um termômetro da tensão territorial nos limites entre os espaços públicos e privados, e uma demonstração de como a população que não consome (ou que tende a consumir menos) é tratada nos espaços públicos. Uma combinação de todas essas formas de separação também é comum, ou seja, áreas de renovação urbana reformuladas para um consumo específico de elite ou turismo, equipada e gerida com tecnologias e técnicas ostensivas de segurança e controle, e projetada com mobiliários e equipamentos concebidos com elementos de uma arquitetura ou design hostis.

Arquitetura hostil no centro de Curitiba. Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo.

Há inúmeros exemplos para essas formas de violência e segurança nos espaços públicos, no Brasil ou no exterior, mas é importante notar como as disputas ocorrem sob pressão da já mencionada lógica de financeirização do mercado imobiliário e otimização das possibilidades de consumo do espaço urbano.

Para pontuar um exemplo fora do Brasil, ilustro com caso vastamente conhecido de renovação das áreas urbanas na cidade de Londres, no Reino Unido (modelo amplamente aplicado em outras cidades daquele país e em outros países do norte global). O The Guardian publica, desde pelo menos 2015, uma série de reportagens sobre o direito à cidade e ao que chama de privatização de espaços públicos. As excelentes reportagens exploram como tem se dado o processo de transformação de Londres por projetos de renovação urbana em parcerias público-privadas, em que grandes incorporadoras passam a gerir e explorar comercialmente enormes parcelas da cidade. Esse tipo de gestão tem sido criticado por, entre inúmeras razões, entregar a grandes grupos privados o controle, não apenas sobre propriedades privadas em áreas de alto interesse urbanístico, como também dos espaços públicos constantes no projeto.

Em “The privatisation of cities’ public spaces is escalating. It is time to take a stand” [6], Bradley Garrett explica em detalhes como essa lógica de reprodução da cidade — sob o conceito de POPS, também chamados de pseudo-public spaces — tem limitado direitos e liberdades no uso do espaço público. As empresas, gestoras dessas áreas, têm o direito contratual de prescrever como o espaço pode ser utilizado, proibindo diversas atividades que seriam corriqueiras em espaços públicos do mundo todo, como apresentações musicais, pregações ou discursos, ou mesmo protestos e manifestações políticas (como é o caso da área onde está localizada a própria prefeitura de Londres, administrada pelo consórcio More London). A quantidade de áreas totalmente públicas na cidade tem sido reduzida a um mínimo de difícil identificação [7]. Nesses espaços “privatizados” é o gestor privado, e não o poder público, que define o perfil de consumo e uso esperado para as áreas sob contrato. O espaço público passa a ser caracterizado, assim, pelo uso ostensivo de segurança e vigilância privada e pelo emprego formal de tipos de design hostis a presença de atividades e grupos considerados indesejáveis.

Área gerida pelo consórcio More London. Foto: Mace Group.

No Brasil, esse modelo chega com adaptações, sem grandes oposições críticas em destaque na grande mídia (com exceção dos acadêmicos e ativistas que sempre alertaram para as disputas presentes na reprodução do espaço urbano), recebidos de braços abertos por gestores públicos e legisladores, e não raramente alardeados como soluções técnicas para a gestão sustentável, inteligente e eficaz das cidades, para usar os temos da moda. O Labcidade, grupo de pesquisas sob coordenação de Raquel Rolnik (pesquisadora da FAU/USP), assim como o coletivo BrCidades, sob coorde- nação nacional de Ermínia Maricato (pesquisadora aposentada da FAU/USP), têm produzido extenso material que busca compreender e alertar para os riscos da neoliberalização urbana e dos grandes projetos de financeirização das cidades, o que Rolnik chama em seu livro mais recente de “guerra dos lugares”. Esses grupos têm destacado inúmeros exemplos brasileiros de projetos de intervenção urbana que seguem a lógica neoliberal de renovação urbana pela separação, expulsão e apagamento.

