Da classe só quero a consciência

Jailson Izidório
Jornal Coluna
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10 min readDec 2, 2020

Essa semana criei o I.P.C.S.J. (Instituto de Pesquisa de Classes Sociais do Jailson), em que perguntei por WhatsApp pra 30 amigos como eles definiriam uma pessoa pobre, classe média e rica. A definição de classe econômica e classe social andam de mãos dadas, visto que a vida, enquanto social, está quase sempre ligada ao consumo. E é aí que venho derramar as reflexões vindas de algumas leituras e muitas horas de palestras que assisti no teatro no teto do meu quarto. Até que ponto deixamos de refletir o quanto estamos laçados pelo consumo? Pense em uma maneira de se divertir com seus amigos sem gastar um centavo. Até pra ver Netflix em casa apoiamos financeiramente uma startup e algum fabricante de pipoca. É praticamente impossível fazer qualquer coisa que não envolva consumir algo, gastar dinheiro. Daí, toda nossa leitura do social e suas nuances se veem ligadas ao poder econômico. Abordar todas as camadas das classes sociais seria impossível, há inúmeros fatores que determinam as classes sociais. Como não sou sociólogo, não tenho dever nenhum de ser justo e citar a maioria dos espectros, então vou me limitar às partes das definições de classes sociais e seus problemas que mais me incomodam, e falar um pouco mal de rico — que é dever de todo cidadão de caráter.

CLASSE SOCIAL TÁ ALÉM DA GRANA

No podcast da Laurinha Lero, a partir dos minutos 08:50 ela lembra do caso da Betina, expondo uma opinião que compartilho, de que o pior defeito da Betina não é ser rica, mas ser rica sem consciência de classe. Nesse caso, classe social, não classe econômica. Porque ela sabe que é rica, mas parece não saber por que é rica. O case de sucesso dela basicamente promete ir do mil ao milhão fazendo investimentos. Aqui temos pelo menos dois fatores a ser considerados. Primeiro, e mais óbvio, de que é mais fácil arriscar quando não temos nada a perder. Se ela investe os 1000 reais e perde, amanhã o croissant com ricota e o suco de graviola ainda vão estar esperando ela no café da manhã. Se uma pessoa pobre tem 1000 reais e perde num investimento, amanhã o aluguel tá atrasado. E o efeito disso é uma bola de neve que pode terminar com gente morando na rua. Segundo, a classe social não é exatamente medida pelo dinheiro, o dinheiro é consequência de fatores que há muito definem nossa classe. Jessé Souza em seu livro A classe média no espelho diz:

O bom aproveitamento escolar exige pressupostos normalmente INVISÍVEIS — como atenção, foco, concentração, disciplina, autocontrole, pensamento prospectivo e capacidade de abstração — , os filhos da classe média já entram como vencedores no sistema escolar, ao passo que os filhos da classe dos marginalizados chegam como perdedores em tenra idade. Muitos saem da escola como analfabetos funcionais, incapazes de participar do mercado de trabalho competitivo.

Antes da grana, tem toda uma estrutura psicossocial que dita se o indivíduo tende a avançar, se firmar ou regredir socialmente. Por exemplo, se seus pais têm o costume de ler, é mais provável que você entenda a importância da leitura mais cedo. Tendo lido mais cedo, muitas das habilidades necessárias para o mercado de trabalho e a vida social tem chances maiores de serem estabelecidas. Se seus pais estudaram, a probabilidade de entender a importância do estudo na sua formação social é maior. Dada a importância, quanto mais tempo o indivíduo gasta dando devida importância para o estudo, mais habilidades ele tende a desenvolver. Se seus pais gastam tempo com você diariamente, é mais provável que você aprenda os valores que eles têm, como esses citados pelo Jessé como necessários pra ser bem sucedido na escola, mas que parecem invisíveis, e por isso são tidos como inatos. Então, mesmo que comecem com a mesma quantidade de grana, a classe social em que vão alcançar com essa grana já está pré determinada.

