O que os povos africanos deram ao mundo

Coletivo Nuvem Negra
JORNAL NUVEM NEGRA
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5 min readJun 2, 2018

Natany Ayodele Luiz *

A história dos africanos trazidos as Américas pouco os evidencia para além da condição de trabalhadores forçados. Sob essa ótica, perpetua-se a noção criada pelas ciências europeias e norte americanas de que esses indivíduos pouco ou nada teriam a oferecer às outras sociedades existentes no mundo, por serem selvagens e pertencerem a comunidades tribais primitivas. Essa é apenas mais uma face das constantes tentativas de apagamento da contribuição negra africana para o erigir do mundo, tal qual conhecemos hoje. A essa expressão do racismo, denominamos, a partir do que defendeu Sueli Carneiro (2005), de epistemicídio: o mecanismo da educação, sob visões de mundo centralizados na Europa, que reproduz uma única versão sobre a construção de saberes, perpetuando a atual estrutura de poder, que tem uma ideologia racialmente orientada. Contudo, é preciso que o conhecimento europeu também seja visto como passível de provincialização, seja enxergado como apenas uma forma de entender o mundo, com suas mitologias, filosofias e valores próprios, que não são universalizáveis ou aplicáveis a todos os povos humanos.

Em vistas de mudarmos a forma sobre a qual enxergamos as milenares sociedades africanas, trazemos aqui algumas pequenas áreas do conhecimento e da tecnologia que os negros já desenvolviam no continente africano antes do processo de escravização. E como grandes oportunistas, os escravizadores europeus utilizaram-se de alguns desses conhecimentos para alocar os negros nas regiões brasileiras que desejavam desenvolver tal tecnologia para seu enriquecimento. Para tanto, apresentamos alguns elementos da nossa verdadeira história como apenas um gatilho para que você pesquise sobre outras narrativas acerca da produção de conhecimento e também sobre o impacto das civilizações negras no mundo.

Kemet, o começo de tudo

O berço da civilização mundial, primeiro lugar a registrar a presença do Homo sapiens, é o que conhecemos atualmente como Egito. Os primeiros humanos a habitarem a terra chamavam a si mesmos de kammiu, ‘‘os negros’’, e sua terra de origem de Kamit, “a Terra Negra’’ (FINCH, 2009), hoje grafada Kemet. O estudo de evidências linguísticas e históricas indica que as culturas africanas em geral se baseiam na herança da civilização clássica egípcia (NASCIMENTO, 2007). O desenvolvimento da sociedade kemética só foi possível graças ao estabelecimento das antigas comunidades nômades às margens do rio Nilo e ao seu gradual conhecimento acerca das técnicas de irrigação e manutenção de produções agrícolas. Há quatro milênios, os keméticos identificaram a estrela Sirius, que quando nascia a leste, anunciava a enchente do rio, cujo lodo fertilizava os campos e assegurava farta colheita. Heródoto IV a.C, filósofo grego, afirmou que ‘‘os egípcios foram os primeiros a estabelecer a noção de ano, dividindo este em doze partes, segundo o conhecimento que possuíam dos astros’’. Isso era extremamente importante para definir as estações e a época certa de plantar, colher e produzir.

Dogon. Por Bruna Souza

O conhecimento de Sirius também se fez presente no atual território de Mali e Burkina Faso, uma vez que os africanos da nação Dogon já sabiam da existência do satélite da estrela Sirius, o “Sirius B”, antes da descoberta pela astronomia moderna, no século XIX. No período de um ano, Sirius B roda uma vez em torno de seu próprio eixo, evento celebrado pelos Dogon com o Festival Bado. Uma outra grande contribuição se dá pela medicina, com o cientista e clínico egípcio Imhotep que, quase três mil anos antes de Cristo, praticava quase todas as técnicas básicas da área. Recentes descobertas mostram que os cientistas egípcios conheciam substâncias cicatrizantes, anestésicos e tiveram a capacidade de promover cirurgias complexas como as cerebrais, de catarata ou o engessamento de membros com ossos quebrados. Outra característica da medicina desenvolvida pelos egípcios foi a odontologia que, naquela época, já usava brocas e praticava os procedimentos de colocação de prótese e drenagem de abscessos. Os métodos contraceptivos também já eram do conhecimento dos egípcios.

