Um pedaço do mundo em Mato Castelhano

Isabel Gewehr
JORNALISMO CIENTÍFICO UPF
11 min readDec 9, 2023

Floresta Nacional de Passo Fundo abriga animais e plantas em risco de extinção, com mais de 200 espécies de aves e 160 de borboletas já identificadas

Floresta Nacional de Passo Fundo está aberta para atividades de pesquisa e de lazer. (Foto: Divulgação)

Olhos e ouvidos atentos. Um microfone estendido em frente ao corpo. Um bloco de anotações em mãos. “O que você está fazendo?”. Te ouvindo, pequeno pássaro!

Parar, observar e ouvir foi uma das estratégias adotadas pela pesquisadora Nêmora Pauletti Prestes para descobrir, afinal, quem vivia nos ares da Floresta Nacional de Passo Fundo (Flona PF). Um espaço que, quando olhado de cima, lembra um conjunto de guarda-chuvas verdes de araucárias que chama a atenção entre as lavouras de soja, milho e trigo que a contornam.

Localizada em Mato Castelhano, interior do Rio Grande do Sul, a menos de 24 km de Passo Fundo, a Unidade de Conservação do Instituto Chico Mendes da Conversação da Biodiversidade (ICMBio) abriga 213 das 704 espécies de aves registradas no Rio Grande do Sul. Um terço das aves do Estado localizadas em um território de 1.275 hectares: uma floresta considerada pequena quando comparada à Amazônia. Ocupada em parte pela Floresta Ombrófila Mista, popularmente chamada de Mata de Araucária, a Flona PF recebe a companhia de pinus e eucaliptos, além de uma rica fauna e flora, marcada pela resistência de espécies em risco de extinção tanto a nível estadual quanto nacional.

Avifauna em descoberta

O que sobrevoava a floresta, no entanto, era um cenário desconhecido até os anos 2000. Foi a escassez de informações relacionadas à ecologia de aves da Flona PF que deu início à pesquisa do doutorado da professora Nêmora em 1999, com o monitoramento da avifauna, que desde então não parou.

Durante o doutorado, a pesquisadora conseguiu categorizar 147 espécies de aves. Depois de 21 anos, os métodos aplicados somados a novos locais de exploração resultaram na identificação de 213 espécies.

Os resultados só foram possíveis a partir da aplicação de três métodos. O primeiro se baseou em caminhadas que implicam na observação dos animais e na escuta atenta para identificar seu canto.

“Você anda pelos ambientes, anota, escuta mais do que enxerga, então precisa ter os contatos auditivos muito elevados, ter o ouvido bem ‘educado’ para saber qual espécie é a partir disso”, conta Nêmora.

No site WikiAves um acervo de sons tem sido construído com o apoio de pesquisadores e visitantes que conseguem realizar registros sonoros. Com direitos reservados, o espaço tem reunido verdadeiras riquezas. Clique na imagem abaixo e confira esse conteúdo.

https://www.wikiaves.com.br/primeiros_registros.php?tm=s&t=ao&ao=1416

O segundo método adotado por Nêmora foi a captura e recaptura com redes. Com maior valor para a identificação das aves, já que a partir disso elas são marcadas, esse é, também, o método mais trabalhoso. Nesta captura, as aves são observadas, pesadas e medidas — padrões de bico, largura e altura da ave, tamanho das asas e da cauda –, onde são registrados elementos que vão desde a compreensão da plumagem até se a ave está em período de incubação ou não.

Após realizar todo esse procedimento, o animal ganha um “CPF”, sendo identificado a partir de uma anilha, nada mais que um pequeno anel colocado em torno do seu torso, com número e letras submetidos ao Centro Nacional de Pesquisa para Conservação das Aves Silvestres (CEMAVE ICMBio).

Nêmora Pauletti Prestes durante pesquisa de campo no método de observação e escuta. (Foto: Arquivo pessoal/Nêmora Pauletti Prestes)
Método de captura por redes desenvolvido durante as pesquisas na Flona PF. (Foto: Arquivo pessoal/Nêmora Pauletti Prestes)

O último método foi a amostragem por pontos, onde áreas do território são selecionadas e a observação daquele ponto-fixo é realizada, obtendo então a identificação das aves daquele perímetro.

Ao todo, desde o doutorado até os últimos anos de pesquisa na Flona, cerca de cinco mil aves foram identificadas e classificadas, o que forneceu informações valiosas a respeito de aves que eram migratórias de verão, de inverno e residentes da Flona. Hoje, a partir dos estudos realizados, já é possível indicar a melhor estação e horário para frequentar e produzir pesquisas com relação às aves, padrão que não existia antes — afinal, foram mais de 20 mil horas de trabalho dedicadas para desvendar o “mistério das aves da Flona”.

O Brasil tem mapeado 1.971 espécies de aves, dando à Flona, uma pequena floresta gaúcha, cerca de 10% dessa diversidade.