Temos hoje no Brasil cerca de 11 milhões de famílias monoparentais, desse número cerca de 90% são famílias com mulheres responsáveis pelo lar — isso é tão real que quando alguém diz que tem pai e mãe eu já acho esquisito. Então, só aqui já temos um problema em cascata. Uma criança cresce sem o pai, a mãe tem que trabalhar o dobro pra sustenta-la, e assim sai para trabalhar. Logo, a criança já não tem parte de alicerces básicos que a ajudariam a ser um indivíduo mais capacitado. Aos 20 anos de idade, o indivíduo privilegiado tem uma probabilidade enorme de gastar menos energia e tempo em algo que gere mais dinheiro. Enquanto o outro, dada as poucas possibilidades, se vê atraído a um trabalho que, se trabalhar muito, terá o suficiente para viver com dignidade. E o principal problema disso tudo é o discurso meritocratico que existe. No fim de tudo isso, o dono da empresa discursa sobre seu sucesso com a certeza que chegou onde chegou unicamente por seu esforço e mérito, do qual outros que fracassaram não foram dispostos a ter e, por isso, não merecem o sucesso que ele obteve. No fim, o dinheiro foi apenas o produto final de uma engrenagem que é inversamente proporcional. Classe mais alta tende a crescer, classe mais baixa tende a diminuir. Na pesquisa de campo feita com meus amigos citada no inicio do artigo, apenas uma pessoa não falou só de dinheiro pra definir a classe. E como classe, já falamos do econômico, intelectual e social. Mas tudo isso envolve algo ainda maior.

O EXERCÍCIO DO PODER

Quando alguém compra um vinho de mil reais, está dizendo muito mais do que “olha, eu tenho mil reais pra gastar com um vinho”. Está dando para sí mesmo e a outros a sensação de ser alguém com bom gosto e percepção sofisticada, uma capacidade inata de escolher o que há de melhor. É aqui que a publicidade trabalha. A classe social passa a ser um sentimento, o desejo de fazer parte de um grupo seleto. Por isso, as propagandas das coisas mais diversas usam pessoas ricas e bem sucedidas para exercer essa influência nas pessoas. Se você tem o mesmo celular, a mesma roupa, bebe a mesma bebida ou come a mesma comida que alguém de classe maior, você tem a sensação de ser socialmente próximo daquela pessoa, ou da classe social dela, mesmo que isso esteja longe de ser verdade. A camada em que acredito que aconteça essa ilusão com maior frequência é na classe média. No livro do Gregório Duvivier chamado Put some farofa, numa das crônicas ele narra um guia turístico levando gringos pra conhecer os pobres na favela, o pobre como entretenimento do turista. Certa parte diz:

Porque achar um pobre, hoje em dia, não tá mais tão fácil. O pobre de antigamente hoje em dia é classe C, tem Crossfox, vai pra Bariloche, posta no face.

Esse é o retrato da distorção de classe social que o consumo traz. Se você tem um carro financiado, viaja parcelado no cartão e tira umas fotos legais, você já se sente parte da classe média, ou pelo menos tem gente pensando que você é, mas na verdade você ainda é pobre. Eu lembro de dizer e ouvir na adolescência que era da classe média quem tinha casa, carro ou moto e uma graninha guardada. Hoje em dia eu chamo isso de mínimo pra viver com dignidade. Acredito que estamos sempre numa classe social inferior do que imaginamos estar. Porém, consumir as mesmas coisas, fazer as mesmas coisas e ter uma relação de poder parecida com a classe mais alta, nos fazem acreditar que somos parte dela. Do mesmo modo, a pessoa que está na classe média, se tem uma empresa e exerce poder sobre outras pessoas se sente rica, mas na verdade ela só está sendo terceirizada por quem é realmente rico. Para ter o dinheiro e poder que tem, os realmente ricos não podem dizer: “Vocês existem para nos servir, trabalham para dar as condições mais favoráveis possíveis para mim, otários.”

Isso geraria revolta e revolução. Pra dominar outros mentir não é uma opção, é uma necessidade. Logo, toda classe média e baixa precisa sentir que seus interesses são levados em conta, que são importantes, que podem ter poder sobre outros, que trabalhando muito eles terão a recompensa merecida pelo trabalho árduo. Por isso, todo bilionário é uma anomalia socioeconômica, todos exploram, de algum modo, o trabalho de todas as classes inferiores. Quando seu livro comprado por R$ 4,90 na Amazon chega em menos de 48 horas na sua casa, você acredita mesmo que o bilionário deixou de ganhar ou entende que ele precarizou o trabalho de quem faz o papel, da gráfica e do entregador?

Sua camisa de R$ 9,90 na riachuello só chegou nesse preço porque muitas pessoas trabalham como escravos, e ainda tem alguém lucrando MUITO com isso — por essa e outras que pretendo fazer um podcast chamado Oprimo Rico, a gente tem que revidar de algum jeito.

Nessas discussões sempre aparecem argumentos com base em exemplos isolados, como:

“Ah mas tal empresário começou do nada e criou a empresa tal, não são todos os casos assim”

Craque Daniel, personagem criado pelo Daniel Furlan, refuta esse argumento com a maestria do humor, ele diz:

A exceção não cria a regra. A quantidade de exemplos que fogem dessa lógica cruel em que se definem as classes sociais são mínimos, a esmagadora maioria das vezes acontece do pior jeito possível, e não há muito o que fazer, mas ser consciente disso já é um ótimo começo.

