Cheetos e Cantina da Serra
— Com 10 eu comprava um Cantina da Serra e um Cheetos.
— Meu Deus, que bomba de combinação.
— É o mesmo efeito de um vinho caro e uma porção de fritas de 50 reais.
Após esse diálogo, que ocorreu entre alguns amigos meus, fiz uma breve pesquisa pelas informações nutricionais do Cantina da Serra no Google e comparei com um vinho que tinha aqui em casa, que era cinco vezes mais caro — e que ganhei de presente, antes que pensem que eu tenho salário pra isso. Nessa pesquisa vi que basicamente tem calorias, carboidratos e proteínas muito parecidos. Ou seja, os efeitos no corpo são praticamente os mesmos, mas há um que é percebido como horrível e outro, como excelente. No dia seguinte me deparei com um vídeo que viralizou do youtuber Vinheteiro arremessando uma privada dizendo que ali estava a música brasileira atual. A possibilidade daquilo ser um caso isolado passou pela minha cabeça. Mas quando parei para ler os comentários e lembrar de vários momentos em que pessoas próximas me disseram ter esse mesmo sentimento, percebi que era uma percepção popular. De que a música brasileira atual é ruim, imoral, sem qualidade e horrível, em comparação com as músicas das gerações passadas. É aqui que vi o cantinão da serra e o funk andando de mãos dadas, encarados como ruins por olhares míopes e enviesados. Não sou sommelier, nem crítico musical, em nenhum momento esse texto dirá o que é bom ou ruim. Vim dizer que essas divisões entre o que presta e o que não presta descartam o fator mais importante no consumo tanto do vinho quanto da música: a função.
FUNÇÃO DA MÚSICA
Há uma falácia da publicidade que diz haver uma infinita variedade de produtos para atender todos os gostos. Dando assim a ideia de que você realmente escolhe por si só o que quer e, a partir disso, consome. Jessé Souza em sua obra A classe média no espelho diz:
“Para egos infantilizados e inflados, existe a ideia de que cada indivíduo define sua vida, seu conceito de felicidade e seus próprios valores. O resultado concreto disso são indivíduos dóceis e tradicionalistas na esfera pessoal e pública — e também consumidores ávidos num mercado que sempre oferece algum produto certo para acalmar a ansiedade e insegurança existenciais”.
A ideia de que temos gosto musical x e y porque decidimos que aquilo era o melhor serve apenas para nos aproximar do lugar em que nos sentimos mais seguros, e tudo bem, isso não é um problema — ou talvez seja, mas é assunto pra outro texto. Porém, é preciso entender que músicas têm funções diferentes, e que você provavelmente não gosta de alguma não porque ela seja ruim, mas porque não tem utilidade no contexto em que você foi moldado. Por exemplo, a MPB surge nos anos 60 durante a ditadura militar, com seus expoentes sendo intelectuais e estudantes. A música como forma de expressão, esquivando da censura que existia na época, tornou-se um grito de ativismo político, de reflexão ideológica e afins, essa era a função da MPB. Por outro lado, o funk nasce no subúrbio do Rio de Janeiro, no início dos anos 90, nos famosos bailes. O suburbano, trabalhador precarizado, tem como meta usar a música apenas para alcançar o que ele entende por alegria da maneira mais direta possível, nos prazeres mais primitivos — no sentido pleno da palavra, como o primeiro prazer, o mais simples e original da espécie humana — que é alcançado com dança, letras vislumbrando os sonhos de consumo, falando da pura realidade que o cerca, sem necessidade de reflexão ou interpretação. É aqui que o funk desempenha sua função muito bem. Não há motivo para uma letra na mpb falar sobre a vontade de dar rolê de nave a 200 km/h e ter uma mansão, porque ou ele já tem, ou não é objeto de desejo no seu meio. Então a música só vai ser atraente quando compatível com sua realidade, seja a econômica ou moral, na qual cada indivíduo já nasce inserido. Porém, nesse contexto, muito é dito sobre a degradação moral de muitos gêneros musicais, principalmente o funk. Mas será que essa deformação moral é exclusividade do funk e da atualidade?
