Periferia: quem vive na pele a desigualdade velada

A vida na favela e as barreiras transpostas em busca de oportunidades são desconhecidas pelo outro Brasil.

Giovanna Silva
Jornal Anglo Vozes
10 min readApr 7, 2021

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O Brasil é plural em diversos sentidos e, infelizmente, em desigualdades também. Entre a social, a econômica, a de gênero e a racial, as quais são igualmente urgentes, ainda há um elemento que torna ainda mais difícil a vida de quem busca superá-las — a barreira geográfica que se transpõe. O artigo “The health of people who live in slums”, da revista The Lancet, de 2016, aponta para as graves consequências da desigualdade espacial: estudos indicam que “o baixo nível socioeconômico é capaz de reduzir a expectativa de vida em até dois anos, enquanto fatores como a obesidade e a hipertensão infligem um dano menor ao índice — encurtamento de 0,7 e 1,6 ano, respectivamente”, diz o site Summit Saúde.

Fonte: Arquivo pessoal.

A desigualdade social e geográfica é demonstrada através dos números: em um país de condições tão divergentes, como pode-se obter um IDH considerado alto como o do Brasil? A resposta está na proporção de tal desigualdade, uma vez que ambas concentração fundiária e monetária no país são extremas, também devidas a processos históricos que remontam à colonização. Em dados, os seis brasileiros mais ricos, em 2017, concentravam a mesma riqueza que metade da população mais pobre, e os 5% mais ricos detinham a mesma fatia de renda que outros 95%, segundo a Oxfam.

No país das desigualdades, desde muito cedo, houve uma distribuição espacial hierárquica implantada a partir do início dos processos coloniais. Os portugueses, certos do modelo europeu, projetaram assentamentos, que, consequentemente, deram origem às cidades, de modo que o centro ficasse proporcionalmente distante à importância econômica e política dos moradores. Assim, o clero e o colono tinham acesso mais fácil aos serviços oferecidos, despendiam menos tempo no trajeto e desfrutavam de mais oportunidades oferecidas no cerne do assentamento do que os indígenas, que eram alocados cada vez mais distantes deste.

A manutenção de um modelo e mentalidade hierarquizados que remonta à colonização possibilitou, mais tarde, com a macrocefalia e inchaço urbano, o enxotamento dos mais pobres para as áreas periféricas das cidades, entre eles ex-escravos e proletários, que, não podendo financiar as casas cada vez mais valorizadas e estilo de vida caro, tiveram que migrar para áreas de habitação irregular com fornecimento precário de serviços públicos e básicos, como de saneamento básico e energia. Esta migração, de modo desorganizado, possibilitou a estruturação de uma vista que, hoje, é característica da desigualdade social no país: as favelas.

O resultado é mais de 5 milhões de pessoas vivendo em locais afastados das ofertas culturais, educacionais, econômicas e até políticas do centro. São 5 milhões de pessoas inseridas em áreas que nem sempre fornecem serviços básicos e frequentemente se tornam espaços de violência, de pobreza e atividades irregulares. O poder público, em sua maior expressão classicista, tende a visitar os morros e periferias apenas em batidas policiais e casos de denúncias e perseguições, este sendo o mesmo poder público regido pela Constituição de 1988, a qual garante direitos de acesso iguais para todos, independentemente de renda, posição social ou geográfica. Muitas vezes sujeito ao poder paralelo, o morador periférico acostuma-se com essa configuração social e passa a viver numa missão de sobrevivência onde se encontra.

Como dito pelo site Summit Brasil: “Assim como a população com faixa de renda mais estável, os habitantes das favelas também estão expostos a todos os fatores regulares que levam a uma possível redução na expectativa de vida, além das diversas complicações já inerentes da desigualdade social. Portanto, esses indivíduos sofrem com o dobro de riscos à saúde”.

Fonte: Arquivo pessoal.

A exemplo, eu, Giovanna, moro em uma periferia na zona sul de São Paulo. A convivência com carros policiais e ciência dos trâmites do poder paralelo tornam-se obrigatórias e até comuns, a ponto de haver estranhamento quando alguém da Vila Mariana não sabe do que estou falando: das batidas, trocas de tiro e mortes recorrentes. Quem vive na periferia não se cansa de ser lembrado do quão desigual é sua jornada em relação a de outros.

