O que é ser uma pessoa intersexo?

Pessoas intersexo são aquelas que nascem com características que não correspondentes ao que a sociedade caracteriza tradicionalmente como masculino e feminino

Bia Kassawara
Jornal Anglo Vozes
5 min readJun 21, 2020

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‘’Uma pessoa intersexo é aquela que a medicina não consegue identificar no nascimento nem como homem, nem como mulher, uma vez que seu corpo não é propriamente masculino nem feminino’’, de acordo com trecho retirado da reportagem ‘’O que é intersexualidade?’’ do portal Queer Feed. A comunidade LGBT vem crescendo durante as últimas décadas, com a inserção de novas siglas ao movimento político-social, abrindo espaço para outras minorias possuírem uma voz — mesmo que mínima — dentro da sociedade.

Bandeira do Orgulho Intersexo.

A discussão sobre a intersexualidade inicia-se no século XIX, onde, posterior a esta data, pessoas intersexuais passavam despercebidas pelas autoridades, sejam elas médicas, legais ou religiosas. Em 1920, iniciaram o uso de processos cirúrgicos de diferenciação de gênero, com a mentalidade de manter a categorização sexual binária entre ‘’macho’’ e ‘’fêmea’’, obrigando o indivíduo a viver com o gênero que lhe foi designado ao nascer, mesmo que não se identifique com o mesmo no futuro.

Em entrevista à BBC, Suz Temko conta sua experiência ao descobrir que era intersexo aos 15 anos de idade, após ter ido a uma festa e ali descoberto certa protuberância estranha em seu abdômen. ‘’Esse inchaço acabou se revelando um tumor maligno. Estava com câncer em estágio 4 que, de acordo com o primeiro diagnóstico, era de ovários. Receber esse tipo de notícia aos 15 anos é muito marcante’’, afirma Temko. Ao receber alta do hospital, os médicos a perguntaram se queria saber o motivo de ter tido câncer, ao entrar na reunião, o doutor falava termos técnicos, os quais ela não entendia nada, mas havia uma frase que a marcou: ‘’Você tem cromossomos XY, tipicamente masculinos. Em outras palavras, você é fisicamente mulher, mas geneticamente um homem”. Ou seja, não era realmente um câncer de ovário, porque ela simplesmente não possui ovários. Os médicos recomendaram manter a situação em segredo.

Aos seus 18 anos após contrair malária em uma viagem à Tanzânia,o médico disse, após ver o histórico dela:

“Você me passou o histórico médico errado, se você tem cromossomos XY, você é homem”

Suz Temko afirma que antes desse episódio acreditava que todos os médicos eram maravilhosos, que eram pessoas que diziam a verdade e faziam as pessoas se sentirem bem. Após o ocorrido, Temko diz ter começado a esmorecer: ‘’A voz dele era como um alto-falante para alguns dos meus pensamentos mais sombrios: que eu era uma pessoa estranha, um fenômeno desagradável’’, entrou em depressão severa, fez questão de ter cabelo loiro e comprido, afinou sua voz e entrou em dieta rígida para emagrecer. Na época não se atreveu a contar ao seu namorado com medo de que seu relacionamento acabasse.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) pessoas intersexuais são cerca de 1,7% da população mundial, entre esses 1,7% existem cerca de 40 estados de intersexualidade. Pessoas intersexuais não são raras, são apenas invisíveis.

A situação começou a mudar em seu terceiro ano de faculdade, onde seu namorado foi para o exterior e passou a dividir um apartamento com amigas. ‘’Contei a elas que eu era intersexual e elas deixaram bem claro que eu não tinha nada do que me envergonhar. Pelo contrário, foi motivo de comemoração’’. Seu namoro acabou no fim daquele ano por conta da distância, porém diz não ter sido fim do mundo, começou seu mestrado e a trabalhar com política, estreou seu blog sobre câncer, mortalidade e aceitação do próprio corpo, mesmo ainda não aceitando o seu, até que pensou: “Isso está errado. Sou hipócrita. Não estou sendo honesta. Estou dizendo às pessoas para aceitar o corpo delas quando não aceito o meu próprio”, e assim escreveu em sua página do Facebook em que contou sobre a sua intersexualidade a todo mundo, onde recebeu diversos comentários positivos, como: ‘’amamos você’’.

Suz diz que as redes sociais possibilitaram a encontrar uma comunidade de pessoas que passam pelas mesmas dificuldades e afirma ‘’Embora seja bom ouvir histórias positivas, você também aprende muito com as batalhas que cada um teve que travar — foi importante saber que não estava sozinha’’. Hoje Temko participa de uma série especial da BBC para dar voz e visibilidade a pessoas intersexuais.

O sociólogo Carlos Henrique de Oliveira, mestrando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) em entrevista ao portal Buzzfeed em seu canal do YouTube afirma: ‘’Eu fui construído em mesas de cirurgia, muito além da cultura’’. Carlos descobriu sua intersexualidade já na fase adulta. Ao conversar com familiares sobre quais cirurgias havia feito na infância, em tese, relacionados a problemas urinários eram na verdade procedimentos também relacionados a uma construção peniana. Quando constava-se na infância sua avó e sua mãe sobre os curativos necessários na genitália, o respondiam: ‘’Você precisa fazer esse monte de coisa senão você não vai conseguir ao banheiro’’.

Ao responder o que é uma pessoa intersexual afirma que foi necessário criar uma Associação Brasileira de Intersexos (ABRAI) para formalizar uma militância que já existia, como por exemplo o direito de pessoas intersexo na infância não passarem por processos cirúrgicos de construção genital. Carlos Henrique afirma que mesmo com sua mãe sendo técnica em enfermagem e trabalhar na área da saúde há anos, teve que descobrir sua intersexualidade junto a sua família por não ser um assunto falado na medicina.

Ao falar de como é sua vida atualmente diz: ‘’Eu acho que as pessoas trans e as pessoas intersexo elas ficam renascendo, várias vezes, porque você vai descobrindo que seu corpo é algo que é mutável, é construído, é manipulável’’. Protesta que não existe nenhum pudor ao jogar hormônios em crianças para que elas se encaixem no padrão binário de nossa sociedade, até quando irá ocorrer a mutilação genital em bebês sem que eles saibam? Sem que, muitas vezes, suas famílias saibam?

Suz descobriu sua história em uma consulta médica. Enquanto Carlos soube ao conversar com sua família. Porém todas as histórias, vivências e lutas são válidas e merecem devida atenção. Carlos afirma no final da entrevista: ‘’As pessoas precisam viver. Todas as vidas precisam importar. Elas precisam exercer suas humanidades’’.

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Bia Kassawara
Jornal Anglo Vozes

nipo-brasileira (birracialidade), não-binário e bissexual. apenas não sei fazer escolhas.