31 anos depois, tive minha “primeira vez” com Tieta (Parte 1)

Disponibilizada na íntegra no Globoplay, eu pude finalmente assistir Tieta — ao menos a metade dela.

Johnatas Costa
#JhCritica
8 min readAug 11, 2020

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(Logotipo/Rede Globo)

Desde que foi lançado em 2015, o Globoplay recebe dois grandes pedidos dos seus assinantes: 1) que eles melhorem o player da plataforma, que está longe de equiparar-se à sua maior concorrente Netflix; e 2) que a Globo disponibilize a maior preciosidade do seu acervo, as suas telenovelas. Cinco anos se passaram e finalmente o segundo pedido começou a ser atendido. Desde 25 de maio, o Globoplay disponibiliza a cada 15 dias uma novela clássica. Já constam na plataforma, A Favorita (2008), Explode Coração (1995), Vale Tudo (1988) e Torre de Babel (1998), porém muitas outras devem integrar o catálogo do app em breve. Dentre as que foram incluídas nessa primeira leva está Tieta (1989), trama inspirada no livro homônimo de Jorge Amado e escrita por Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn.

Como uma pessoa que cresceu assistindo e se apaixonou pelo gênero da teledramaturgia, Tieta não era uma novela estranha para mim. Já conhecia o básico da história, os personagens mais icônicos, alguns bordões famosos e cenas emblemáticas. Porém, me faltava ainda conhecer a novela em si, capítulo a capítulo, o desenvolvimento de cada personagem. Eis o momento! Com uma ajudinha da pandemia da COVID-19, que provocou uma pausa na produção de todos os folhetins inéditos no País, eu e minha família decidimos (re)assistir à novela. Enquanto a Globo exibe, na TV aberta, a péssima Fina Estampacoincidentemente do mesmo autor — , nós maratonamos de 2 a 3 capítulos por dia no Globoplay. A experiência de assistir à novela na íntegra pela primeira vez me motivou a escrever esse texto. A partir desse momento, eis uma análise da clássica obra de Aguinaldo Silva feita por alguém que está acompanhando a história 31 anos depois de lançada.

OBS.: Esta resenha está baseada nos primeiros 100 capítulos da novela. Portanto, muita coisa pode mudar quando eu a finalizar. Mas só o futuro dirá quanto a isso…

Propaganda de divulgação da novela no Globoplay

TIETA E SUA NARRATIVA (MUITO) SIMPLES

O estalo para fazer esse texto foram os primeiros 15 capítulos de Tieta. Me chamou a atenção como as tramas foram sendo contadas. Durante toda essa primeira metade da novela as coisas são apresentadas duma forma mais lenta, ou melhor, comedida. Não havia pressa para apresentar as histórias e isso vai ficando nítido com o passar dos capítulos. Claro, estamos falando de uma outra época, 1989, e de um outro modo de fazer novela. Era preciso segurar o povo em frente à TV o máximo possível, aumentando assim a quantidade de capítulos — Tieta teve 197! — e, consequentemente, elevando a audiência — haja vista que estamos falando de um produto que precisa gerar lucro para a empresa. Dessa forma, com quase duas centenas de capítulos para serem produzidos, não é preciso rapidez no desenvolvimento de nenhuma trama.

É preciso destacar também a própria mudança na noção de tempo. Hoje em dia, as coisas estão mais rápidas ou, pelo menos, essa é a sensação. Atualmente, temos uma internet superveloz, celulares, computadores e tablets cada vez mais modernos, redes sociais e serviços de streaming. O dinamismo que esses e tantos outros elementos provocaram no nosso dia a dia foram parar na TV e as novelas tiveram que se adequar. Devido à forte influência dos seriados, as novelas tornaram-se mais ágeis e mais curtas (saímos de 200 para 155 capítulos, no máximo, dentro do padrão Globo). Tudo isso é levado em consideração ao pensar que a narrativa de Tieta é mais “lenta”.

