Preconceito compromete a educação de estudantes LGBTI+

O papel da educação e de projetos de políticas públicas no combate ao preconceito nas escolas

Lucas Tacara
Jornal Anglo Vozes
11 min readAug 17, 2020

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O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo, segundo dados do Grupo Gay da Bahia (GGB), a cada 23 horas uma pessoa é assassinada em decorrência da identidade de gênero ou da sexualidade. Não obstante, as consequências de uma cultura que maltrata e violenta essa população se alastram por toda sociedade, especialmente no primeiro e mais importante ambiente de socialização: a escola. De acordo com a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), mais de um terço dos estudantes LGBT foram agredidos fisicamente no ambiente escolar em 2016.

Esses são dados da Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil que também aponta que 73% dos estudantes LGBTs pesquisados sofrem bullying homofóbico e 60% se sentem inseguros na escola. Portanto, o cenário é preocupante.

No que diz respeito ao desempenho escolar desses estudantes, os que são alvos de menos preconceito relatam ter notas maiores do que aqueles que sofrem discriminação com mais intensidade. 80% daqueles que não sofrem agressões relatam ter recebido uma nota entre 7 e 10, enquanto para as vítimas, esse índice cai cerca de 7 pontos percentuais por discriminação de gênero ou orientação sexual.

Uma estudante lésbica contou à Agência Brasil, após ser vítima de lesbofobia: “Passei só a tirar notas baixas, parei de frequentar a escola, o que acabou fazendo com que eu reprovasse de ano”.

No entanto, as consequências do preconceito vão muito além da mera diminuição de notas em provas escolares. Rogério Diniz Junqueira, pós-doutor em Direitos Humanos e referência sobre as questões de sexualidade no ambiente escolar, conta: “Embora produza efeitos sobre todo o alunado, é mais plausível supor que a homofobia incida mais fortemente nas trajetórias educacionais e formativas e nas possibilidades de inserção social de jovens que estejam vivenciando processos de construção identitária sexual e de gênero que os situam à margem da ‘normalidade’. É difícil negar que a homofobia na escola exerce um efeito de privação de direitos sobre cada um desses jovens. Por exemplo: afeta-lhes o bem-estar subjetivo; incide no padrão das relações sociais entre estudantes e destes com profissionais da educação; interfere nas expectativas quanto ao sucesso e ao rendimento escolar; produz intimidação, insegurança, estigmatização, segregação e isolamento; estimula a simulação para ocultar a diferença; gera desinteresse pela escola; produz distorção idade-série, abandono e evasão; prejudica a inserção no mercado de trabalho; enseja uma visibilidade distorcida; vulnerabiliza física e psicologicamente; tumultua o processo de configuração e expressão identitária; afeta a construção da auto-estima; influencia a vida socioafetiva; dificulta a integração das famílias homoparentais e de pais e mães transgêneros na comunidade escolar e estigmatiza seus filhos/as”.

Esse é o quadro para muitos estudantes LGBTs, especialmente à população transgênero. Segundo um estudo de 2018 feito pela Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, cerca de 91% das pessoas transgênero não concluíram o ensino médio. São vítimas de discriminação e violência em tamanho grau insuportável no ambiente escolar que o abandonam. No final, essa população fica relegada ao mercado ilegal da prostituição, em que 90% das mulheres trans brasileiras acabam situadas.

Fernando Seffner, sociólogo e doutor em Educação, pontua que “a escola brasileira vive hoje o desafio de aceitar os ‘diferentes’, aqueles desde sempre ausentes do espaço escolar, ou que nele estiveram apenas por breves passagens, sendo logo excluídos”. Ela funciona como um gigante funil, todos e todas têm direito à educação, no entanto, poucos são os que a concluem. Grande é a gama de excluídos.

A transformação pela educação

É gritante a necessidade de mudança. Colégios, escolas e instituições pró direitos humanos exemplificam como deve ser tratada essa questão na escola. Em geral, advoga-se pelo combate à ignorância e a conscientização de estudantes e professores para o combate à discriminação. Para o diretor LGBT da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), Jardel Corbacho, a “LGBTfobia se combate no diálogo da desconstrução, mostrando que estamos aqui com o nosso amor, e iremos resistir”.

Junqueira, também conta: “A escola não poderia ficar alheia e vem sendo convocada a uma participação de maneira ‘eficaz’ e ‘ativa’ frente às dificuldades de uma participação social e política, e ao infinito ‘silenciamento’ que contribui para a reprodução e perpetuação das opressões e das desigualdades. Para que a sociedade avance, a escola terá uma grande parcela nessa construção.”

No Colégio Anglo São Paulo, já em seu ano de inauguração, em 2018, o estudante Lorenzo Medeiros da primeira série se assumiu como um homem trans. A fim de propiciar um ambiente mais confortável ao colega e já incomodados com a divisão sexual do banheiro, os alunos sugeriram à coordenação que fossem instituídos banheiros unissex. Assim, foi feito em decisão unânime em um plebiscito.