Na WikiAves, além do canto, é possível encontrar parte de toda essa diversidade, com os registros fotográficos mais recentes. Clique na imagem abaixo e confira esse conteúdo.

https://www.wikiaves.com.br/midias.php?&tm=f&t=ao&ao=1416

Uma floresta plantada

Uma floresta, no entanto, não é só feita de pássaros. Indo das aves até borboletas, mamíferos, anfíbios, répteis e os mais diferentes tipos de vegetação, a Floresta Nacional de Passo Fundo abriga espécies ameaçadas de extinção, como o xaxim e a araucária, apelidada de espécie “guarda-chuva” da unidade porque preenche todo o céu superior da floresta.

A Flona é responsável por criar um microclima junto a Barragem do Capingui, localizada ao lado do território da floresta, como um “pulmão verde” entre áreas utilizadas para monocultura. Um “banco” genético de biodiversidade, a unidade acaba desempenhando papéis de regeneração, manutenção e desenvolvimento da vegetação de diferentes ecossistemas naturais.

Olhada de cima, a Flona é um respiro verde de 1,2 mil ha. (Foto: Arquivo/ Nêmora Pauletti Preste)

Para o analista ambiental do ICMBio e chefe da Flona, Adão Güllich, é nesse contexto que reside a importância da unidade: a preservação de espécies ameaçadas, tanto da fauna quanto da flora. “A araucária é um exemplo disso, uma espécie ameaçada de extinção e ameaçada hoje da cobertura original do sul do país, até do sudeste. Estamos protegendo ela aqui. Está aí a importância ecológica de ter essas áreas preservadas em nossa região”.

Atualmente, a Flona possui mais de 220 araucárias por hectare. É como imaginar um campo de futebol lotado de araucárias ao invés de pessoas, isso incluindo desde arquibancadas até o campo. Quando observado o uso do solo, cerca de 68% é ocupado, indiretamente, pela Araucaria angustifolia — desse percentual, 27% é de Floresta Ombrófila Mista, 34% do plantio feito por humanos da araucária e cerca de 7% em áreas de capoeirão com plantio de araucária.

Esse número, no entanto, não é o mais indicado pela ciência — o cenário ideal é que Florestas Ombrófilas Mistas tenham de 80 a 100 araucárias por hectare. Com muitas árvores concentradas em um mesmo espaço, uma “competição” por luz acontece. Nesse embate, algumas araucárias deixam de produzir pinhão, o principal produto não-madeireiro fornecido por elas, e podem vir a morrer. “Temos observado uma mortandade de árvores muito grande. Aí que vem a importância de fazermos um manejo, com a retirada de algumas para recuperação e para que assim seja possível, na medida do possível, a recuperação da mata nativa também”.

Em 2012, com o intuito de compreender o uso da unidade e os próximos passos a serem executados nela, um Plano de Manejo da Flona Passo Fundo foi desenvolvido pelo ICMBio. Adão explica que o plano focou não só no uso madeireiro, mas de um uso múltiplo da floresta, com uma nova missão: restaurar, especialmente, as áreas que tinham plantios exóticos e transformá-los em áreas cultivadas com espécies nativas. A planta exótica em questão é o pinus, que desde 2017 tem sido substituída por araucárias e outras espécies nativas.

Um uso múltiplo da floresta, com uma nova missão: restaurar, especialmente, as áreas que tinham plantios exóticos e transformá-los em áreas cultivadas com espécies nativas.

Esse novo foco veio, principalmente, do distanciamento do objetivo da Flona quando criada. A área de terra onde se localiza a floresta foi inicialmente comprada pelo Instituto Nacional do Pinho para criar o Parque Florestal José Segadas Viana, em 1947, ainda no distrito de Mato Castelhano, município de Passo Fundo — é daí que vem o nome Floresta Nacional de Passo Fundo.

De maneira peculiar, a área não possuía um remanescente de floresta que se pretendia proteger e conservar. O nascimento da unidade partiu do princípio de uma área com terras agricultáveis, com uma pequena área de Floresta Ombrófila Mista nativa, que seria utilizada para implantação de uma estação experimental de plantio de árvores nativas. O que torna, predominantemente, a Flona uma floresta plantada.

Na época, a região tinha a exportação de araucária como um de seus pilares econômicos, o que tornou a área forte para a produção e exploração madeireira. Apenas na década de 60 o pinus foi introduzido na floresta, espécie exótica da América do Norte e que se adaptou muito bem no território. Foi nesse mesmo período que o Parque José Segadas Viana se transformou em Floresta Nacional de Passo Fundo e passou a pertencer ao Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), transferido para o Ibama e por fim para o ICMBio, em 2007.

No domínio do ICMBio, agora a Flona é uma unidade de conversação federal, sendo uma das 728 existentes no Brasil, com foco na proteção dos recursos naturais e no desenvolvimento de pesquisas científicas, lazer, turismo e educação ambiental.

