Da voz à melodia, sons que curam

Thalis Rota Laner
JORNALISMO CIENTÍFICO UPF
7 min readDec 12, 2023

Desde a antiguidade, a música e o canto têm sido utilizados no tratamento de enfermidades, uma terapia, hoje, comprovada pela ciência contemporânea

A musicoterapia e cantoterapia são tratamentos terapêuticos aplicados na recuperação de enfermidades e manifestação de emoções. (Ilustração: Leonardo AI)

Bloqueios emocionais, traumas psicológicos ou doenças em geral. A lista de problemas e distúrbios que acometem a população cresce a cada dia. Mas, quase na mesma proporção, também se desenvolvem “novos” meios de cura — por vezes, alternativos aos tradicionais.

Quem nunca sentiu que estava triste e precisava de algo para recuperar o ânimo? Sair com os amigos, caminhar pelo parque, cuidar das plantas e assistir a um bom filme clichê podem até ser alternativas para esses momentos, mas, ouvir uma boa música e soltar a voz cantando podem ser formas altamente eficazes de contornar essa situação.

A chamada musicoterapia é uma forma de tratamento que usa a música para ajudar enfermos a se sentirem melhor, tanto física quanto mentalmente, durante o período de recuperação. Ela trabalha com experiências sonoras e pode estar atrelada, também, à cantoterapia, que utiliza a voz interior para expressar emoções, muitas vezes, reprimidas. Nos últimos anos, essa abordagem musical tem sido empregada no apoio à reabilitação de pessoas e se tornado tema de muitas pesquisas na área da saúde.

É isso o que mostra a revisão bibliográfica intitulada “Eficácia terapêutica da música: um olhar transdisciplinar de saúde para equipes, pacientes e acompanhantes”, publicada, em 2018, pela Revista de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e de autoria do fagotista, doutor em Saúde Pública e pesquisador Hermes de Andrade Júnior.

O artigo analisou 35 estudos publicados entre 2005 e 2016 acerca da musicoterapia em diversas áreas — como na embriologia, geriatria, pediatria, oncologia e no ambiente de trabalho — e constatou que a música é um poderoso recurso terapêutico, que ajuda a reduzir as dores físicas e mentais, estimula o corpo e as respostas fisiológicas, diminui os sintomas de desconforto, promove sensações positivas, o bem-estar, melhora as emoções e facilita a comunicação e a sociabilidade do paciente. Uma série de benefícios já conhecida pela humanidade há milênios, mas que fora resgatada pela medicina somente nas últimas quatro décadas.

Dos deuses, aos reis e ao povo

Desde a antiguidade, a música tem sido utilizada em diversas áreas e com inúmeras finalidades — como manifestação religiosa, forma de protesto, e, até mesmo, terapia. Ilustrações e escritas em papiros médicos egípcios já representavam a capacidade curativa das canções e melodias da época para aliviar ataques de ansiedade. Na mitologia grega, Apolo era o deus guardião da medicina e da música, e na Bíblia Sagrada, conta-se que Davi submeteu o rei Saul a uma sessão de terapia musical com sua harpa, com o objetivo de livrar o monarca da depressão e dos ataques de raiva.

Além de fazer parte de diversas celebrações e ritos religiosos no Antigo Egito, a música era empregada como método terapêutico a enfermos. (Foto: Charles K. Wilkinson/The Metropolitan Museum of Art)

Embora desfrutasse de prestígio no passado, após o século V, com o surgimento da medicina ocidental por meio da figura de Hipócrates, a musicoterapia passou a ser vista com ceticismo, pelo fato de estar muito ligada à filosofia e à religião. Somente a partir da década de 1980, autoridades médicas retomaram a discussão do papel das artes-terapias — e, assim, da musicoterapia — como tratamentos substitutos aos fármacos ou como plano B, caso a medicina convencional falhasse.

Décadas antes, a cantora sueca Valborg Werbeck-Svärdström, que, após uma paralisia nas pregas vocais, aos 31 anos, perdera a voz, começou a pesquisar resquícios de sua voz infanto-juvenil e recuperou as cordas vocais. A partir daí, Valborg iniciou atendimentos não apenas com finalidades artísticas, mas também terapêuticas, pois percebeu que a voz era um elemento essencial para expressar suas emoções. Assim, a cantora deu início à, hoje chamada, cantoterapia.

A cantora sueca viu no canto uma forma de terapia para as emoções. Na imagem, Valborg durante apresentação na Ópera Real Sueca, em 1905. (Foto: Atelier Jaeger/Swedish Performing Arts Agency)

A partir dessas experiências, atualmente, a área da saúde trabalha com a ideia da música e canto como terapias complementares, a serem utilizadas junto a tratamentos tradicionais e específicos a pacientes.

Para o corpo, a mente e a alma

De acordo com a revisão bibliográfica, os efeitos da musicoterapia refletem em diversas áreas do corpo do paciente. Além de reduzir a dor, o desconforto e promover estímulos corporais, a musicoterapia atinge especialmente o cérebro, atuando nos processos de resposta emocional, memória e processamento cognitivo.

O estudo publicado na Revista de Enfermagem da Uerj compilou diversas informações, que serviram de base para a construção do infográfico. (Infográfico: Thalis Rota Laner)

Os efeitos positivos da música na cognição são igualmente destacados pela musicoterapeuta Luiza dos Santos Gomide, formada em Licenciatura Plena em Música pela Universidade de Passo Fundo (UPF) e Pós-Graduada em Musicoterapia pela Faculdade Censupeg.

