Papo reto pra Bauru ficar perfeita: o que é o ‘destravamento’ da cidade?
Parte das promessas de campanha do prefeito Clodoaldo Gazzetta (PSD), as medidas do chamado “destravamento” estão sendo discutidas e votadas pela Câmara Municipal
Por Lucas Mendes
Bauru seria uma cidade com uma gestão participativa, democrática e transparente nos cem primeiros dias de 2017. Pelo menos era o que previa o Programa de Governo da coligação “Bauru sempre em frente”, que venceu as eleições levando Clodoaldo Gazzetta (PSD) a assumir a prefeitura.
Um dos destaques da nova gestão era o chamado “destravamento” da cidade. O programa prometia “uma grande força tarefa” entre “poder público, empresários, comerciantes, movimentos sociais, econômicos, sociedade civil organizada, lideranças populares e religiosas” em conjunto com a Câmara Municipal para acelerar os processos de regulamentação e destravamento da cidade. A busca era por novos investimentos visando a geração de emprego e renda além do desenvolvimento sustentável.
A primeira medida do novo prefeito foi alterar o Plano Diretor Participativo (PDP) de Bauru. Plano diretor é um conjunto de normas, com força de lei, que regulamenta o planejamento urbano e o crescimento das cidades.
O PDP de Bauru, por exemplo, proibia o uso e ocupação do solo nas Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Em Bauru, as três APAs existentes (Água Parada, Batalha e Vargem Limpa/Campo Novo) representam cerca de 66% do território municipal.
Para atender o que tinha sido prometido em campanha, a prefeitura encaminhou um projeto de alteração dos artigos 38 e 73 do plano diretor, para que fosse possível aproveitar o uso do solo nas APAs.
Qualquer alteração dentro das áreas de proteção ambiental precisa passar por um processo anterior. É necessário elaborar planos de manejo — um documento feito com estudos sobre o meio ambiente da região, estabelecendo normas, restrições para o uso e ações que podem ser desenvolvidas dentro das APAs.
Em julho de 2017, após realização de três audiências públicas, os vereadores da Câmara Municipal aprovaram por unanimidade a alteração do PDP. Estava aberta ali a movimentação pelo destravamento de Bauru.
Vai destravar o quê?
Um dos argumentos a favor do destravamento é a possibilidade de fazer negócios. Empresários e imobiliários defendem a simplificação de processos e da burocracia para investir em Bauru.
“Bauru sempre foi uma cidade difícil nesse sentido. Destravar é exatamente criar mecanismos para que as coisas não fiquem fáceis de mais, a ponto de não ter nenhum tipo de controle, mas não ficar procurando “pelo em ovo”, com dificuldades que são intransponíveis e fazendo exigências absurdas e sem sentido”, afirmou o vereador José Roberto Segalla (DEM), que também é presidente da Assenag (Associação dos Engenheiros, Arquitetos e Agrônomos) de Bauru.
Na mesma pegada vem o vereador Sandro Bussola (PDT), presidente da Câmara Municipal. “Nós sabemos que a cidade vive um momento difícil de desemprego, e uma forma de impulsionar a geração de empregos na cidade é o investimento na construção civil, tendo em vista que a cidade tem um viés positivo nessa área”, avalia.
O vereador defende que é possível o “meio ambiente e o progresso da cidade caminharem juntos”. Ainda pontua: “Nas APAs, quando você faz um projeto de flexibilização, na verdade é você permitir, [mas] com uma responsabilidade que vem acompanhando (…) desde que se respeite esse plano de manejo que está sendo elaborado”.
Nas APAs de Bauru predominam variações da Mata Atlântica e de Cerrado. Os dois biomas estão bastante degradados e restaram-se trechos preservados, chamados de “ilhas de vegetação”.
O cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul, depois da floresta amazônica — ocupa cerca de 22% do território brasileiro. Só na região de Bauru, o cerrado ocupa cerca de 2,5 mil hectares, e o bioma conta com a proteção de leis, uma municipal, da década de 1990, e outra estadual, de 2009.
Em 2015, a prefeitura assinou o Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica e do Cerrado, com a ONG (Organização Não Governamental) SOS Mata Atlântica. O documento possui protocolos de ações para preservação do cerrado. De acordo com a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, “foi pioneiro no país no sentido de incluir o bioma cerrado em um plano de conservação municipal”.
