Necessidade e resistência: mulheres à frente dos seus negócios

Empreendedoras e afroempreendedoras de Bauru comentam como é viver na linha tênue do trabalho autônomo em uma sociedade patriarcal

Jornal Dois
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9 min readMar 16, 2019

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Titta trabalhando com seu secador específico para secar cabelos crespos e cacheados (Foto: Bianca dos Santos/Reprodução)

Por Paula Bettelli

Maísa Adriele da Silva, mais conhecida como Maísa Crespa, é afroempreendedora e artesã. Nascida dentro do Movimento Sem Terra, costuma dizer que é piolho de acampamento – e foi lá que aprendeu as técnicas de artesanato, com ensinamentos dados pelos seus pais.

Faz quatro anos que Maísa decidiu renunciar à vida de carteira assinada para trabalhar com criações próprias. Hoje, aos 29 anos, ela monta colares, brincos e filtros dos sonhos com sementes e linhas, além de fazer dreads e produzir roupas estilo tie-dye, uma técnica de tingimento artístico de tecidos.

Os materiais usados para as produções são simples, mas o resultado, ela avalia, é único. “Estou dando continuidade a esse trabalho que alimentou a gente por muito tempo”, diz Maísa, em referência ao trabalho da família. “A arte que eu faço começou dentro do assentamento, mexendo com essa coisa da semente, que é trazer as funções delas para além do ciclo natural”. A afroempreendedora explica que seu trabalho carrega uma memória ancestral, e hoje, além desse significado afetivo, também é seu meio de subsistência.

Assim como Maísa, muitas mulheres entraram para o ramo dos negócios nos últimos anos. Algumas porque decidiram abdicar de suas carreiras sólidas e arriscar a autonomia no trabalho, outras por necessidade.

O estudo Quem são elas? realizado pela Rede Mulher Empreendedora (RME) faz um levantamento sobre a realidade social em que vivem e dá contornos vivos para elas que decidiram ser suas próprias chefes. Segundo os resultados da pesquisa, a empreendedora brasileira média tem 39 anos, é mãe de um filho, casada, tem formação superior completa, experiência no mundo corporativo e é dona de uma empresa no setor de serviços.

Na prática, a realidade individual de muitas foge desse padrão. Maria de Fátima Teixeira Alves tem 63 anos e pretende se tornar Microempreendedora Individual (MEI) esse ano. “Eu sempre trabalhei de costureira. Trabalhei por muito tempo na informalidade, só que agora eu estou com vontade de mudar de ramo, quero ir pro ramo de doce em pote. Fazer outras coisas, ser legalizada”, planeja ela.

Representando o lado avesso à necessidade, que é o do empreendedorismo por oportunidade, Maria de Fátima conta que deseja abrir seu próprio negócio por prazer. “Quando você é mais nova sempre está atrelada ao salário, àquele compromisso de receber aquilo todo mês. Mas agora é eu e meu esposo só, então é mais por um prazer, conhecer pessoas. Eu quero é dar doce pro povo comer”, brinca.

Maísa Crespa em seu ponto de sábado no calçadão da Batista (Foto: Acervo/Reprodução)

Mulheres ocupando espaços

Como todos os setores de trabalho no Brasil, pode parecer que a quantidade de homens ultrapasse muito a de mulheres, mas no microempreendedorismo as estatísticas são menos desiguais. Em Bauru, de acordo com informações obtidas no Portal do Empreendedor, existem 24.493 microempreendedores individuais (MEI), sendo 11.286 mulheres – isso representa 46% do total.

Jacqueline Rodrigues dos Santos é diretora de Fomento ao Empreendedorismo e Assuntos do Trabalho na Casa do Empreendedor, e afirma que empreender também pode ser um ato de empoderamento para as mulheres.

“Quando uma mulher se impõe no mercado de trabalho ocorre uma transformação social muito profunda”, avalia a profissional. “A mulher cria um ambiente que a garante as mesmas oportunidades de crescimento profissional que os homens e independência econômica, o que pode ser vital para reduzir problemas que assolam mulheres em todo o mundo, como a violência doméstica. Ela ganha a possibilidade de retomar o controle de sua trajetória”.

Enfrentamento diário à desigualdade de gênero

Para as trabalhadoras mulheres o mundo corporativo é hostil. De 2003 a 2013, 43% delas afirmam que o medo do fracasso é um empecilho para não abrir a própria empresa. É o que revela a pesquisa realizada pelo Sebrae na época: Os donos de Negócio no Brasil: Análise por sexo.