É muito interessante que, ao pegar o metrô no Capão Redondo, a paisagem transforma-se drasticamente: o que são casas amontoadas e em tijolos ainda, com varais improvisados e ruelas tortas tornam-se, repentinamente, prédios cada vez mais altos, ruas cada vez mais endireitadas e uma organização social digna de uma São Paulo desenvolvida que não se parece nada com o lugar de onde eu venho. Descer em Higienópolis, então, é como fazer uma viagem todos os dias; são locais tão díspares, há um abismo de diferença entre minha estação inicial e final. Faróis regularizados, faixas de pedestre, carros caros e uma outra realidade. É a clássica fotografia Paraisópolis versus Taboão da Serra.

Um grande choque social foi a pesquisa que explorou a qualidade de vida em função da distância do centro de São Paulo. Foi provado que a qualidade de vida decresce conforme se distancia do centro em níveis alarmantes e, de fato, isso não mente. Levo uma hora e meia por dia para chegar em casa vindo do colégio Anglo São Paulo. Primeiro a linha amarela, a verde, e então toda a extensão da linha lilás em suas 17 estações; além disso, um ônibus e, depois, uma caminhada. Ida e volta totalizam três horas.

Quando estou chegando em casa, meus colegas de classe já chegaram há no mínimo meia hora atrás. Horas que, para mim, são perdidas: poderiam ser despendidas em estudos, obrigações, lazer, mas foram gastas apenas em transporte, questão que outros resolvem em dez minutos. Isso sem contar a grande exaustão adicional após um dia de aulas até as 17h e, então, uma hora e meia de metrô cheio, ônibus cheio e, finalmente, banho às 20h. Em dias de aula até 20h, chego em casa 22h30. É um privilégio poder estudar na escola até esse horário sem ter que enfrentar transporte público noite afora. É inegável tamanha defasagem advinda da minha posição geográfica, econômica e social.

Não só para mim, mas para milhões de brasileiros: as horas e horas gastas no caótico trânsito de São Paulo geram cansaço, exposição a riscos como vírus e violência, e, como demonstrado recentemente, perda da qualidade de vida. No contexto pandêmico, periféricos se expuseram ao Covid-19 em maior grau, uma vez que o distanciamento social nas linhas públicas de São Paulo é quase impraticável, como bem visto. Metrôs lotados no horário de pico, ônibus com capacidade máxima, falta de ventilação, e a favela precisa trabalhar mesmo correndo perigo. Entre a cruz e a espada, o risco de deslocamento até o local de trabalho é, às vezes, a única opção quando não se tem home office ou internet e aparelhos eletrônicos para poder praticá-lo.

Fonte: Arquivo pessoal.

O senso comum, que disse que a pandemia veio para equalizar as situações e deixar todos em igual vantagem, errou: onde moro, o sinal da internet é péssimo. Para melhorar, não há disponibilidade de planos da internet de fibra, pois o morro, a favela, não tem estrutura para tal e os provedores não estão interessados na proposta de negócio. Não há oferta. Eu não posso ter acesso a uma melhor internet pois a minha posição espacial não o permite. Igualmente, durante a pandemia, houve um grande afetamento do trabalho e estudos — feitos online — de residentes da periferia, que não tinham condições próprias de internet, incluindo a impossibilidade de muitos de comprar computadores ou celulares para dar continuidade às suas tarefas.

É absurdo saber que milhões de pessoas que vivem em favelas morrerão anos mais cedo pela fadiga, pelo tempo exorbitante dentro do transporte público, pela falta de saneamento básico e de acesso à saúde. É ainda mais absurdo saber que toda vez que alguém periférico conquista vagas em universidades ou empregos brilhantes há uma mobilização social para reportar esse tremendo fato, uma vez que, lá no fundo, sabe-se o quanto custou a conquista desse ato e o quanto custa, para os sonhos e objetivos de alguém, morar na periferia.

Acordar mais cedo, dormir mais tarde. Conseguimos o trabalho dos sonhos após esforço e dedicação, mas ele fica a duas horas de casa e requer várias baldeações. Conseguimos bolsas em cursinhos e colégios de alto nível, e, apesar das aulas só começarem tarde, ainda precisamos acordar três, quatro horas mais cedo irremediavelmente — pois o trajeto é longo. Queremos ir a museus e parques, mas eles ficam a muitos quilômetros, a quase duas horas de casa. Nem sabíamos que existiam centros políticos como a ALESP e a Câmara de São Paulo de tão distantes que estão da nossa realidade. Os espaços são públicos, sim, mas não necessariamente. Por que o espaço público periférico é descartado? Por que o espaço público não está a nosso alcance física e culturalmente? A distância é física, mas traduz uma mentalidade. A mentalidade hierarquizada que marginaliza os periféricos.