ZICS e a expansão do perímetro urbano
Duas propostas dentro do “pacote de destravamento” de Gazzetta estão no centro do debate nas últimas semanas: a regulamentação das ZICS (Zonas de Indústria, Comércio e Serviços) e a expansão do perímetro urbano.
O JORNAL DOIS acompanhou a primeira audiência pública que discutiu essas duas propostas, em janeiro deste ano. Você pode ver mais detalhes dos projetos na matéria sobre a audiência.
Criadas pelo Plano Diretor Participativo, são 26 áreas de ZICS espalhadas pela cidade. Como o próprio nome já diz, são espaços delimitados para a instalação de indústrias e empresas do comércio ou prestadoras de serviços. O uso das ZICS surgiu como medida para incentivar a instalação de empreendimentos no município.
Já a expansão do perímetro urbano trata de alargar a fronteira que separa a parte urbana da parte rural da cidade, com a finalidade de aumentar as áreas disponíveis para loteamentos e construções, o que segundo os autores do projeto, traria investimentos e gerando desenvolvimento e emprego.
O projeto da prefeitura envolve cinco áreas de expansão, todas fora das APAs. Somadas, as cinco áreas dão mais de 12 milhões de m², o equivalente a aproximadamente 1680 campos de futebol (*).
De acordo com o entendimento da prefeitura, as áreas das ZICS passaram a apresentar outras vocações, diferentes do seu uso original para indústria, comércio ou serviços. Assim, o projeto flexibiliza o uso das ZICS ao dividi-las em três categorias, passando a permitir sua utilização para fins residenciais.
“É uma forma de flexibilizar, fazer a cidade crescer com responsabilidade”, alega Bussola. Para o vereador, a medida vai possibilitar o desenvolvimento do entorno de Bauru, “onde haviam algumas construtoras e imobiliárias que tinham seu interesse de construir na beira de rodovias”.
Bussola também defende a expansão do perímetro urbano, pois “quando você amplia, você abre a disputa de mercado” e isso, segundo ele, poderia baratear o preço da terra. “A realidade do preço do metro quadrado de terra em Bauru parece que você compra e tem petróleo embaixo. Tem muita terra na mão de pouca gente”, afirma.
O projeto da regulamentação das ZICS foi aprovado por unanimidade pelos vereadores no início de maio, e passa a valer como Lei Municipal 7066/2018. A proposta de expandir o perímetro urbano estava na Comissão de Economia, Finanças e Orçamento da Câmara Municipal, sob a relatoria do vereador Ricardo Cabelo (PPS), mas sua tramitação está parada pois o vereador solicitou as seguintes informações ao prefeito:
- Quem são os proprietários das áreas que estão sendo incluídas ao perímetro;
- Quais os projetos de empreendimentos;
- Quais as contrapartidas que serão oferecidas pelos empreendimentos ao município;
- Quem se responsabilizará pela construção de vias;
- Quais os investimentos que o município precisará fazer nessas áreas.
“Grandes vazios especulativos”
A concordância de opiniões sobre o destravamento que se vê entre os vereadores da Câmara Municipal, e é estimulada pela mídia da cidade, não se reflete no conjunto da sociedade.
“São grandes vazios especulativos que estão sendo produzidos, sem planejamento e sem absoluta previsibilidade de onde colocar”, afirma o arquiteto e urbanista José Xaides Alves, professor da Unesp de Bauru. “Os empreendedores vão poder fazer lá na divisa com Agudos, criar ruas e avenidas longas. Isso vai encarecer o transporte coletivo, as questões de iluminação pública, a manutenção desses sistemas viários, questões de prejuízos ambientais”, critica.
De acordo com o professor, a defesa da ampliação do município não se justifica. “Os dados das nossas pesquisas são preocupantes. Na área do município, existe hoje algo em torno de 30% [do território] de vazios urbanos, então já existe um passivo de área que se houvesse a aplicação correta dos instrumentos do Estatuto da Cidade, Bauru não precisaria crescer para fora”, defende.
A posição do professor não é compartilhada com o prefeito Gazzetta. Na justificativa do projeto de Lei 34/2018, que trata da expansão do perímetro urbano, o cenário mostrado aponta para uma realidade em que a maioria das glebas (terrenos) vazias já foram ocupados.