O que você encontra

No Plano de Manejo da Floresta, um mapeamento completo da fauna e da flora foi realizado, buscando identificar todas as espécies vegetais e de animais que residiam no espaço. Completando 11 anos em 2023, o plano ainda é o documento mais atualizado do espaço.

Dos mais simples aos mais complexos, 99 espécies arbóreas e arbustivas, nativas e exóticas, pertencentes a 43 famílias foram identificadas, predominando as espécies Myrtaceae, Lauraceae, Fabaceae e Solanaceae — família de plantas de grande porte e que tem como característica a geração de flores.

Fabaceae e Lauraceae. (Foto: Divulgação/Wikipedia)
Myrtaceae e Solanaceae. (Fotos: Divulgação/Wikipedia)

Além da Araucária, a Flona abriga a imbuia, o xaxim e o butiazeiro-da-serra entre as espécies que integram a Lista Oficial das Espécies da Flora Brasileira Ameaçada de Extinção. Além das espécies ameaçadas conforme a Lista Final das Espécies da Flora Ameaçadas do Rio Grande do Sul, sendo elas a cabreúva, a canjiqueira, a orelha-de-onça e a casca-d’anta.

Butiazeiro-da-serra, cabreúva e canjiqueira. (Fotos: Divulgação)
Imbuia. (Foto: Divulgação)
Orelha de onça, casca-d’anta e xaxim. (Fotos: Divulgação/Wikipedia)

Ainda, a Flona abriga algumas espécies exóticas, que apesar de parecerem comuns, tem seu charme, como a nêspera, a uva-do-Japão e a bergamoteira. Mas muito do que é encontrado no dia-a-dia se esconde também na floresta, como a erva-mate, a pitangueira, a canela e o camboatá-vermelho, muitas com potenciais comestíveis, medicinais e ornamentais.

Nêspera, uva-do-Japão e bergamodeira. (Fotos: Divulgação)

Mas não são só plantas que vivem aqui, os animais se espalham por todo território. Desde esquilos, ratos, preás, morcegos, graxains, gatos-do-mato, lontras, quatis até gambás, tatus, cutia, ouriços, o tamanduá-mirim e o veado-bororó — que estão ameaçado de extinção no Rio Grande do Sul. Ao todo, são mais de 91 espécies de mamíferos nativos e 18 espécies de mamíferos silvestres.

Cutia, Irara e Jaguatirica. (Fotos: Divulgação/Wikipedia)
Tamandua-mirim, veado-bororó e veado-virá. (Fotos: Divulgação/Wikipedia)

Além das aves, quem ocupa o céu são também as borboletas, com 169 espécies mapeadas a partir da pesquisa da bióloga Caroline da Silva Ribeiro, que estudou as borboletas frugívoras e nectarívoras da Flona. O grupo das frugívoras tem como principal característica a alimentação de frutos fermentados, animais em decomposição, fezes e seiva de plantas, enquanto as nectarívoras se alimentam do néctar.

Mais de 6 mil borboletas passaram pelo filtro da pesquisadora, e apesar de espécies comuns terem sido registradas, algumas mais raras, como por exemplo a Arcas ducalis, foram encontradas — algo que só acontece em ambientes preservados.

Arcas ducalis. (Foto: lmir Cândido de Almeida) | Biblis Hyperia (Borboleta-aro-vermelho) e Cybdelis Phaesyla. (Fotos: Divulgação)
Myscelia Orsis, Smyrna Blomfildia e Zaretis Strigosus (Borboleta-folha). (Fotos: Divulgação)

Já os anfíbios da Flona se desmembram em mais de 14 espécies, enquanto os répteis em mais de 24 espécies. Os anfíbios são utilizados como indicadores de qualidade da água, principalmente os girinos, que com sua sensibilidade conseguem detectar a presença de pesticidas e metais pesados, se afastando — se eles estão nas águas da Flona, significa que ela é boa.

Teiú e sapo de chifre. (Fotos: Divulgação / Lucas Nenes)

Em um espaço aberto a comunidade para atividades de pesquisa e lazer, com foco na preservação, a riqueza de indivíduos é quase que uma consequência da consequência.

“A riqueza do ambiente proporciona a diversidade na riqueza das aves, mamíferos, borboletas, tudo é proporcional. Quanto mais rico o ambiente, mais rica a diversidade.” — Nêmora Pauletti Prestes.

Flona PF é preenchida pela espécie Araucaria angustifolia. (Foto: JOÃO MAURÍCIO / Agencia RBS)

Reportagem desenvolvida pelos acadêmicos Isabel Gewehr, Augusto Carrão, Amanda Andrade e Ellen Silveira para a disciplina de Jornalismo Científico do curso de Jornalismo da Universidade de Passo Fundo (UPF) ministrada pelo Prof. Fábio Luis Rockenbach.

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Isabel Gewehr
JORNALISMO CIENTÍFICO UPF

Estudante de Jornalismo na Universidade de Passo Fundo. Apaixonada por palavras e o poder delas quando unidas.