Sem olhar para trás: Museu do Amanhã e apagamento do passado

Juliana Marques
Jararaca
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9 min readAug 30, 2022

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‘Bandeira brasileira’, porLeandro Vieira. Foto: Fabio Souza/MAM

Embora haja um entendimento de desenvolvimento sustentável enquanto um conceito que engloba principalmente iniciativas de mitigação dos impactos da atividade humana causadora das mudanças climáticas, o conceito é aprofundado pela ONU em vários objetivos, distribuídos entre múltiplas áreas. No caso do Brasil, o décimo primeiro objetivo de desenvolvimento sustentável diz respeito à cidades e comunidades sustentáveis e, em seu desenvolvimento, traz como alguns de seus objetivos específicos garantir acesso à moradia e infraestrutura urbana, urbanização inclusiva e acessibilidade universal.

Este entendimento vai de encontro à elaboração de projetos de “requalificação” como o Museu do Amanhã. Essa requalificação é constantemente compreendida como uma “formalização” de um espaço de constituição “informal” — não planejada. Existem, porém, nesses espaços, vivências, tecidos sociais e memórias que podem ser apagadas a partir de um planejamento urbano não participativo, que desconsidera a relação usuário-espaço. Segundo Mario Rodriguez Ibáñez:

As cidades afiançaram seus centros urbanos. As novas ondas migratórias em direção às cidades, especialmente nas décadas de 1950 e 1970, colocaram as novas populações urbanas nos cinturões pobres não planejados. Reafirmou-se a ideia do centro-periferia marginal: um modelo que logo entraria em crise, porque a periferia era cada vez maior, mais envolvente, mais penetrante dos centros, mais ameaçadora. Nossas cidades começaram a pensar no “planejamento urbano”, típico da modernidade controladora. (IBÁÑEZ, 2016)

Portanto, a caracterização do conceito de sustentabilidade e sua aplicação no contexto urbano passa, necessariamente, por um entendimento diferenciado do planejamento urbano: a efetividade plena do que é entendido como desenvolvimento sustentável passa necessariamente por uma produção do urbano mais inclusiva, participativa e que leve em consideração os atores locais, suas relações com o espaço e sua construção identitária a partir da memória local no tecido social que se sobrepõe a rede urbana.

Museu do amanhã — um futuro que é construído sobre quais bases? apontando para onde?

Como infraestruturas e estruturas arquitetônicas se tornam não apenas aparatos técnicos, mas instrumentos discursivos fundamentais de construção de narrativas e por vezes controle e opressão de parte da população. Assim a questão que se pretende investigar é como, esse aparato técnico/ arquitetônico, o Museu do Amanhã se apresenta como um reflexo das dinâmicas sociais e econômicas presentes na cidade e reflete lógicas e narrativas dominantes sobre a revitalização de espaços públicos e sua finalidade nas cidades.

A questão se justifica, pois, analisar a paisagem da cidade não é uma tarefa simples, afinal, busca compreender as questões intraurbanas é se deparar com um território em constante modificação, contradição e disputa. Isso porque a cidade é, ao mesmo tempo, espaço vivido, de produção e de reprodução, mas é também onde as transformações econômicas, sociais, políticas e técnicas se misturam construindo diversas possibilidades de apropriação e controle do espaço (Corrêa, 2011).

Tais formas de apropriação e controle não se dão sem determinado grau de conflito, conflitos que se aprofundam devido às dinâmicas de desigualdade e segregação social, que parecem encontrar no desenho da cidade maneiras de se perpetuar. Quanto a isso Farage (2014) afirma que “a cidade passa a expressar de forma enfática as desigualdades das relações sociais”, assim, é importante destacar que o que parecem ser desigualdades geográficas casuais na verdade são fruto de processos históricos, não como resíduos, mas de construção e projetos deliberados, pois como afirma Harvey (2013) é preciso reconhecer que a coerência territorial e regional é ativamente produzida e não passivamente recebida, e a construção do Museu no Porto Maravilha não é uma exceção.

Este caminho é elucidado por Magnani (2002, p. 14–15), que, sobre o processo corriqueiro de análise do espaço urbano, afirma que os moradores das áreas afetadas por esses projetos e constituem, através de suas vivências, deslocamentos, conflitos, estilos de vida etc., “o elemento que em definitivo dá vida à metrópole”, acabam por serem ignorados no processo decisório, quando não tomados como parte passiva no processo de produção do urbano.

Dessas desigualdades e disputas, uma das consequências que tem tomado a centralidade da pauta urbana, é a violência. Este fenômeno é capaz de produzir significativas modificações na paisagem urbana, seja por iniciativas e estratégias adotadas pelos próprios cidadãos, interesses privados ou iniciativas públicas.