“Os benefícios da utilização da música são diversos, como a capacidade de adquirir, armazenar e recuperar informações disponíveis, a comunicação, a motricidade, a habilidade da escuta e a interação em grupo. Além disso, ela ajuda na organização de pensamentos e dos sentimentos, estimula a tomada de decisão, a atenção e a orientação à realidade”.

Esse papel desempenhado no cérebro ajuda a compreender os mecanismos pelos quais a música pode influenciar a saúde mental, emocional e o bem-estar dos pacientes. Uma função que não está restrita às notas musicais, mas se estende à própria voz, considerada, também, uma importante ferramenta terapêutica, segundo a professora, cantora e especialista em cantoterapia Tatiéli Bueno. “A nossa voz está ligada, no nosso cérebro, diretamente às emoções. Então, é por isso que quando a gente está triste, a nossa voz geralmente vai se expressar que estamos tristes. Já quando estamos felizes, a nossa voz entrega essa felicidade”.

Tanto Luiza (à esquerda) quanto Tatiéli (à direita) acreditam que a música age sobre o cérebro, sentimentos e as emoções. (Fotos: Arquivo Pessoal/Luiza dos Santos Gomide e Tatiéli Bueno)

As doenças físicas e mentais têm origem, em alguns casos, até mesmo na retração das emoções. Com o passar do tempo, os sentimentos acumulados podem provocar uma série de problemas que, no futuro, evoluem para casos de depressão, ansiedade e estresse, por exemplo. Mas, essa barreira pode ser quebrada por meio da voz.

Da música à voz, a libertação de emoções

Memórias ligadas a traumas ou experiências sociais negativamente marcantes podem dificultar a expressão pessoal. Nesse caso, a cantoterapia se torna aliada na superação de bloqueios emocionais, pois, por meio de exercícios de voz específicos, como o de respiração, os alunos — assim chamados aqueles que procuram esse serviço — aprimoram suas habilidades vocais e viabilizam um processo de autoconhecimento.

Assim como a voz e a emoção são elementos trabalhados na cantoterapia, as preferências musicais também ocupam lugar especial. Isso porque, já que a especialidade busca a expressão pessoal, é necessário que o aluno esteja em sua zona de conforto. Por isso, a escolha de uma música com letra e melodia tem papel fundamental nos efeitos terapêuticos. Canções positivas são excelentes para despertar emoções como a alegria. No entanto, Tatiéli explica que, às vezes, não se busca despertar algo, mas sim colocar, para fora, o que está internalizado.

“O aluno escolhe a música a partir do sentimento de como ele está se sentindo naquele período ou do que ele gostaria de dizer para alguém, mas não está conseguindo. Quando a pessoa busca o canto como um processo terapêutico, ela busca a libertação de suas questões pessoais, a superação dos seus medos e enfrentar desafios”.

Sinônimo de confiança

Para que seja possível extravasar a voz ou promover o relaxamento do corpo e da mente durante o processo de recuperação do paciente, um dos componentes essenciais da musicoterapia é a relação de confiança entre o paciente e o profissional facilitador.

Esse vínculo é construído ainda na primeira sessão, quando o terapeuta preenche uma ficha de musicalização com informações que permitem com que ele conheça melhor o paciente e suas necessidades.

“Após esse primeiro contato, as sessões são planejadas de maneira individual, para cada paciente, com objetivos específicos e estimulando sempre as potencialidades de cada um. Nessas sessões, o paciente pode ser passivo, somente escutando o musicoterapeuta, ou ativo, participando e fazendo música juntamente com o musicoterapeuta”, demonstra Luiza.

De acordo com a musicoterapeuta, por meio do acompanhamento das sessões, pode-se identificar que os métodos aplicados surtem efeito, comparando o processo evolutivo do paciente em relação a como ele chegou. “Em cada fim de sessão, a gente escreve um pequeno relatório com os pontos positivos que foram e estão sendo melhorados, desenvolvidos e estimulados no paciente, e é possível a gente acompanhar as pequenas evoluções de cada sessão”.

E pra você, funciona?

Para saber se mais pessoas também se sentiam impactadas pela música, ou usam ela como refúgio, fizemos uma enquete. Com um total de 43 participantes, descobrimos que 93% deles acreditam no poder curativo da música e 100% pensa que diferentes tipos de música provocam efeitos diferentes em nossas mentes e emoções. Isso mostra que, popularmente, a música e o canto também são vistos como uma ótima válvula de escape para lidar com os sentimentos.

O infográfico apresenta os resultados da enquete realizada, que contou com a participação majoritária de jovens entre 15 e 25 anos. (Infográfico: Thalis Rota Laner)

Mas vale lembrar que a musicoterapia, enquanto tratamento, é feita com o apoio de profissionais — ou seja, fazer em casa não é considerado musicoterapia. Isso não quer dizer, porém, que a música que você escuta por conta própria, naqueles dias em que tudo parece ir de mal a pior, não faz efeito nas suas emoções. Então, fique tranquilo: pode escutar aquela música e cantar por aí quando a ansiedade ou outro problema apertar.

Agora, se você não sabe o que escutar, que tal começar por esta playlist especial criada com base nas sugestões dos participantes da enquete? Aponte a câmera do seu celular para o QR Code abaixo e dê o play aí!

Reportagem desenvolvida pelos acadêmicos Alessandra Hoppen, Fernanda Thaís de Lima, Raquel Cristina Tartas dos Santos e Thalis Rota Laner para a disciplina de Jornalismo Científico do curso de Jornalismo da Universidade de Passo Fundo (UPF) ministrada pelo Prof. Fábio Luis Rockenbach.

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