Reforço que não tomo essa lentidão como um demérito; Como disse, era uma caraterística da época. O que realmente me chama a atenção é uma calmaria mais prolongada, ou seja, existem pequenas histórias que demoram uma boa quantidade de episódios para se resolverem, quando fica claro que poderiam ser solucionadas de forma abreviada. Destaco alguns momentos:

  • Passamos a primeira semana inteira com a vilã Perpétua (Joana Fomm) cobrando o cunhado Timóteo (Paulo Betti) um dinheiro que lhe havia roubado. Entre ameaças e confusões passamos mais de 5 capítulos numa história que talvez fossem resolvidos em, no máximo, 3 se fosse na atualidade;
  • Entre os capítulos 50 e 60 duas pequenas ações ganham largas dimensões: a primeira envolve Ascânio (Reginaldo Faria) e uma carta destinada à sua ex-mulher Helena (Françoise Forton). Do momento em que ele recebe a carta e a lê são passados 3 capítulos! A outra ação corresponde uma simples reunião que Tieta (Betty Farias) marca com sua família. Do momento em que ela agenda o encontro, até a sua realização decorrem-se também 3 capítulos.

É muito interessante notar como caminha a narrativa da trama. Esses são três exemplos, mas existem vários outros. O próprio retorno de Tieta à Santana do Agreste (cidade fictícia da história) demora 15 capítulos para acontecer! O ato necessário na época (Betty Farias precisava de um descanso e um preparo maior, pois tinha acabado de sair da novela anterior, O Salvador da Pátria) e, no mínimo, corajoso dos autores é mais uma ilustração do que destaquei acima. São nesses quinze episódios que acontece o, já mencionado, conflito entre Perpétua e Timóteo, o que não deixa de ser uma boa oportunidade para os telespectadores perceberem bem a vilania personagem e para conhecer outras figuras da cidade. Mas também um bom momento para notar a vagareza com o que as histórias são desenroladas.

UMA DAS MARCAS REGISTRADAS DE AGUINALDO SILVA

Atrelado à narrativa, está o roteiro da história. Nesse elemento, é possível notar uma das marcas registradas de Aguinaldo Silva, o autor principal da trama: a hiper conectividade entre algumas cenas.

Explico: um fato relevante acontece e a partir daí várias cenas se sucedem com vários personagens comentando a situação principal. Houve momentos que umas 5 ou 6 cenas, sempre curtas, vale frisar, vieram em sucessão a uma cena mais relevante. Os exemplos são inúmeros, mas podemos mencionar o retorno de Tieta, a separação de Helena e Ascânio e a chegada da “teúda e manteúda” de Modesto Pires (Armando Bógus) à cidade.

A vantagem desse tipo de roteiro é que muitos personagens coadjuvantes e de apoio volta e meia estão na tela e você, enquanto telespectador, acaba reconhecendo praticamente todas as pessoas de Santana do Agreste porque elas estão quase sempre em todo capítulo, mesmo que muito brevemente. Devido a esse formato, eu até brinco que Tieta poderia facilmente se chamar Fuxico, Fofoca e afins, porque tem sempre alguém comentando um fato que ocorreu com outro personagem.

AQUELES QUE MORAM “NO AGRESTE”

Um dos maiores trunfos de Tieta é, sem dúvidas, os seus personagens e o elenco que os interpretou. Tipos muito característicos e bem marcados, quase todo mundo encanta e entretém com facilidade. Para além das irmãs Esteves, a protagonista Tieta e a vilã Perpétua, interpretadas brilhantemente por Betty Faria e Joana Fomm, respectivamente, é preciso destacar outras figuras emblemáticas de Santana do Agreste.

Betty Farias e Joana Fomm (Acervo/Globo)

As minhas personagens prediletas são Dona Milu, a dona da pensão, e Carmosina, funcionária dos Correios. Ambas são mãe e filha na trama e a química das atrizes, Miriam Pires e Arlete Sales, respectivamente, é fantástica. É impossível você não simpatizar com elas. Fofoqueiras, as personagens se encaixam perfeitamente no modelo de roteiro que mencionei acima. Elas estão sempre comentando sobre algum fato que está acontecendo na cidade.