MOBILIDADE SOCIAL

No Brasil, é necessário cerca de NOVE GERAÇÕES para que uma pessoa avance de classe social. Quanto maior a desigualdade social, maior o tempo necessário para melhorar de classe social. Visto que, de maneira direta, uma classe tem tudo e outra não tem nada, quem tem tudo vai ter mais, quem tem nada, bom, acho que você entendeu. Não há como achar um culpado sobre tudo isso, mas todos precisamos entender nossa responsabilidade. Pra isso, vou compilar uma série de informações que nos mostram o quão mais embaixo é o buraco.

70% dos brasileiros descendem de mulheres negras ou indígenas, mas somente 15% de homens negros e indígenas, o Brasil é filho do estupro. Em 14 de dezembro de 1890, 2 anos depois da “abolição da escravidão”, o então ministro da fazenda Ruy Barbosa fez uma ordem para queimar os arquivos de todos os escravos e despeja-los. Todos os escravos — em maioria negros — jogados na rua, se vendo obrigados a voltar a ser escravos, só que agora por opção — o que me parece muito com o cara que trabalhava numa fábrica, é mandado embora e vira uber. Nessa época, a expectativa de vida do homem negro era de 19 anos de idade. Mais de 90% das pessoas se casam com pessoas da mesma classe social, diminuindo a possibilidade de mobilidade social, já que ricos casam com ricos e pobres com pobres — se tiver alguma mulher rica aí querendo casar comigo afim de acelerar minha mobilidade social, me manda mensagem. Em 1981, a TV Bandeirantes transmitiu uma novela chamada “Os imigrantes” que dizia na vinheta de introdução: “De Salvio, o italiano. Pereira, o português. Hernandes, o espanhol. Os imigrantes, a história de todos nós”.

Há tempos tentam criar em nosso imaginário que a escravidão não existiu, que o Brasil é filho de uma miscigenação linda de várias nações que vieram pra cá em busca de uma nova vida. Mas no Brasil colônia, em 1660, havia mais escravos negros do que todas as outras pessoas somadas. Nós somos descendentes da maior sociedade escravocrata do planeta.

Eu só fui entender que estudar era importante com 21 anos, que ler era interessante com 16. Não terminei o ensino médio, trabalho desde os 15 anos na mesma empresa, fora outros bicos que fiz antes. Não tive pai presente a partir dos 7 anos, convivi com violência doméstica, sou preto e pobre. Fui morar sozinho com 17 anos, algumas vezes tive que receber ajuda de outros pra comer, morando com minha irmã mais velha, na época desempregada. Por outro lado, sou um jovem de 23 anos, com curso profissionalizante em elétrica automotiva, especialista em baterias automotivas e eleito terceiro melhor vendedor do triângulo mineiro em 2018 no meu ramo. Tenho automóvel, apartamento, dinheiro guardado, viajo todo ano, as vezes mais de uma vez. Criei meu jornal digital, em breve vou lançar um livro. Uma mesma vida, com tantas nuances, um universo, pra no fim ser definida com base no que consumo e no exercício de poder que tenho sobre outros e outros sobre mim?

O que o consumo fez com nossa humanidade?

Por que você compra o que compra?

É impossível entender o presente sem olhar pro passado. Ignoramos tudo isso em prol do consumo. Tudo é dinheiro. Não há vida sem ele. Somos reféns de algo que nós mesmos criamos. Acreditar que as pessoas tem o que merecem e não conseguem o que querem — ou pior, o que precisam pra sobreviver — porque não se esforçam o suficiente é injusto e ingênuo. Meu intuito é causar uma reflexão sobre o consumo. Você define as pessoas pelo o que elas tem, tanto economicamente quanto socialmente, e isso não é uma pergunta. Eu faço isso, você também. Precisamos ser mais complacentes, dispostos a entender que estamos definindo o valor do presente pelo embrulho. Não nascemos como folhas em branco para escrevermos nossa história do zero — e se nossa história fosse um papel, seria preto — já nascemos com parte da nossa história escrita, e ela carrega muito do que seremos. As pessoas não são quase tudo que são porque escolheram ser, não tem o que tem porque precisam, não conquistam o que conquistam porque merecem, ou deixam de conquistar porque não merecem. Diante dessa complexidade, é preciso entender que o consumo nos consome.

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Jailson Izidório
Jornal Coluna

Racional não praticante. Mestrado em ser mediano em muitas coisas.