Somado à tarefa regular está o esgotamento, o que constitui uma jornada dupla: uma viagem por dia (às vezes até duas) faz o periférico não ter escolha e precisar se ajustar às suas condições, precisando andar quilômetros aquém para chegar onde alguém dos Jardins chega em 10 minutos. Isso não apenas em termos geográficos, mas sociais, econômicos; em termos de oportunidades.

As oportunidades estão mais distantes. Estamos distantes dos colégios de elite, bilíngues e caros, dos escritórios de multinacionais e milionários. Distantes dos shoppings chiques, uma vez que as lojas dos centros comerciais daqui são diferentes, contrastantes, lojas de massa. Se quisermos visitar um Starbucks, uma livraria, uma exposição, temos que nos locomover a áreas centrais, tornando essa ida um roteiro até turístico, pois estabelecimentos destes nas zonas periféricas são raros. Enquanto isso, estamos perto do tráfico, da escassez, do descaso público. Estamos muito perto da pobreza, da desigualdade, da violência. Estamos perto da injustiça. Das ruas esburacadas e sem asfalto, da falta de sinalização, da fiação elétrica exposta no meio da rua, da falta de fiscalização.

Nessa realidade paralela ao resto da cidade, a maior parte das ações sociais vêm da própria comunidade. A comunidade que resiste e decide ajudar-se mutuamente a fim de, juntos, fazerem o que o poder público não faz. Não havia biblioteca na favela onde vivo. A primeira foi criada há uma semana, iniciativa de um morador que a abre aos domingos, pois é seu único dia de férias, no qual leva crianças para explorar a literatura. Enquanto as periferias são ignoradas e só aparecem em imagens que denunciam mas não mudam, de fato, tal realidade, a própria comunidade se reinventa e se apoia, o que, de fato, nos faz ter orgulho da força que mora na periferia.

Yan Boechat, em reportagem pela Deutsche Welle, diz: “Os afortunados paulistanos que moravam e morreram nos arredores do luxuoso shopping [Iguatemi] em 2017 viveram em média 81,58 anos, como se tivessem passado a vida num país como a Áustria. […] a sorte não sorriu da mesma forma para os moradores da Cidade Tiradentes. Por lá, aqueles que partiram no ano passado não conseguiram nem mesmo alcançar a expectativa de vida que um cidadão da República Popular do Congo, um dos países mais pobres do mundo, tem ao nascer: 59,8 primaveras. Em Cidade Tiradentes morre-se, em média, 1,4 ano antes disso”.

São os dois Brasis. Já denunciados desde as obras pré-modernistas, estes ainda se mantêm de pé com barreiras vistas não só na comparação de dados sobre qualidade de vida, IDH, mortalidade infantil, saneamento básico e muitos outros, mas físicas. As barreiras geográficas são tão palpáveis que chegam a ser visíveis ao comparar fotos de ambientes completamente diferentes a menos de 40 quilômetros de distância entre si, como Tiradentes e Jardins. Yan continua: “[A] Cidade Tiradentes e a periferia de São Paulo fazem parte de um Brasil de meio século atrás, quando a idade com que se morria no país era equivalente à média de 58,4 anos que os moradores do bairro periférico da capital paulista vivem atualmente”.

Fonte: Arquivo pessoal.

Em meio ao descaso governamental que remonta ao século XIX, com o processo de favelização, e à organização hierárquica planejada que resultou na exclusão social vivenciada por milhões de brasileiros, a favela ainda resiste. Mesmo pegando seis ônibus por dia, ou tendo que viajar duas horas para visitar um museu e até chegando em casa às 23h todos os dias após o dia desgastante e horas de transporte extenuantes, temos que viver para mudar o quadro e “subir” na escalada da vida. Superar barreiras impostas pela sociedade, pelo governo e pela própria cidade torna-se difícil, mas é o único jeito de sobrepujar as condições na favela: luta.

No fim, até acostumam-se à vida proletária e exaustiva, mas sempre há a um novo dia de batalhas contra todos os limites impostos. É esperar que Deus ajude quem cedo madruga. Por isso, se necessário fazer jornadas triplas, eu irei a fim de estar onde não me querem: em um emprego importante, em uma universidade de ponta, em uma exposição de artes, em uma assembleia legislativa. Nascer e crescer na favela é fazer-se resistente e perspicaz, quebrar estatísticas e fazer justiça com as próprias mãos, tomando as oportunidades que nos foram restringidas e fazendo-as nossas.

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