Dia dos namorados: Autistas namoram(?)

Jo Melo
jomelo

--

Autistas namoram? A pergunta nem deveria ser essa. Mas, talvez, "Autistas querem namorar?"

As pessoas têm mania de colocar o transtorno na frente de qualquer situação, como se isso nos fosse impeditivo de fazer as coisas, como se autistas não tivessem vontade de se relacionar, assim como qualquer outra pessoa.

Pode ser que, sim, autistas queiram namorar, também pode ser que não, e tudo bem. Isso faz parte da escolha pessoal de uma pessoa.

No meu caso, falando especificamente de mim, meus relacionamentos sempre duraram muito pouco, principalmente por conta da minha rigidez cognitiva, o que fazia com que a comunicação fosse totalmente escassa. Óbvio que isso ainda é muito comum, mas é preciso achar uma pessoa que entenda ou seja igual, para que a situação seja a melhor possível.

Como uma mulher afroindígena, ter um relacionamento — levando em consideração a questão de raça — sempre foi difícil também. Aliás, ser uma mulher, ser uma minoria, já é dificultoso. Pois a gente sabe que gosto é construção social.

O racismo estrutural faz com que as pessoas escolham, desejem e queiram casar apenas com outras pessoas brancas, e pessoas não brancas passam a ser objetos de prazer, olhadas somente para satisfação sexual e nada além disso.

Então, na minha vida, as duas questões, o autismo e a questão de raça, sempre estiveram à frente em relação a namoros e casamento. (Já fui trocada por mulheres brancas e sem filhos).

Eu sempre fui abandonada nos relacionamentos. Só teve uma vez que eu pedi para não continuar; eu fui casada por cinco anos e não aguentei mais viver num relacionamento abusivo.

Sobre a pergunta do post: se autista namora, é difícil ter um relacionamento em que as pessoas não entendem você, em que você é sempre aquela que não entendeu as coisas, aquela que te veem como tão frágil ao ponto de parecer que você é burra. Só que ser autista não é sinônimo de burrice.

Qualquer relacionamento tem suas dificuldades. Tentar entrar em consenso, relacionado a uma coisa que é viver junto, é óbvio que isso será uma questão para todo mundo que se relaciona, mas quando a gente faz o recorte para o autismo e para a questão racial, aí o negócio fica mais difícil.

Ser preterida nesses dois sentidos, ser vista como uma pessoa ingênua ao ponto de usarem o seu corpo ou de te manipularem para que você faça as coisas. É difícil se relacionar quando se é autista, e muitas pessoas preferem ficar sozinhas ao invés de ter que mudar todas as suas questões internas ou se adaptar ao outro, sendo que está tentando se adaptar a si mesmo.

É difícil uma pessoa autista namorar, mas não é impossível. Isso não tem só a ver conosco, é culpa de uma sociedade que não está preparada para o diferente. É culpa de uma sociedade racista, machista, homofóbica.

Autistas namoram, sim, mas não é fácil, e não é porque nós somos pessoas difíceis ou com rigidez cognitiva; é porque a sociedade quer que a gente se comporte como neurotípicos. E aí o embate vem.

Por isso que é muito comum, pelo menos eu tenho observado isso nas minhas redes, não tem nenhum dado sobre o assunto, que pessoas neuroatípicas geralmente se dão melhor em relacionamentos com outras pessoas também neuroatípicas. Autistas com TDAH, autistas com pessoas com transtornos de ansiedade, enfim, são pessoas que viram em si mesmas que as vivências são bastante parecidas e que conseguem sim se relacionar.

Todo o relacionamento tem seus percalços, não é porque uma pessoa é neurodivergente, que a culpa será dela. Relacionamento é feito de duas pessoas.

Novamente, sobre a pergunta do post: autista namora? Sim, mas depende da escolha dessa pessoa. Pais e mães atípicos precisam estar preparados para essa conversa. Não dá para colocar uma pessoa na redoma a vida inteira. A gente sabe que existem níveis de suporte, mas isso não quer dizer que uma pessoa autista nível 3 de suporte não queira se relacionar, ao mesmo tempo que uma pessoa nível 1 de suporte queira se relacionar.

Autistas são seres humanos com vontades como todo mundo; a gente só funciona de um jeito diferente, independentemente do nível do suporte. O jeito é diferente. Cabe àqueles que são o nosso suporte, pais, mães, irmãos e toda a sociedade entenderem que a gente funciona assim, e tudo bem.

Muitos de nós quer ter um relacionamento, quer ter filhos, quer casar, e muitos de nós já têm isso, e também não quer dizer que somos menos autistas porque temos relacionamentos. Que fique claro.

--

--

Jo Melo
jomelo
Editor for

Mãe, autista/tdah com hiperfoco em escrita, premiada na Suíça, escrevi 7 livros. Aqui, escrevo sobre autismo, mulheres, maternidade. Veja + em @jomelo.escritora