Segundo Caldeira (1997) “Com o crescimento da violência, da insegurança e do medo, os cidadãos adotam novas estratégias de proteção(…) o medo do crime acaba modificando todos os tipos de interação pública no espaço da cidade” e a resposta do poder público, que se traduz em ações de manutenção da segurança e mitigação do medo, por vezes se traduz em projetos de revitalização de determinadas áreas urbanas.

Estratégias e instrumentos de segregação espacial não são uma novidade no ambiente urbano do Rio de Janeiro, a própria história do surgimento, ocupação e existência das favelas demonstra este fato e políticas públicas que utilizam essa estratégia estabelecem um retrato dos corpos indesejados. Revelando, assim, os valores sociais desse momento, e tornando visíveis os vencedores e perdedores no jogo político (Capella, 2020).

Museu do amanhã — Controvérsia e atores mapeados

A construção do Museu do Amanhã pode ser considerada como parte de um grande projeto urbano, do Porto Maravilha, termo que segundo Saruê (2018) é um tipo bastante específico de política urbana que provoca alteração no uso e no valor do solo com efeitos em escala urbana territorial e mais ampla no contexto da cidade buscando a requalificação desses espaços e que: concentra e integra o projeto em um contínuo urbano, demanda investimentos de grande porte, exige flexibilização da legislação local e arranjos inovadores de articulação institucional intragovernamental e com setores privados.

A obra custou R$ 308 milhões, sendo R$ 215 milhões pagos com recursos arrecadados pela prefeitura com as Cepacs — os Certificados de Potencial Adicional de Construção, comprados por imobiliárias para ter poder construir empreendimentos mais altos que o definido pelo zoneamento da região portuária — e o restante obtido com patrocínio.

O Museu foi inaugurado em dezembro de 2015. A abertura do museu chegou a ser prevista para a época Rio+20 em 2012, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, mas alterações no projeto tornaram o prazo inviável, foi originalmente concebido pela Fundação Roberto Marinho.

As dimensões reduzidas do “parque ao redor do perímetro do cais” restringem as possibilidades de os visitantes se apropriarem do local para usufruir da paisagem da Baía de Guanabara. A proposta narrativa da exposição principal do museu é interessante. Para fazer o público refletir sobre “Que futuro queremos?”, indica que, inicialmente, é preciso que nos debrucemos sobre a tentativa de responder outras perguntas.

A proposta sugere que o caminho para falarmos de futuro passa antes por responder “De onde viemos?” e traz como elemento principal, um artefato que busca apontar para a resposta ao questionamento, um totem de povos originários! Que superficialmente aponta para a necessidade de conhecermos mais a história da invasão do Brasil, mas que na verdade deve ser lido como uma escolha estratégica de apagamento. O totem é uma churinga de povos originários da Austrália.

As estratégias de grupos sociais que sofreram e sofrem inúmeras tentativas de apagamento histórico, no Brasil pessoas indígenas e negras sobretudo, pelo direito à memória é parte fundamental para desvelar os mecanismos sociais e políticos que os afastam também de uma representação política mais igual e que podem ser potencializadas por projetos como o Museu do Amanhã, assim consideramos que esses processos tornam-se também, em alguma medida, uma barreira para maior elegibilidade política desses grupos.

Tendo como base a ANT (actor-network theory) será apresentado abaixo a relação de atores mapeados por agirem mediando a construção do futuro que o museu se propõe, um mediador segundo Latour (1994) age transformando. Pela ANT o social tem composição híbrida, podendo ser entendido como arranjo sociotécnico de entidades humanas e não humanas.

Aqui as setas indicam a possibilidade do sentido de relações mais diretas ou não, mas as linhas e tamanho das esferas não representam o poder de influência dos atores envolvidos na rede

https://public.flourish.studio/visualisation/7987525/

E apesar das justificativas extensas desse projeto e sua localização, que passam por questões de segurança, revitalização urbana e sustentabilidade alguns autores apontam que “O Museu do Amanhã surgiu em resposta ao desejo compartilhado por dirigentes municipais e investidores interessados em produzir o símbolo de um processo excludente de renovação urbana, concebido por um arquiteto interessado em afirmar sua genialidade em um lugar qualquer” (Rheingantz, et al).

Em dezembro de 2021, o museu venceu o Prêmio Atitude Carioca 2021, promovido pela Câmara de Comércio e Indústria do Estado do Rio de Janeiro (Caerj), na categoria “A Cara do Rio”, destinada a espaços culturais que valorizam a história do Rio de Janeiro. Contra-projeto: Direito à memória — Negar o ontem é construir o amanhã sobre a mentira.

Tentamos resgatar o processo de troca com a comunidade local e sociedade civil organizada no contexto da construção do Museu do Amanhã, acessar com a equipe interna o que foi documentado na ocasião, não tivemos resposta sobre essa preocupação de situar o museu como um espaço de engajamento com a população do Rio de Janeiro e as comunidades vizinhas.