No entendimento da prefeitura, restam poucas áreas disponíveis para loteamento. “O fato é que essa escassez de glebas parceláveis tem impactado no mercado imobiliário, criando um desequilíbrio que corroborou para transformar Bauru numa das cidades com maior valor de metro quadrado do interior de São Paulo”, aponta o prefeito.
Nas contas de Xaides, se fosse aplicada nos vazios urbanos uma urbanização semelhante ao que se tem hoje em Bauru, com as quadras normais de 24 lotes e um prédio de 25 andares em cada quadra, daria para colocar cerca de 150 mil pessoas a mais nesses espaços. “É um contingente muito grande de pessoas que a cidade poderia absorver sem precisar expandir”, ressalta.
Ele cita como exemplos de vazios urbanos as áreas atrás do Bauru Shopping, a região do final da avenida Getúlio Vargas, a região da avenida Nações Norte e a área entre os bairros Gasparini e Pousada da Esperança, além do eixo ferroviário.
Audiência pública para quê?
“Essa proposta foi colocada em três das cinco audiências. Eles tinham que acatar essa proposta, mas a administração não quis. É mais um erro que eles não poderiam fazer”, dispara Nelson Fio, representante do Movimento Popular de Bauru.
Ele se refere à proposta de destinar como ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) 20% de cada uma das cinco áreas de expansão do perímetro urbano. Após apresentar a ideia nas audiências públicas, Fio agora está colhendo assinaturas para um abaixo assinado a ser encaminhado aos vereadores. “No Estatuto da Cidade está que toda vez que se amplia o perímetro urbano tem que deixar uma área para habitação social”, afirma.
O Estatuto da Cidade regulamenta a Constituição Federal no que diz respeito à política urbana. Nele consta que “os municípios que pretendam ampliar o seu perímetro urbano deverão elaborar projeto específico que contenha a previsão de áreas para habitação de interesse social por meio da demarcação de zonas especiais de interesse social e de outros instrumentos de política urbana, quando o uso habitacional for permitido”.
No projeto de lei encaminhado à Câmara, não foram demarcadas as ZEIS pois “entendeu-se que essa questão deve ser tratada na revisão do Plano Diretor”. Segundo a prefeitura, o objetivo da demarcação de ZEIS é assegurar moradias populares em áreas consolidadas e bem servidas de infraestrutura e equipamentos, “o que não é o caso das áreas que se pretende incluir no perímetro, que se configuram como regiões periféricas e ainda sem infraestrutura”.
Além das audiências públicas, outro espaço de participação popular nas questões urbanas é o Conselho do Município de Bauru (CMB). No grupo participam membros do Poder Público, de entidades de classe, ONGs, universidades e representantes de bairros e setores da cidade.
As propostas de expansão do perímetro urbano e flexibilização das ZICS foram aprovadas dentro do CMB. Raeder Rodrigo Porcaro Puliesi, presidente do Conselho, considera como “positivas” ambas as medidas.
“Diferente do que ocorria, agora será possível construir residências em ZICS, ou seja, será permitido que loteamentos sejam aprovados em tais áreas, ajudando a diminuir o déficit habitacional, bem como o preço da terra, combatendo assim a especulação imobiliária”, explica.
Mesmo com alguns espaços de participação popular, o formato não agrada a todos. “Deveriam ser acatadas as propostas da sociedade. A audiência pública você tem que primeiro convocar o pessoal do bairro, e eles não fazem nada disso. Colocam no Diário Oficial, mas quem que vai ver o Diário Oficial?”, protesta Nelson Fio.
“Aqui em Bauru, tudo é audiência”, afirma Xaides, explicando que na cidade não ocorre uma preparação ou explicação dos temas a serem discutidos nas audiências. “Já vai pras reuniões com o projeto pronto e sem discutir as abrangências. Aqui também não tem uma lei que regulamente a participação. Então a informação não é levada corretamente, o prazo pra avisar e dar publicidade não é respeitado, e também não são debatidos os veículos de comunicação para fazer chegar a informação às pessoas”, explica.
Para Raeder, as audiências públicas foram “suficientes para que todas as dúvidas da população fossem respondidas”. Em sua visão, “a participação popular se deu de forma plena”.
(*) Nas medidas oficiais da FIFA e da CBF, um campo de futebol deve ter 105 metros de lateral e 68 metros de linha de fundo, o que dá uma área de 7.140 m2. Dividindo a área total de expansão do perímetro urbano pela área do campo de futebol, temos 1.680,71, ou aproximadamente 1680 campos de futebol.