Cientista e clínico egípcio Imhotep. Por Bruna Souza

Os kammiu já desenvolviam o comércio marítimo há milênios e desde 2600 a.C. construíam navios de grande porte. Desenvolveram técnicas de navegação mais sofisticadas e eficazes para atravessar o Saara, pois os navegadores das caravelas não conheciam a longitude, referência utilizada na Antigüidade por africanos, chineses e árabes. Tal tecnologia foi fundamental para a travessia do oceano atlântico rumo às Américas antes de Cristóvão Colombo.

Além de uma riqueza enorme de testemunhos visíveis na cerâmica e escultura dos países da América pré-colombiana, as evidências incluem os restos mortais de pessoas negras e um conjunto de semelhanças entre as culturas indígenas e africanas, como por exemplo, as técnicas de engenharia e arquitetura das pirâmides egípcias e mexicanas. Talvez o testemunho mais eloqüente da presença africana nas Américas se encontre nas gigantescas cabeças esculpidas em pedra pelos olmecas, primeiro povo pré-colombiano do México e da América Central. Localizadas no centro do território sagrado desse povo, em San Lorenzo, atual território mexicano, as esculturas pesam quarenta toneladas, cada uma, e são feitas de um só pedaço de basalto. Elas reproduzem com exatidão o fenótipo do povo da Núbia.

As cabeças gigantes aparecem ladeadas por pirâmides em praças cerimoniais, com as laterais em forma de escada. O período de elaboração das esculturas olmecas coincide com a 25a dinastia do Egito, em 760 a.C., quando reinava soberana no mundo a poderosa marinha mercante e bélica núbia. As cabeças negras do México portam o mesmo elmo usado por esses marinheiros e podem ser vistas como representando eles próprios, já que pertencem à matriz das populações de pele negra que primeiro povoaram as Américas.

O metal utilizado na confecção dos elmos núbios e das próteses dentárias mostra o avanço africano na siderurgia, presente na produção do povo Haya, que habita o que hoje conhecemos como Tanzânia. Entre 1500–2000 anos atrás, para produzirem aço, utilizavam-se de fornos que atingiam temperaturas mais altas que os fornos europeus fossem capazes (200ºC a 400ºC de diferença) até o século XIX. Outras investigações constataram que essa tecnologia metalúrgica apresentava-se também em outras regiões, chegando a produção siderúrgica de Angola.

O maior obstáculo à credibilidade desses estudos está na crença ideológica na suposta incapacidade dos africanos antigos de atravessar o mar na qualidade de portadores de conhecimentos e valores civilizatórios. Essa manipulação histórica é mais uma expressão do racismo, que aliena o ensino da construção tecnológica e filosófica mundial, encobrindo a real contribuição dos povos africanos para o mundo: o emi, fundamental sopro da vida.

Referências bibliográficas

  • CUNHA, Lázaro. Contribuição dos povos africanos para o conhecimento científico e tecnológico universal. Prefeitura de Salvador, 2014.
  • FINCH III, Charles S. Cheikh Anta Diop confirmado. Em NASCIMENTO,
  • Elisa Larkin (Org.). Afrocentricidade, uma abordagem epistemológica inovadora. Coleção Sankofa, Matrizes Africanas da Cultura Brasileira, v. 4. São Paulo: Selo Negro, 2009.
  • NASCIMENTO, Elisa Larkin. O TEMPO DOS POVOS AFRICANOS IPEAFRO, SECAD / MEC, UNESCO, 2007.

*Natany Ayodele Luiz é graduada em Relações Internacionais pela PUC-Rio, integradora da Coletiva Nuvem Negra e Educadora Popular de Projetos Nuvem nas Escolas. Pesquisa encarceramento feminino, educação, história e cultura africana na diáspora.

Texto retirado da 4ª edição do Jornal Nuvem Negra.

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