A discussão construída a partir da controvérsia abordada no presente trabalho, não é apenas sobre uma batalha historiográfica, mas sim sobre uma trama as quais as perguntas permanecem sem respostas: qual o amanhã que queremos? Quais marcas do passado levaremos para o futuro? qual verdade queremos contar? É neste sentido que a “memória das resistências” esmagadas pelo “Museu do Amanhã” não podem morrer, é uma tarefa ética, politicamente ideal e contemporânea.

A maneira como o Museu (des)ocupou o território, sobre a resistência periférica, sobre a assimetria social, “desloca” a memória na história do Rio, nega a verdade vivida pela população carioca, verdade a qual, o “poder” tentou apagar. Se há luta em busca da memória, é porque é um direito mais que fundamental, o de contar a verdade através dos fatos. Uma história de crise social e urbana, que afetou e afeta milhões de pessoas, e que vem sendo apagada facilmente frente a necessidade do setor privado.

Outro problema evidente a partir da inserção do Museu, diz respeito ao lugar do esquecido, derivado da história. É um dever social não esquecer, dos atores humanos, vivos ou mortos, e não humanos, presentes na construção da memória coletiva local.

A busca por um amanhã em compromisso com o passado precisa ser uma luta global. Não se pode apagar a história, varrer vidas a favor do mercado, trocar o desenvolvimento social pelo crescimento econômico, embora o cenário de pobreza seja rechaçado por muita gente é o retrato de uma parcela infinitamente maior, “maquiar” não é a solução, e é isto que o Museu do amanhã, simboliza como artefato, a construção do futuro, em negação ao passado.

O capital financeiro não pode ditar as regras, e sim a necessidade da população, embora o primeiro seja a escala no qual opera a urbanização, a cidade é um direito de todas e todos, só um olhar aos reais problemas e demandas sociais para proporcionar qualidade, dignidade, fomentando o desenvolvimento. Embora uma tarefa política desafiadora, são muitas as oportunidades, como a própria história local (ou mundial) revela, crises emergem de forma repentina em meio a urbanização, como ponto massivo de colisão entre as desigualdades.

Um caminho possível na unificação dessas lutas, é incorporar o direito à memória como lema político de (re)urbanização, justamente pela memória ser capaz de promover o elo identitário entre o território/artefato e seu usuário. A memória deve ser revisitada, consultada, respeitada, preservada e principalmente, passada adiante, seja no entorno do Museu, ou no seu acervo em si, mais do que um dever moral, é um compromisso com os atores esquecidos, negados, negligenciados, subalternizados, e que existiram num passado para que pudesse haver um amanhã.

Texto produzido para a disciplina de Tecnopolíticas Urbanas ministrada no segundo semestre de 2021 como parte do Mestrado em Gestão Urbana da PUCPR

Autores: Juliana Marques, Mariana Kauchakje, Marco Mariano e Wanderson Schmidt

Referências:

CALDEIRA, Teresa P. do Rio. Enclaves fortificados: A nova segregação Urbana. Tradução do inglês: Heloísa Buarque de Almeida. São Paulo, 1997

CAPELLA, Cláudia Niedhardt. “Formação da Agenda Governamental: Perspectivas Teóricas”. Trabalho apresentado no GT Políticas Públicas do XXIX Encontro Anual da ANPOCS, 25–29 de outubro, Caxambu: MG. 2005

CORRÊA, R. L. Denis Cosgrove — A paisagem e as imagens. Espaço e Cultura, Rio de Janeiro, RJ: Universidade do estado do Rio de Janeiro — UERJ(29):7–21, jan./jun. 2011

FARAGE, J. Eblin. Experiências profissionais do Serviço Social nos movimentos sociais urbanos. In: ABRAMIDES, Maria Beatriz; DURIGUETTO, Maria Lucia. (Orgs.) Movimento Sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014.

HARVEY, David. Os limites do capital. 1.ed. São Paulo: Boitempo editorial, 2013.

IBÁÑEZ, M.R. Ressignificando a cidade colonial e extrativista. In: LANG, M.; DILGER, G.; NETO, J.P. DESCOLONIZAR O IMAGINÁRIO — Debates sobre o pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Paulo: Editora Elefante, 2016. p. 296–333.

LATOUR, B. On technical mediation. Common Knowledge, 3(2): 29–64, 1994.

MAGNANI, J.G.C. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online]. 2002, v. 17, n. 49.

RHEINGANTZ, P., Ribeiro, Angotti, Sbarra. Arena do Morro e Museu do Amanhã: dois lugares em ação. URBE, 2017

SARUÊ, B. Quando grandes projetos urbanos acontecem? Uma análise a partir do Porto Maravilha no Rio de Janeiro. DADOS, 61(3), 581– 616, 2018.

SARUÊ, B. Os capitais urbanos do Porto Maravilha. Novos Estudos — CEBRAP, 35(02), 78–97, 2016.

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