O IMORAL É ATEMPORAL E PLURAL
Tenho um amigo que há eras é conhecido por ser mão de vaca. Mas na verdade ele só aprendeu a ter responsabilidade financeira mais cedo, e por isso juntou uma boa grana. Porém, isso fez com que, não importa o que ele faça — mesmo que ele compre um quadro do Romero Britto, uma luva do Michael Jackson, um curso de finanças da Nathalia Arcuri ou qualquer outra coisa absurdamente cara e inútil — ele sempre vai ouvir um “cara, você é muito mão de vaca” caso ele não queira ir num rolê porque achou caro. Não fosse a fama de mão de vaca, ele só seria alguém financeiramente responsável . Quando algo é repetido a ponto de virar a opinião comum, passamos a ter um olhar tendencioso. Assim, quando já se espera que uma música de certo gênero seja imoral, estamos fadados a encontrar o imoral e apontar o dedo. O fenômeno reverso acontece. Se há uma música em que esperamos ouvir coisas profundas e reflexivas, encontraremos o que esperamos, mesmo nos discursos mais rasos. Com uma voz fofa e um violão até o Tiago Iorc parece profundo — com exceção de “Desconstrução” que realmente é incrível. Mas no fim das contas, há como achar de tudo, moral e imoral, raso ou profundo, em todos os gêneros e desde sempre. Vamos a alguns exemplos:
Claudinho e bochecha — Nosso sonho
É um funk melody sobre um MC que se apaixona por uma garota de 12 anos durante o show. Isso mesmo, 12 anos! Eles cantam: “Mas tudo isso porque eu me sinto coroão, tu tens apenas metade da minha ilusão, teus doze aninhos permitem somente um olhar.”
Os venerados Claudinho e Bochecha aparentemente não enxergaram nada imoral em um homem de 24 anos ter atração por uma menina de 12. Assim como no caso recente do rapaz de 19 anos namorando uma menina de 12 ferveu a internet, e com razão.
Hey Joe — Jimmy Hendrix:
Um clássico do rock, “Hey Joe” ficou conhecido pelo seu solo icônico. Porém, a letra da musica precisa de atenção. Jimi Hendrix conversa com “Joe”, um homem que está por aí andando com uma arma na mão querendo matar a sua namorada porque pegou ela flertando com outro homem. O compositor não impede o personagem de realizar o crime e ainda reencontra com ele depois do assassinato aconselhando-o a correr e ir embora da cidade, ele canta:
“Hey Joe, you better run on down”
Quando se coloca um solo de guitarra arrebatador nada imoral pode acontecer, né?!
As mina pira — Fernando e Sorocaba:
A música de Fernando e Sorocaba virou um dos hits do sertanejo nos últimos anos. A música se passa em uma festa com churrasco, bebida, piscina e praia durante um dia inteiro. Apesar de parecer ingênua e festiva, o refrão da canção encoraja a relações com mulheres que não estão tão conscientes, eles cantam:
“As mina pira, pira, toma tequila, sobe na mesa, pula na piscina. As mina pira, pira, entra no clima, tá fácil de pegar, pra cima!”
Nos últimos tempos, os casos de Robinho e Mari Ferrer ganharam holofotes da mídia pela ausência de moral e caráter dos abusadores. Talvez eles conhecessem bem essa música.
Há muitos outros exemplos, dentre vários gêneros e épocas. Até mesmo o jazz, gênero sem letra, no início era considerado imoral, mostrando que a percepção de imoral tem mais a ver com a origem da música, principalmente se for de população negra e marginalizada. Antigamente, ainda que existissem muitas coisas igualmente imorais — na geração que se orgulhava de sexo, drogas e rock n’ roll — elas ficavam escondidas. Músicas como a do Claudinho e Bochecha passaram desapercebidas, o ritmo envolvente de Jimi Hendrix fez com que os jovens da época ignorassem a letra, assim como ocorre hoje. Fato é que, diferente do que foi criado em nosso imaginário, sempre houve algo imoral nas músicas, independente do gênero ou da época. Isso não deveria definir o que é uma música boa ou ruim. Mas há pelo menos dois dois motivos que nos impelem a fazer esse controle de qualidade injusto.
