A Metamorfose do mundo moderno — o impacto de Kafka na sociedade

Como os enredos kafkianos podem ser encontrados na atualidade do século 21 e a importância de sua leitura

Jornal Anglo Vozes
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6 min readOct 27, 2022

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Imagem via: Plano Crítico

Por Viviane Melina

Deparar-se com a própria insignificância. É realmente esse questionamento de autoanalisar-se para não ser julgado pela multidão de pessoas, que sofre o personagem Gregor Samsa, do livro “A Metamorfose”, de Franz Kafka, escrito em 1915. Depois de mais de cem anos, as questões tratadas pelo autor continuam atuais.

Escolhi essa obra, porque o enredo de Kafka se tornou uma leitura muito adorada e fascinante para mim. Afirmo isso, pelo fato do estranhamento em suas análises, a comparação entre a rotina como menino e percepções aguçadas e interessantes dele, a partir do momento em que vira barata.

“A Metamorfose” é um livro curto em número de páginas, porém ao lê-lo se torna longo e processual em relação às reflexões e conexões que podem ser feitas sobre a existência humana e como seus atos podem impactar em várias outras vidas: o sentido do mundo pelos olhos desse bizarro autor. Como é possível ver pelo contexto da obra:

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em uma espécie monstruosa de inseto. Estava deitado de costas, as quais sentia duras como couraça, e, erguendo um pouco a cabeça, conseguiu ver a curva de seu grande ventre marrom, dividido em nítidas ondulações. As cobertas escorregavam, de forma inapelável, de cima dele, e as numerosas pernas lamentavelmente finas comparadas ao restante do seu corpo, agitavam-se, impotentes diante de seus olhos.”

No livro, vê-se Gregor Samsa perder a habilidade de se comunicar com aqueles ao redor deles, por não conseguir ser compreendido ou ouvido, uma vez que “metamorfoseou” em um inseto, fechando-se cada vez mais em seu mundo particular onde ele não saía e ninguém entrava. Do mesmo modo, o mundo pós-moderno é marcado pela falta de comunicação humana, de entendimento entre as pessoas pela ausência de diálogo. Aquilo que deveria ser o elo entre os seres acaba por se tornar um peso e a comunicação gera incomunicação.

Coloca-se como um paralelo com a nossa realidade, por exemplo, a tecnologia, recurso cada vez mais inserido e necessário em nossas vidas, mas que, ao mesmo tempo, comprometeu grande parte das relações, tornando-se uma barreira de comunicação e de relação entre indivíduos.

Imagem via: Wikipédia

O bicho em que Gregor Samsa se transforma seria uma imagem interior de si mesmo, assim seria a metáfora da humilhação de um personagem submisso. Um homem que aceitou passivamente virar do avesso, transformar-se em alguém que ele não queria ser. As tentativas de adaptação deixam os personagens frustrados. O próprio Kafka percebeu o mundo assim.

As pessoas vão se suportando, vivendo, mas, na verdade, não são capazes de se entenderem. Esta, quem sabe, seja a grande lição desta obra: a comunicação sendo à base de consolos ou justificativas para aqueles que vivem numa sociedade em que ninguém se comunica de fato e se satisfazem com mecanismos ilusórios.

Consequentemente, essa perda de diálogo pode aumentar os diagnósticos de Transtornos Mentais. Como visto na pandemia, tivemos que reaprender a como se comunicar e, nesse processo, muitos se perderam na nova maneira de socializar sem sair de casa: fecharam-se cada vez mais até se sentirem como “a barata da quarentena”, sem ser compreendido pelos seus amigos, familiares e conhecidos.

A barata de cada um

Bom, desde o início, é apontada a vida de um empregado comum, de uma família comum e de ser uma pessoa comum, até que o menino se transforma em um ser asqueroso que causa repúdio. E quando Gregor se transforma em uma barata, toda essa dinâmica “padrão” muda completamente.

Assumir a existência desse inseto tem seus desafios e peculiaridades. Afinal, todo mundo tem o seu lado “barata”, com o qual é obrigado a lidar, ou seja, tem o papel de demonstrar algo que todos evitamos, mas que, em algum momento, terá que ser enfrentado. Essas situações da vida, as quais podem ser uma primeira entrevista de emprego ou o choque de se tornar adulto e assumir responsabilidades.