Kátia Pereira do Santos Servantes de Queiroz, a Titta, é formada em design gráfico e trabalha como cabeleireira desde 2011. Ela conta que está em fase de transformação porque passa pelo processo de se encontrar como empreendedora. “Eu não fui criada para ser dona do meu negócio, fui criada para ser funcionária. Acho que nem só por ser mulher, mas também por ser negra. Meu pai sempre teve esse lance de ‘nós somos negros e temos que batalhar três vezes mais que um branco’”, relata.

A falta de confiança e de estímulo não são os únicos motivos para vermos com menos frequência as mulheres no mundo dos negócios. Assédio sexual e desigualdade salarial são pedras no caminho de mulheres que procuram crescer dentro de empresas.

Em 2013 o coletivo Think Olga realizou a campanha e estudo Chega de Fiu Fiu, que trouxe à tona dados sobre a violência de gênero no mercado: 33% das mulheres que responderam às questões afirmaram já ter sofrido assédio no ambiente de trabalho.

Para a diretora da Casa do Empreendedor em Bauru, o empreendedorismo é mais eficaz como incentivo à autonomia das mulheres, já que no setor há menos risco de se deparar com questões como essas. “[A mulher empreendedora] tenderá a contratar mulheres para trabalhar em sua empresa, criando uma comunidade de empoderamento feminino e colaborando com o desenvolvimento socioeconômico da sociedade”, explica Jacqueline.

O Sebrae aponta, em “Os donos de negócio no Brasil”, que nos pequenos negócios o salário é menos desigual. Enquanto que nas médias e grandes companhias brasileiras os homens ganham 44% a mais do que as mulheres, nas micro e pequenas empresas eles recebem em média 24% a mais do que elas. A maternidade é um dos principais fatores para a desigualdade salarial entre gêneros. O impacto está em grande parte na divisão desproporcional do trabalho doméstico e cuidados com os filhos.

Há também as pequenas tarefas de gestão do cotidiano – como estar atenta à saúde de todos da casa, à gestão do ambiente e das relações, da limpeza, da alimentação – relegadas às mulheres. São atos imperceptíveis, que parecem pequenos, mas que constituem fatores de sobrecarga: a dupla ou tripla jornada de trabalho.

Publicada pelo jornal Nexo, matéria explica esse contexto que chama de ‘carga emocional’: “Esses esforços contínuos são exaustivos e têm efeito cumulativo já mostrado por pesquisas. Apesar disso, raramente são reconhecidos como fonte legítima de sobrecarga ou estresse, e por isso não se refletem em nenhum tipo de compensação salarial”, diz a reportagem.

Para Paula Rocha, microempresária (ME) em consultoria criativa, ter a possibilidade de manejar seus horários junto com o cliente é essencial para conseguir conciliar seu trabalho com o cuidado do filho. “Enquanto eu amamentava só atendia clientes que permitiam que eu levasse ele e a minha mãe como acompanhante em uma sala de apoio, para que nos intervalos eu pudesse amamentá-lo. Então diante dessa condição e dessa aceitação eu fazia o trabalho, do contrário não”, lembra ela.

Paula Rocha enquanto ministra palestra sobre empreendedorismo feminino (Foto: Acervo/Reprodução)

Traçando novos caminhos

O empreendedorismo traz a possibilidade de atuar em áreas variadas, e dá maior abertura para mulheres usarem seu tempo exercendo funções que se identifiquem. Titta, designer que virou também cabeleireira, não se arrepende de ser a própria chefe. “Estou super bem inserida aqui. Estou na linha de frente, acordo todo dia e falo ‘eu tenho um salão!’, que era uma coisa que eu jamais pensaria na vida – ser dona de negócio. Eu percebi que, ainda mais nessa área do salão, eu não queria mais ser subordinada a ninguém”, afirma a empreendedora.

Titta relata que iniciou o trabalho como cabeleireira depois de escolher assumir seu cabelo natural e não encontrar profissionais que tivessem conhecimento das técnicas adequadas ao cabelo crespo. Isso fez com que ela percebesse a importância de existir e se firmar nesse ramo, dedicando-se especificamente aos cabelos crespos e cacheados. “Meu foco vai ser sempre o crespo porque eu sou crespa. Eu tenho facilidade e fascínio mesmo pelo meu cabelo, então é uma coisa que eu nunca paro de estudar”.