A HEURÍSTICA DA DISPONIBILIDADE E A DEMOCRATIZAÇÃO DA MÚSICA
Nos baseando na nossa memória, dizemos que as músicas de antigamente eram melhores. Há uma armadilha nesse viés de pensamento, porque nossa memória tende a guardar, principalmente quando se trata de arte e entretenimento, as coisas que gostamos. Então quando olhamos pro passado dizemos que tudo era bom apenas porque não lembramos de quanta coisa ruim também existia. Nossa memória é romantizada e, como em todo bom romance, deixa a gente meio cego. No campo da moral, acontece o mesmo fenômeno. As Panicats, que muitas vezes são vistas como imorais, são uma mistura de banheira do Gugu com programa da Xuxa. Há pouco mais de uma década, no horário nobre da maior emissora de televisão aberta do país, um quadro de um programa de humor figurava uma mulher chamada Dona Tetê, e seu papel era ficar se agachando e mexendo em posições que deixavam seu corpo em evidência para que os homens em volta ficassem excitados e dizendo “aí meu Deus Dona Tetê” a todo momento. Até mesmo em suas vivências pessoais há uma certa amnésia, como quando pessoas mais velhas amenizam o sofrimento por amor dos mais jovens dizendo “ah, isso logo passa, é assim mesmo, já vivi isso e sobrevivi”, aparentemente eles se esquecem dos dias que passaram chorando no banho ouvindo Tim Maia quando passaram pela mesma situação, só se recordam do momento de alívio. Quando usam a memória, selecionam apenas os melhores momentos desses programas e dessas fases da juventude, dizem que tudo era bom, mas o “tudo” é a parte disponível da memória, não é realmente tudo. Isso é a heurística da disponibilidade.
E se tratando de disponibilidade, podemos pensar no que estava disponível antigamente em relação ao que há disponível hoje. Antigamente, ainda que existissem muitas coisas igualmente imorais, elas muitas vezes ficavam escondidas. O ponto é que, não existe apenas mais coisas imorais hoje, existe TUDO em maior quantidade e variedade. Isso é fruto da democratização que a era da informação trouxe. Com a internet, qualquer pessoa pode fazer o que quiser e espalhar exponencialmente. A ideia a ser quebrada é a de que as pessoas eram melhores e com o tempo pioraram, isso parece falacioso. O que realmente aconteceu é que as pessoas agora receberam permissão para explorar o que há de melhor e pior nelas. A questão do aumento do que é imoral é mais complexa, visto que as pessoas não são o que são exatamente porque querem, assim como antigamente as pessoas não eram menos imorais porque queriam, elas só não sabiam que podiam ser. Nossas vilanias só precisaram de espaço para criar raizes. Então dizer que alguma música é boa ou ruim usando o critério da moral não parece justo. Músicas podem ser bem ou mal executadas no caráter técnico. Instrumentos mal tocados, desafinados, fora do ritmo e por aí vai. Porém, este campo ainda não define o que pode ser bom ou ruim para cada indivíduo, visto que mesmo músicas mal executadas tecnicamente podem exercer uma função positiva sobre alguém — Legião Urbana tão aí pra não me deixar mentir. Definitivamente, não há música boa ou ruim, há músicas que não tem função para você.
Eu não sou familiarizado com funk, já que desde sempre meu pai ouvia pop rock nacional, minha mãe playlists de flashback e quando jovem as baladas não me atraíram. Ou seja, funk não tem função pra mim. Quase não ouço sertanejo, porque nunca fui corno, ou seja, sertanejo não tem função pra mim. Brincadeira, galera. A parte que nunca fui corno é séria, só é corno quem é curioso. Me sinto tentado a atacar gratuitamente algumas coisas, como é o caso do sertanejo, já que aqui onde moro, interior de Minas Gerais, as pessoas são incapazes de se reunir sem ouvir sertanejo, e não há paraíso melhor que o sabor da oposição. Então sempre uso essa piada batida do corno, mas há tempos tenho deixado de lado a opinião de que é música ruim, só não é útil pra mim. Assim como as minhas nunca são úteis pra eles. Sou capaz de destruir o clima de um churrasco com um violão na mão. Ainda assim convivemos pacificamente, sem músicas boas ou ruins, mas deixando a música exercer sua função em nossas vidas.