Voltando para a narrativa, Gregor passa a ser discriminado pela própria família, pois se torna motivo de vergonha e de repulsa. Só então percebe o verdadeiro caráter das pessoas com quem convivia, por quem acreditava ser amado e compreendido. Paralelamente, conseguimos conectá-lo à “A paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector, a personagem-título, enquanto arruma o quarto da empregada que se demitiu, depara-se com uma barata saindo de dentro do armário. Então, começa a refletir sobre toda sua vida e analisa seus erros e sua personalidade, sentindo que uma grande transformação está acontecendo dentro de si.

“G.H. mata a barata ao esmagá-la com a porta do armário. Ela observa então, enquanto o inseto dá seus últimos suspiros e uma gosma branca de dentro dela jorra. Então, extasiada, atraída pelo inseto, ela se aproxima e, num louco devaneio, suga um pouco da gosma.”

“A barata representa a parte incômoda da vida, que precisa ser encarada. Ela é aquele medo que nos paralisa, nos impede de criar asas. A barata é um mal necessário. Mesmo que na situação, “tomar” o líquido que saiu da barata pareça ser um desequilíbrio, é apenas um símbolo que diz que G.H finalmente tomou o primeiro passo e agiu.”

Esse sumo de pensamentos, pode ser visto com clareza na fala dita pelo próprio Franz:

“Não posso seguir escrevendo. Me encontro no limite definitivo, diante do qual devo permanecer novamente por décadas, para começar uma vez mais uma nova história que ficará inconclusa. Este destino me persegue”

Que em relação ao contexto que se adaptava por ter virado barata, Gregor se encontrou também em um beco de ressaca literária, não conseguia mais descrever suas rotinas e ações simplórias, via-se perdido nesse mar de pessoas que tem mais opiniões sobre ele do que sobre si mesmas.

Imagem via Correio Braziliense

E desse jeito, como nas histórias de Kafka, que sempre tem uma moral que levamos para a vida, com A Metamorfose, não poderia ser diferente, é um livro rico em vocabulário, experiências humanas, críticas sociais e pautas que dialogam com o passado, presente e futuro.

Ter como parte de seu conhecimento, as escritas kafkianas é uma grande bagagem, aprendemos com ele a entender a fragilidade do ser humano, a desumanização que ainda se faz muito presente na sociedade. Nos vemos representados por Gregor quando o personagem tem instantes de distância para com a família, ou quando se sente pequeno como um grão de areia, ou, em outros, gigante perto de seus problemas.

Confiar em sua jornada e não duvidar de sua capacidade diante aos perrengues da vida são duas potências trabalhadas em seu roteiro. Desta maneira, após sua leitura, ando com o peito estufado, a cabeça cheia de ideias e um coração infiltrado por “sonhos intranquilos”, que só alimentam minha sede pela leitura.

Imagino as palavras saltarem do papel e tomarem forma em meu universo, obras de puro talento e estranhas conexões que me fizeram pertencer, assim como espero que vocês, caros leitores, sintam-se ao folhear o primeiro capítulo.

Sobre o autor

Franz Kafka, nascido em Praga, filho dos judeus Julie Löwy e Hermann Kafka, teve um interesse pela escrita desde cedo, porém suas escolhas profissionais de cursar Direito o deixaram com poucas horas vagas para sua escrita. Então, pouco tempo depois, pediu demissão e passou a trabalhar no Instituto de Seguros para Acidentes de Trabalhadores do Reino da Boêmia. Era falado como profissional ambicioso e incansável, permaneceu no Instituto até 1917, quando descobriu estar com tuberculose, passando por diversas internações em busca de tratamento.

Apesar de suas escritas de tom sombrio, era descrito como alegre, bem-humorado e simpático, o tom sombrio provinha da tortura que Kafka julgava ser a sua rotina exaustiva de trabalho, que o condenava a uma dupla vida e a uma dupla jornada: muitas horas do dia no escritório, muitas horas da noite escrevendo. Estes sendo agravantes de sua tuberculose, levando a sua morte em 1924.

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Jornal-laboratório da eletiva Anglo Vozes do Colégio Anglo Sergipe.