Um dos exemplos recentes mais conhecidos talvez seja o projeto do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro. Apesar das transformações mais lentas, se comparadas ao que vem ocorrendo em Londres, várias características são reproduzidas no modelo dessa proposta de renovação urbana: da configuração do negócio e as operações financeiras, ao uso de projetos de arquitetura de escritórios renomados, aos processos de segregação e gentrificação nos espaços públicos da região portuária carioca. É notório, relatado em diversas pesquisas e publicações, o processo de apagamento da memória da população negra nos bairros da zona portuária do Rio (Santo Cristo, Gamboa, Saúde e Praça Onze), historicamente conhecida como Pequena África.

As modificações previstas no projeto do Porto Maravilha incluíam a reconfiguração do uso dos espaços públicos nessas áreas para um perfil de consumo elitizado, supostamente mais compatível com as aspirações neoliberais fantasiosas de uma “cidade maravilhosa”. Assim, equipamentos urbanos como o Museu do Amanhã, o AquaRio (maior aquário marinho da América do Sul) ou a implantação do VLT Carioca (Veículo Leve sobre Trilhos), parecem ignorar a população e os usos do espaço público que existiam nessa área anteriormente ao projeto. Não surpreende, segundo essa lógica, o fato do trajeto da linha 3 do VLT, ligando o aeroporto Santos Dumont à estação Central do Brasil, passar indistinta e desrespeitosamente sobre áreas identificadas como pertencentes ao Cemitério dos Pretos Novos, sem que o trajeto fosse alterado, e nem que a memória do lugar e dos antepassados das comunidades negras fosse preservado com respeito [8]. Nenhum dos museus e nenhuma das reformas urbanas propostas e implementadas estabelece conexão com a história do lugar e das comunidades que o ocuparam.

Obras do VLT Carioca e escavações do Cemitério dos Pretos Novos. Foto: Márcia Foletto/O Globo.

Ao pensarmos o espaço urbano e sua relação com a violência e a segurança, cabe questionar que tipo de espaço público sob a ideia do comum e do coletivo deveria se propor diante de tamanha violência pelo apagamento, pela segregação e pelas consequentes ondas do efeito de gentrificação em projetos como os citados aqui. Enfim, penso que no escopo do urbanismo, violência e segurança não podem ser pensadas apenas sob o predomínio da segurança patrimonial e estratégias de vigilância, monitoramento e securitização (supostamente garantidores da lei e da ordem), mas devem conter preocupações com a memória dos lugares, com a garantia do uso coletivo da cidade, e com o fomento da busca por um comum urbano, capaz de respeitar diversidade e a coexistência de diferenças. A ideia de segurança urbana deveria abarcar a garantia do uso do espaço público como bem coletivo (e não individual ou de alguns), e se prestar a proteger direitos de grupos sociais historicamente excluídos do processo de garantia dos direitos por questões raciais, de classe, de gênero e sexualidade.

Publicado originalmente no Observatório do Espaço Público, abril de 2022.

[1] A partir de agora, passo a me referir a estes espaços simplesmente como espaços públicos, em intencional distinção de outros tipos de espaços públicos “fechados”, ou equipamentos públicos, como escolas, universidades, hospitais, bibliotecas, repartições públicas, etc. Ou seja, para todas as menções a espaços públicos deste texto, me refiro a espaços abertos como vias, praças e parques.

[2] Ver “Regeneration is too often an unfair fight between local people and global finance”.

[3] Ver, por exemplo, os Privately Owned Public Spaces (POPS) mais comumente associa- do aos projetos de intervenção urbana no Reino Unido, ou os Business Improvement Districts (BID), comumente encontrados nos EUA e Canadá.

[4] Ver Firmino R.; Duarte F. (2016). Private video monitoring of public spaces: The cons- truction of new invisible territories. Urban Studies, 53(4): 741–754. doi:10.1177/0042098014567064.

[5] Ver a excelente dissertação de mestrado “Sem descanso: arquitetura hostil e controle do espaço público no centro de Curitiba” por Débora Raquel Faria, do grupo Observa- tório do Espaço Público.

[6] Ver “The privatisation of cities’ public spaces is escalating. It is time to take a stand”.

[7] Ver “Pseudo-public space: explore the map — and tell us what we’re missing”.

[8] Ver “Está aqui, sob o VLT, o cemitério de escravos que a prefeitura do Rio dizia ser ‘especulação’”.

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