Outros personagens muito carismáticos são os mulherengos e debochados Osnar (José Mayer) — desde já meu trabalho predileto do ator — e Amintas (Roberto Bomfim); as fogosas beatas Amorzinho (Lilia Cabral) e Cinira (Roseane Gofman); o sobrinho e paixão de Tieta, o “padreco”, Ricardo (Cássio Gabus Mendes); o impaciente Padre Mariano (Claudio Correa e Castro); o hilário Bafo de Bode (Bemvindo Sequeira); a sofrida e submissa Tonha (Yoná Magalhães); o adúltero e atrapalhado Modesto Pires (Armando Bógus) e o avarento detestável Zé Esteves, pai da protagonista e da vilã, um ótimo trabalho de Sebastião Vasconcelos.

José Mayer, Roberto Bomfim, Arlete Sales, Yoná Magalhães, Miriam Pires e Armando Bógus são algumas das estrelas da novela. (Reprodução)

Há de se destacar uma bela sequência envolvendo Zé Esteves e os seus familiares. No capítulo 74, o senhor — com claros problemas mentais, devido a velhice e à falta de cuidado com o corpo — entra em confronto com os seus parentes em busca de dinheiro. Achando que tem total direito sob a herança da filha rica, ele tenta conseguir a todo custo algum vintém e em meio a isso solta os seus demônios: reconhece que foi um péssimo marido para a esposa Tonha e um péssimo pai para as suas filhas. A ganância do personagem, que até aquele momento era notável, ganha novos contornos. É um ótimo trabalho de roteiro, elenco e direção, e com certeza um dos momentos de destaque na trama como um todo.

CONCLUINDO (POR AGORA)

A experiência de assistir uma novela clássica anos depois do seu lançamento é um exercício interessantíssimo e diria até imperdível para quem gosta do gênero. É curioso assistir um outro jeito de fazer teledramaturgia e de confrontar a mentalidade da época em que ela foi produzida com a nossa realidade.

Por exemplo, não posso encerrar esta análise sem mencionar a problemática história do Coronel Artur da Tapitanga (Ary Fontoura) e suas “rolinhas” (garotas menores de idade que ele compra de famílias pobres com a promessa de que fará elas aprenderem “a ler e a escrever”). A pedofilia contida na história, porém numa mostrada de forma explícita, é controversa hoje e, sem dúvidas, era no passado. Não dá para naturalizar. Por sinal, vale destacar que esse núcleo é o menos cativante.

As várias tentativas do Coronel em possuir sexualmente a jovem Imaculada (Luciana Braga) fica muito enfadonha com o passar dos capítulos e aí o núcleo fica rodando em círculos em diversos momentos, com direito a falas repetidas: “E quando o Coronel cansar de suas histórias, Imaculada? O que você vai fazer?”, “O meu príncipe vem me buscar, Filó!”. São diálogos como esses, ditos ad nauseiam, que ajudam o núcleo a ficar desinteressante. A grande virada e o momento mais empolgante dessa trama só acontece no capítulo 80 quando Imaculada foge da fazenda e do Coronel, ou seja, boa parte desta primeira metade da novela estes personagens não são nada atraentes.

Coronel Artur da Tapitanga e suas “rolinhas” (Bazilio Calazans/Globo)

Em contrapartida, Tieta surpreende com um discurso ambiental, na boca do Comandante Dário (Flávio Galvão), que segue sendo bem atual. O cuidado com as praias, a proteção de áreas ambientais mais isoladas e uma cautela com o progresso desenfreado em zonas litorâneas é algo que se discute no Brasil de 2020. Mas que, infelizmente, mostra que pouco mudamos trinta e um anos depois.

Como disse acima, esta análise se baseia nos 100 primeiros capítulos de Tieta e até agora so far, so good, como dizem os ingleses. A novela tem inúmeras qualidades e vale a pena ser assistida. Para quem gosta do gênero é um ótimo exercício de como escrever uma novela e para quem assistiu a trama décadas atrás é uma excelente oportunidade para rever o clássico. Agora, só retorno quando a palavra “FIM” surgir na tela.

Até a volta, Tieta!

(Acervo/Globo)

Leia sobre a história, os personagens e os bastidores de Tieta nos sites Teledramaturgia e Memória Globo.

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Johnatas Costa
#JhCritica

Um mestrando em História noveleiro, fã da Madonna e que adora dar pitaco em tudo que pode