Maísa enfatiza a necessidade de enaltecer essas produções artesanais: “Isso aqui tem que ser muito mais valorizado do que se fosse um cara que tem uma condição melhor, aluga um espaço, enche de roupa da 25 de Março e contrata funcionários pagando menos de um salário mínimo para enriquecer às custas dos outros”, opina, sobre a possibilidade do empreendedorismo que explora a mão de obra alheia. “Eu faço por minha conta meu trabalho e a mão de obra é minha, minha criatividade é só minha”.

Trabalhar e deixar um legado

É possível observar, ao conversar com as empreendedoras, o valor que elas dão aos seus trabalhos, a vontade que têm de causar impacto social e transformar a realidade na qual estão inseridas. “A importância da resistência no que eu resolvi fazer da minha vida é que de repente eu não consigo revolucionar o país hoje, mas vou deixar meu legado aqui”, afirma Maísa. Já aconteceu de crianças chegarem em mim e relatarem que começaram a usar turbante, uma tiara, porque me viram usando. Então a gente precisa resistir mesmo, por isso que eu estou aqui”, declara a artesã.

Titta, além do salão de cabelos crespos e cacheados, tem um projeto chamado Cabelo Crespo É Cabelo Bom. Ela dá palestras sobre os tipos de cabelos e a forma de cuidar do cabelo crespo com pouco dinheiro, utilizando produtos naturais. “Esse projeto acabou me ajudando a trazer para perto pessoas que não aceitavam o cabelo ou que têm problema para cuidar. O salão é uma coisa comercial, eu cobro pela consultoria, mas eu tenho esse canal aberto com as pessoas. Então às vezes eu estou no bar e as pessoas vem conversar comigo para saber como elas devem cuidar do cabelo, eu acho isso essencial”.

“Agora eu tenho que lidar com o medo”

Durante a entrevista para a equipe do Jornal Dois, Maísa reforçou diversas vezes que ocupar os espaços com seu trabalho é um ato de resistência. Itinerante, ela muda seu local de exposição de produtos na medida em que as oportunidades que aparecem, e está sempre suscetível ao que as interações na rua podem trazer. A artesã conta que a intimidação policial é frequente.

“Todo sábado a gente enfrenta a mesma situação. Todo sábado a viatura para na frente da nossa barraca e fica de olho no que a gente está fazendo, olhando para a nossa cara. Eu tenho muito medo da polícia, muito. A gente cresceu numa sociedade que ensinou a gente que para ser repreendido pela polícia ou qualquer órgão público a gente tem que fazer uma coisa muito errada, roubar ou matar, mas não ser repreendido por estar indo expor um trabalho manual seu, que é seu sustento e da sua família. Eu descobri com uns 24 anos que na verdade não. Que a gente ser quem nós somos incomoda, a gente preto ainda incomoda muito mais. Agora eu tenho que lidar com essas limitações, com o medo. Eu aprendi, é a realidade. E é triste, é muito triste”.

Quem está com essas mulheres?

Maísa Crespa relata que das vezes que a denunciaram enquanto expunha seu trabalho, a Secretaria Municipal de Planejamento (Seplan) interferiu e recuperou os materiais apreendidos pela polícia, permitindo que a atividade continuasse. “Mas daria para fazer muito mais né, dar uma visibilidade muito melhor para esses artistas de rua, principalmente”, critica.

Já para Titta, quem faz o papel de auxílio aos empreendedores é o Sebrae, “e só o Sebrae. Eles não estão muito interessados, aqui em Bauru eles não ligam. Não tem essa política e eu percebo que nem a vontade de ajudar”.

A Sala do Empreendedor está em funcionamento na cidade desde 2013, como parte da implementação da Lei Municipal 5775/2009, que cria o Estatuto Municipal da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Lá, é possível iniciar e completar o processo de formalização do negócio – consulta de zoneamento, abertura do CNPJ, até a Emissão da Licença de Funcionamento.

Para complementar o auxílio público aos que buscam empreender em Bauru, a Casa do Empreendedor oferece atendimento, organiza palestras e acompanha o desenvolvimento desses empreendedores. Segundo e-mail enviado à reportagem pela Casa do Empreendedor, não existem dados estatísticos que informem a situação, o contexto e as dificuldades das empreendedoras bauruenses, nem indicadores para mensurar o alcance das políticas municipais para o setor. A diretora do local pontua que tem percebido aumento da procura de mulheres pela Casa nos últimos anos, e que “a tendência é crescer”, prevê Jacqueline.

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