Para a população trans, nunca é fácil o período de transição, ainda mais no país que mais mata pessoas transexuais no mundo. Com a instauração dos banheiros unissex e o apoio de seus amigos, Lorenzo se sentiu acolhido e mais confortável em seu ambiente escolar. Em entrevista à Folha de S. Paulo, o estudante relatou: “É um alívio muito grande quando você passa a falar sobre si mesmo sem se esconder, falar do jeito que você é realmente. […] É sempre mais fácil lidar com o que é negativo quando você tem com quem contar, quando você tem o apoio de quem você ama”.

Hoje, o colégio permanece com o mesmo sistema de banheiros. Tornou-se uma cultura aos alunos veteranos a luta para sua permanência e a conscientização dos novatos a respeito de sua história e sua importância. Em estado de normalidade, a unidade Anglo São Paulo estabelece debates e mesas redondas para discutir sobre discriminação com o objetivo de conscientizar os alunos sobre o combate a qualquer tipo de preconceito, firmar uma cultura já existente entre os lecionandos de intolerância contra manifestações de ódio e furar a bolha social, que muitas vezes turva o panorama da realidade de muito estudantes da classe média paulistana.

No entanto, o cenário é outro na rede pública, ou em pequenas escolas da rede privada. Nem todas possuem a estrutura de articulação para realizar debates e discussões ou a ousadia para desafiar uma ideologia que ainda crê que assuntos como a LGBTIfobia não devem ser tratados na escola. A se tratar desse ponto, vale-se recordar do projeto inclusivo formulado para alterar essa realidade.

Em 2004, o governo federal lançou o programa Brasil Sem Homofobia, que tinha o objetivo de combater discriminações contra a população LGBT. De uma parte desse programa nasceu o projeto Escola Sem Homofobia, que consistia num material didático voltado para a formação de educadores e a conscientização de alunos sobre questões de gênero e sexualidade a fim de combater o preconceito e a violência sexual.

“O programa traz, no seu cerne, a compreensão de que a democracia não pode prescindir do pluralismo e de políticas de equidade e que, para isso, é indispensável interromper a longa sequência de cumplicidade e indiferença em relação à homofobia e promover o reconhecimento da diversidade sexual e da pluralidade de identidade de gênero, garantindo e promovendo a cidadania de todos/as.”, escreveu Junqueira sobre o Escola Sem Homofobia.

Embora o projeto tenha passado por financiamento, por diversos processos de aprimoramento e estivesse pronto para ser impresso, em 2011, a então Presidenta Dilma cedeu à enorme pressão de diversos setores conservadores da sociedade e o barrou. Os contrários ao projeto o acusavam de propagar a “ideologia de gênero”, de estimular a homossexualidade, e de ferir os bons costumes e invadir o papel da família na criação dos jovens, embora a Constituição Cidadã estabeleça que a educação deva visar “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” em seu artigo 205. Assim, o projeto foi pejorativamente alcunhado de “Kit Gay” e capitalizado por conservadores para atacar adversários ideológicos e acusá-los de possuírem más intenções contra a família tradicional brasileira — seja lá o que isso significa.

Constitucionalíssimo, o projeto caiu por puro atraso e preconceito. Setores ligados à bancada evangélica iniciaram uma campanha ideológica de combate a termos que abordem sexualidade ou gênero na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Em 2017, o Ministério da Educação do governo Temer optou por retirar os termos “orientação sexual” e identidade de gênero” da BNCC. Em entrevista à Agência Câmara Notícias, a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) relatou: “Retirar isso significa desconhecer que há pessoas que sofrem uma morte simbólica que, em grande medida, precede uma morte literal em função da sua condição de fazer parte de uma população LGBT+. Então é muito importante que nós atestemos a violência, que tenhamos esses dados publicizados para que possamos construir políticas públicas na perspectiva de romper esse nível de violência”.

“Todo preconceito impede a autonomia do ser humano, ou seja, diminui sua liberdade relativa diante do ato de escolha, ao deformar e, consequentemente, estreitar a margem real de alternativa do indivíduo.” Agnes Heller

No 32º volume “Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas” da coleção Educação para Todos do Ministério da Educação, Rogério Junqueira escreveu: “Diante do anseio de construirmos uma sociedade e uma escola mais justas, solidárias, livres de preconceito e discriminação, é necessário identificar e enfrentar as dificuldades que temos tido para promover os direitos humanos e, especialmente, problematizar, desestabilizar e subverter a homofobia”.

Nesse volume, que conta com a presença de diversos autores, muito se afirma sobre a nocividade da omissão ou do “silenciamento” da escola no combate aos preconceitos numa sociedade marcadamente preconceituosa. “A homofobia não é fecundada dentro da escola, mas é gerada por ela; para que os/as profissionais da educação não optarem pelo ‘silenciamento’, diante de situações quando seus/suas estudantes e, também, muitos/as professores/as, desenvolvem atitudes/comportamentos ou crenças enraizadas em preconceitos racistas, misóginos, sexistas, homofóbicos, tais como, diante de cenas quando estudante, por exemplo, insulta um/a colega ou afirmando ser gay, lésbica, ‘mulherzinha’, ‘viado’ ‘puta’, ‘que devem morrer, mesmo’, não prevaleça o conteúdo curricular previsto”.

