#JhCritica: Beyoncé — The Lion King: The Gift + Black is King

Os trabalhos inspirados em ‘O Rei Leão’ não só superam o filme, como elevam Beyoncé a um patamar ocupado por poucos

Johnatas Costa
#JhCritica
5 min readAug 10, 2020

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(Divulgação)

Na canção Black Parade, Beyoncé canta “Nós temos ritmo / Nós temos orgulho / Damos à luz a reis / Damos à luz a tribos” e isso por si só resume os seus trabalhos mais recentes: o disco The Lion King: The Gift (inspirado na história do filme O Rei Leão) e o seu respectivo filme musical Black is King. Ambos são uma profusão de ritmos, danças, cores e simbolismos que viciam os ouvidos e encanta os olhos de quem o vê. Tanto o disco como o filme têm como narrativa principal a importância da ancestralidade para a população negra. Se em O Rei Leão o personagem Simba aprende o quão importante é a sua permanência junto aos seus e o respeito que se deve ter ao legado que veio antes dele, nos trabalhos aqui analisados Beyoncé e seus inúmeros colaboradores trazem essas perspectivas para os seres humanos, em especial os pretos.

Desde o início com a etérea Bigger (“Se você se sentir insignificante, é melhor pensar novamente […] Você é parte de algo muito maior […] Não apenas algumas palavras em um versículo da bíblia / Você é a palavra viva”), até o final, com a épica Spirit (“Seu destino está chegando / Levante-se e lute”), há uma mensagem sendo transmitida: é preciso que os negros conheçam a sua história, a sua ancestralidade e reconectem-se com ela. Através de composições — muitas vezes simples e nada sutis, que mesclam o inglês com idiomas africanos, como o yorubá — e visuais encantadores, são enaltecidas as glórias e grandiosidades que formam as inúmeras sociedades africanas e que compõe o histórico dos seus descendentes diretos e indiretos na América.

Nesses dois trabalhos da cantora, os momentos de dor, sofrimento e crueldade causados pelo colonialismo e que são sempre destacados por aqueles que falam sobre a História dos Negros no continente americano ganham um novo espaço. Eles não são simplesmente ignorados, mas sim ressignificados, a exemplo da bela e empoderada Brown Skin Girl, na qual se canta “a mesma pele que foi quebrada é a mesma que chegou chegando”. Ou como canta Beyoncé na faixa inicial, “você é parte de algo muito maior / maior que você, maior que nós / maior que a imagem que eles nos moldaram para ver”. Em suma, a mensagem que fica é: nós, pretos, somos maior que o passado e o presente de violência que nos cerca e que teima em nos definir, somos grandes, belos e majestosos.

O sentimento de realeza é uma constante durante as duas produções [vide o nome do filme musical], obviamente devido a sua inspiração: a película da Disney. Na envolvente Mood 4 Eva, Jay-Z é categórico: “Porque verdadeiros reis não morrem, nós multiplicamos”; já Childish Gambino afirma: “Nobreza no meu sangue, eu comando o reino”. Na sequência Keys To The Kingdom (“Você é o remédio, não sabe o que tem dentro de si / Mas você é a chave para o reino”), Already (“Seja seu próprio rei / Não deixe ninguém vir governar seu mundo”) e My Power (“Eles nunca tomarão meu poder, meu poder / Eles se sentem tão superiores”), Beyoncé e inúmeros artistas do afrobeat celebram este sentimento de soberania que a população negra deve possuir dentro de si. No filme, isso é demarcado por cores, belas imagens e coreografias de tirar o fôlego.

Já que o mencionamos, vale frisar que Black is King é uma obra de arte que não se vê todo dia. A exuberância de tons, locais, figurinos e simbolismos estão a serviço da exaltação da negritude e evocam a beleza que permeia a comunidade negra (seja na América ou na África). Os temas, influências e referências que compõe o material audiovisual é tão vasto que qualquer análise apressada pode gerar erros ou vão implicar uma falta de conhecimento em África e suas variadas sociedades e culturas. Custará aos fãs da cantora e/ou estudiosos de assuntos correlatos a identificar todas elas (ou, pelo menos, a maioria). Por ora, recomendamos ler o texto da doutora em Literaturas Africanas, Aza Njeri, que procura dissecar ao máximo o projeto da artista. Entre as várias afrorreferências identificáveis estão a, já citada, ancestralidade, as deidades femininas africanas, o afrofuturismo e os impérios de Gana e Mali.

O que já é notável, mesmo sem um conhecimento profundo e especializado sobre os assuntos que compõe o filme, é que ele não só eleva, como fixa Beyoncé em um patamar na indústria musical ocupado por poucos. A artista está em um estágio em que suas obras não só falam por si, como ultrapassam a “bolha” da música e geram debates no campo sociocultural. Na atualidade, não cabem somente aos críticos musicais avaliarem os seus trabalhos, especialistas em cinema e estudiosos das ciências humanas já podem levar o nome da artista para as suas análises.

Projetos como The Gift e Black is King foram feitos para entreter e, acima de tudo, fazer pensar e surpreender. Em Black Parade, a artista deixa explícito que os registros irão causar comoção e produzir críticas: “Ser negra, talvez seja esse o motivo / De eles estarem sempre incomodados”. A cantora não quis trazer inúmeros artistas do afrobeat e afropop para o seu catálogo somente para enaltecê-los, ela quer que o público vá atrás deles e consumam os seus trabalhos. As composições, elaboradas com inúmeros vocábulos do Yorubá, por exemplo, servem para instigar os nossos ouvidos e, de alguma forma, desmistificar nossos preconceitos mais primários com relação às sociedades africanas. Para além da beleza que estes trabalhos possuem, é importante que essas ideias fiquem em nossas mentes e nos movam de alguma forma. E principalmente, para as comunidades negras, que sejam materiais de representatividade.

Desde 2013, Beyoncé vem seguindo um caminho ascendente de remodelação de imagem, atitude, estética e musicalidade. Estes projetos inspirados em O Rei Leão são o ápice desse trajeto. Não sabemos o que esperar dela, mas desde já temos conhecimento que será ainda maior que o apresentado até então.

Ouça:

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Johnatas Costa
#JhCritica

Um mestrando em História noveleiro, fã da Madonna e que adora dar pitaco em tudo que pode