O retrato da censura do escritor Oscar Wilde

A edição sem cortes de “O Retrato de Dorian Gray” revela o verdadeiro segredo do autor, enterrado pelo preconceito por mais de um século

Jornal Anglo Vozes
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6 min readAug 9, 2022

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Oscar Wilde e Bosie Douglas

Por Carolina Amarante

No século 19, o autor Oscar Wilde foi réu no julgamento que o colocaria entre as grades e, posteriormente, acabaria com a vida dele, tendo a obra “O Retrato de Dorian Gray” utilizada como prova para aprisioná-lo. Mas, afinal, o que poderia existir de tão venenoso em um livro? E como, nos dias atuais, essa obra passou a ser considerada um clássico da literatura?

“O Retrato de Dorian Gray”

Comecemos com a citada obra, publicada pela primeira vez em 1890. Foi a primeira, porque houve muitas outras, visto que o livro foi considerado muito ousado para a época, o qual foi alvo de críticas árduas e sofreu alterações e censuras por editores. Finalmente, depois de 132 anos, a versão sem alterações pode ser obtida por meio das editoras Darkside e Biblioteca Azul.

Para aqueles que não são familiarizados com a obra de Oscar Wilde, “O Retrato De Dorian Gray” se passa na cidade de Londres, no final do século 19. O referido no título, Dorian, é um jovem de beleza excepcional, que conhece Lord Henry por meio do artista Basil Hallward. Ambos se impressionam com a beleza do garoto, enquanto ele posava para um quadro desse pintor. Tomado pela adoração dos amigos, ao se ver tão bonito, e pelo medo de perder sua juventude, ele faz um juramento: daria tudo que pudesse, inclusive sua alma, para que nunca perdesse a juventude e a beleza. Tal juramento torna-se legítimo quando Dorian percebe que, ao longo dos anos, a imagem do quadro passa a envelhecer, mas seu rosto permanece com a mesma beleza jovial.

Oscar Wilde

Essa grande polêmica se deu pela intimidade física entre os personagens, que se abraçavam e tocavam com naturalidade. Além disso, a paixão erótica e física de Basil por Dorian foi transformada em pura admiração na versão editada, na qual foi dado um grande destaque ao relacionamento heterossexual de Sybil e Dorian. Considere decepcionante ou não, mas as mudanças tiveram efeito, já que a versão editada recebeu críticas mais amenas.

Em sua segunda edição — já revisada e censurada –, Oscar escreve um prefácio que pode passar despercebido por aqueles que lêem sem ter uma perspectiva de toda a história. Digo isso, porque eu mesma, há alguns meses, li pela primeira vez sem saber da existência da censura. Hoje, depois de ler a versão original e voltar a folhear a editada, percebo ainda mais da genialidade do autor. Entre os trechos do prefácio, destacam-se:

“Aqueles que encontram significados feios em coisas belas são corruptos sem serem encantadores. […] Não existe livro moral ou imoral. […] O artista pode expressar tudo.”

O prefácio é curto e logo se encerra, não deixa nada claro e parece apenas uma introdução para o livro, embora fosse muito mais significativo para o autor.

Para melhor compreensão dos fatos, o foco deve ser direcionado na vida de Oscar Wilde em 1891. Na época, casado com uma mulher com quem teve dois filhos, conheceu Alfred Douglas, a quem apelidou de “Bosie”. No entanto, essa “amizade” passou a gerar suspeitas, pois os dois passavam muito tempo juntos e essa intimidade não era bem vista para a sociedade.

Não apenas com o povo rondavam os preconceitos, também dentro de suas casas, ao gerar, de seus próprios pais, ameaças de deserdá-los e humilhá-los publicamente. O episódio mais marcante aconteceu quando John, pai de Alfred, foi a um evento de Wilde sem ser convidado e deixou um buquê de tulipas e cenouras em formato de genitálias masculinas.

Bosie incentivou Oscar a processá-lo por difamação por esta e muitas outras situações. No entanto, esse talvez tenha sido o maior erro de sua vida, pois o julgamento tomou outro caminho.

O processo de difamação contra John se tornou de “flagrante indecência”, contra Oscar, quando o pai de seu parceiro o acusou de praticar relações homossexuais, que eram proibidas por lei no século 19. Esse foi o momento em que Wilde assistiu o manuscrito original de sua obra servir de prova para condená-lo, pelo advogado de John, que leu diversos trechos e parágrafos do livro, a fim de provar que o romance defendia o amor inadequado entre dois homens, tais como:

“É verdade que o tenho idolatrado com um sentimento muito mais romântico do que um homem jamais deve oferecer a um amigo. Por algum motivo, nunca amei uma mulher […] Havia amor em cada traço, paixão em cada pincelada.”

Por ser um livro tão bem escrito como hoje, felizmente, podemos reconhecer que ele mostrava o quão intensos eram os sentimentos dos homens uns pelos outros. E é fato que a obra apresentava uma aproximação com a realidade, tal que Oscar sempre deixou claro, como em uma carta enviada para Ralph Payne, um adorador de sua obra, onde reforçava isso: “Basil Hallward é o que eu penso que sou; lorde Henry é o que o mundo pensa que eu sou; já Dorian Gray é o que eu teria gostado de ser”.

No entanto, seu talento não era visto pelas pessoas no século 19, cegados pelo preconceito. Quando não existia mais saída para o julgamento, Oscar Wilde precisou encerrar seu posicionamento e deu sua declaração final:

“Esse amor é a grande afeição de um homem mais velho por um homem mais jovem, como aquela que houve entre Davi e Jônatas, o amor que Platão tornou a base de sua filosofia, o amor que se pode achar nos sonetos de Miguel Ângelo e Shakespeare”.

Ele continua: “Tal amor é tão mal compreendido neste século que se admite descrevê-lo como o ‘amor que não ousa dizer seu nome’. Ele é bonito, é bom, é a mais nobre forma de afeição. Não há nada nele que seja antinatural […] O mundo não compreende que seja assim. Zomba dele e às vezes, por causa dele, coloca alguém no pelourinho.”

O autor foi condenado a dois anos de prisão com trabalho forçado, vivendo em condições precárias, juntamente da vergonha e da solidão. Preso, sem artes ou livros e sem preparação para o trabalho, além da má nutrição, sofreu um acidente ao bater a cabeça que afetou seu tímpano direito.

Quando foi liberado, Oscar tentou contato com Alfred, mas não foi bem recebido, pois o homem se convertera ao cristianismo e passou a condenar a homossexualidade, enquanto difamava o antigo parceiro por diversas vezes. Wilde se exilou em Paris, onde passou a morar com amigos e em hotéis baratos, completamente desolado. Aos 46 anos, morreu na miséria e foi enterrado como indigente.

Quantos artistas extraordinários e quantas obras esplêndidas perdemos por pura intolerância e preconceito? É uma pena que a genialidade de Oscar Wilde, um dos maiores nomes da literatura, tenha sido descoberta e exposta apenas tantos anos após sua morte.

No entanto, é evidente que seu sofrimento não foi em vão. Embora o julgamento tenha criado e reforçado estereótipos contra homens homossexuais, trouxe à tona a existência deste grupo e acabou influenciando e dando força para uma série de movimentos na busca pelos direitos. A importância de Oscar Wilde não acaba apenas na literatura universal e beleza de seus escritos, também reside na contribuição imensurável que teve e tem até os dias atuais. Se hoje podemos falar e expor nossa identidade e sentimentos, muito devemos ao autor.

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Jornal-laboratório da eletiva Anglo Vozes do Colégio Anglo Sergipe.