Embora todas as mazelas e confrontos ideológicos encontrados na família, na política, na igreja, nos meios de comunicação e na escola, todos entendem a educação como papel central à igualdade social e ao desenvolvimento humano. Destaca Junqueira que “mesmo com todas as dificuldades, a escola é um espaço no interior do qual devem ser construídos novos padrões de aprendizagem, convivência, produção e transmissão de conhecimento, sobretudo se forem ali subvertidos ou abalados valores, crenças, representações e práticas associadas a preconceitos, discriminações e violências de ordem racista, sexista, misógina e homofóbica”.

“Paulo Freire (1921–1997) contradizia o senso comum ao afirmar que a liberdade de qualquer indivíduo começa exatamente onde começa a do outro, e que ela termina a todo momento em que um cidadão e uma classe social perdem a sua. Enquanto houver alunos sendo oprimidos por violência simbólica ou por força física, todos estão sendo violentados. Combater o preconceito na escola é garantir a liberdade de cada um”, escreveu o comunicólogo e repórter Leonardo Sá à Nova Escola.

No capítulo Orientação Sexual nas Escolas Públicas de São Paulo, o psicólogo educacional, sociólogo e membro fundador do Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual, Antonio Carlos Egypto, relatou seu programa nas escolas públicas de São Paulo Orientação Sexual na Escola. “O projeto visa à discussão sobre a sexualidade, os preconceitos, os tabus, as emoções e as questões sócio-políticoculturais que permeiam o tema, proporcionando aos educandos das escolas a oportunidade de refletir sobre os seus próprios valores e os dos outros, bem como uma vivência da sexualidade com maiores possibilidades de segurança, de prazer, de amor e do exercício de liberdade com responsabilidade”.

O Orientação Sexual na Escola atuou em dois momentos em todo o ensino público da Cidade de São Paulo, de 1989 a 1992, e em 2003 e 2004. Atingindo cerca de 100 mil alunos, o projeto se dirigiu aos educadores de todos os níveis de ensino: Educação Infantil (inclusive creches), Ensino Fundamental, Médio, Educação Especial e de Jovens e Adultos.

O primeiro passo constitui em um curso inicial que aborda os passos básicos para a implantação de programas de orientação sexual nas escolas, incluindo postura, metodologia, aspectos biológicos, psicológicos e temas sociais polêmicos. Direcionado ao educador, procura gerar reflexão, ajudando-o a lidar com suas dificuldades, barreiras e seus preconceitos diante do tema da sexualidade. Trata também de discutir a sexualidade na infância e na adolescência e procura trabalhar dinâmicas de atuação em sala de aula.

Ilustração: Marcella Tamayo

A outra etapa, e mais importante, é chamada de supervisão. É o trabalho de acompanhamento das ações pedagógicas em que um pequeno grupo de educadores e educadoras se reúne semanalmente com um formador no caso do Ensino Fundamental, ou quinzenalmente, no caso da Educação Infantil, para debater temas, posturas, metodologia, estratégias de ação e avaliar permanentemente o trabalho que está sendo feito. “Aí está a alma do projeto. É pelo envolvimento constante com o tema da sexualidade que é possível entender e elaborar as principais dificuldades, acolher e trabalhar com necessidades, interesses e desejos das crianças e dos adolescentes, avançar no conhecimento e no domínio da questão. As supervisões acompanham de perto o planejamento e a execução das ações, definindo estratégias, material didático e garantindo uma linha de atuação aberta, democrática e de inclusão, com base numa metodologia participativa.”.

Egypyto também acredita no papel fundamental da escola no acolhimento de estudantes LGBT+ e no combate ao preconceito. “Uma questão tão importante como é a da sexualidade não poderia deixar de ser trabalhada na educação e se constituir política pública”. Essa atuação “deve começar na Educação Infantil e se estender até o final do Ensino Médio” a fim de favorecer a “ampla liberdade de expressão em ambiente acolhedor que visa a promover bem-estar sexual e vínculos mais significativos, ampliando a cidadania.”

O ambiente escolar não deve, em nenhuma instância, ser um ambiente hostil e assimilado à discriminação de gênero, racial ou sexual, mas sim um ambiente de acolhimento, respeito e progresso. É preciso que mais jovens LGBT+ tenham a mesma oportunidade de Lorenzo. Que o Lorenzo não seja a exceção privilegiada em meio ao desastre social que é a sociedade brasileira no que tange o tratamento às pessoas LGBTI+. Por mais projetos como o Escola Sem Homofobia e o Orientação Sexual na Escola, a fim de um ambiente escolar inclusivo que proporcione o acolhimento dos “diferentes”, rompa com o estigma escolar do “grande funil” e favoreça a plena liberdade de expressão dos estudantes.

“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres” Rosa Luxemburgo

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