Realidade invisível

AlineLuisa
Jornalismo de Dados — UniRitter
5 min readMay 26, 2017

Principal dificuldade dos imigrantes é de não ser apenas uma estatística

Por Aline Luísa Bisol

As incertezas da imigração para o Brasil, em especial, à capital gaúcha, não se limitam apenas às condições e o futuro que aguardam os recém-chegados: a falta de monitoramento de dados sobre imigração impede que políticas públicas sejam adotadas para assegurar direitos humanos. Mesmo passados 13 anos anos desde 2004, quando o Brasil voltou a ser destino migratório após a chegada dos europeus no século XIX, as iniciativas do governo para imigração são morosas ou inexistentes e o acesso à informação não garante uma visualização precisa do cenário atual. A fonte mais utilizada sobre a situação de estrangeiros, reconhecida pelo Ministério da Justiça e pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre é a organização não governamental CIBAI — Centro Ítalo-Brasileira de Assistência e Instrução à Migrações, ligada à Igreja Católica.

Segundo dados de 2015, moravam em Porto Alegre 33.250 imigrantes dos 90.352 espalhados pelo estado do Rio Grande do Sul. Em dois anos, a estimativa do CIBAI é de que esse número tenha aumentado quase 10%, chegando a 35 mil. Aqui [no CIBAI] atendemos, por dia, cerca de 75 imigrantes com as mais diferentes demandas. A procura mais comum é por informações sobre documentação e tradutores”, garante Jurandir Zamberlam, voluntário na ONG há 15 anos.

Tabela Criada pelo pesquisador Jurandir Zamberlam, que monitora a dinâmica de imigração no país

Acolhimento voluntário

O professor aposentado e sociólogo Jurandir Zamberlam atua também como pesquisador, e já publicou dezenas de livros, artigos e teses que mapeiam as características do fluxo migratório. O principal apontamento dos estudos recorre na importância das políticas públicas para estrangeiros. Além da falta de ações, Zamberlam descreve em seus trabalhos as diretrizes que teriam impacto positivo na vida dos imigrantes e benefícios para a sociedade em que se inserem. Os cabelos brancos denunciam a credibilidade de quem transforma todas essas informaçõe e experiências em dados usados inclusive pelo poder público. “Eles atuam diretamente com os imigrantes, sabem das suas necessidades imediatas, das condições com que chegam no país. Nosso papel é de observar e, a partir daí, propor ações e elaborar políticas públicas que atendam essa população”, afirma Guilherme Fuhr, coordenador do CMPIDE — Coordenadoria Municipal Povos Indígenas e dos Direitos Específicos, que também faz parte do Comitê Municipal de Atenção aos Imigrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de Pessoas — Comirat, criado em 2015 e ligado à Secretaria de Direitos Humanos de Porto Alegre.

A promessa do grupo de trabalho era de encontros mensais com diversas entidades, órgãos e imigrantes, para entender suas necessidades e coletar informações para criar um banco de dados. Mas até hoje não há qualquer tipo de levantamento. Os encontros ocorrem, porém não viabilizaram ações permanentes para o atendimento à população de estrangeiros. Os dados fornecidos pela Delegacia de Imigração da Polícia Federal Porto Alegre abordam o quadro geral de entradas no país, o que inviabiliza a mensuração exata de quantos e em que situação vivem em Porto Alegre, já que muitos imigrantes e refugiados entram no Brasil por outras cidades como Curitiba e São Paulo, e seu acesso ao país fica registrado nestas cidades. Segundo dados da Delegacia de Imigração, o último levantamento, de 2016, ingressaram no país 126.258 estrangeiros. “Eles chegam em todas as partes e aos poucos se organizam. Os latinos são acolhidos mais facilmente pelos brasileiros por terem aparência semelhante à nossa. Já os haitianos, ganeses e senegaleses, esses novos rostos precisam se articular em grupos e acabam indo para outras cidades de acordo com o que as lideranças os orientam”, explica Jurandir Zamberlan, contando sobre a rede de amparo formada pelos antecessores destes “novos rostos”.

Dados da Delegacia de Imigração da Polícia Federal

Lideranças estrangeiras garantem subsistência

O presidente da Associação dos senegaleses de Porto Alegre, Serigne Mame Mor Mbacke, além de garantir que todos os imigrantes tenham as condições mínimas para viver no Brasil, também atua no Comitê da Prefeitura de Porto Alegre. “Nós cobramos diariamente para que a prefeitura cumpra seu papel para garantir a qualidade de vida do nosso povo”, afirma Mor. Segundo matéria do Jornal Zero Hora, de outubro de 2016, a assinatura e verba para a construção do centro de referência ao imigrante já foi repassada pelo governo federal, porém, até hoje, não saiu do papel. A parceria entre governo autorizou o repasse de R$ 739 mil do governo federal, com contrapartida de R$ 9,5 mil do Executivo municipal “Em 13 de janeiro, em uma solenidade presidida por Fortunati, foi divulgada uma parceria entre os governos estadual e federal para a criação do Centro de Referência e Acolhida aos Imigrantes e Refugiados em Porto Alegre (Crai). […] Lá, eles poderiam encontrar abrigo em situações emergenciais, cursos gratuitos de língua portuguesa, capacitação profissional, oficinas de saúde e de cidadania e um ponto de encontro e de socialização.”, destaca a matéria. Mor garante que as lideranças dos imigrantes de cada país se esforçam para que nenhum recém chegado tenha de morar na rua ou passar fome, já que, por parte das autoridades, não há esse acolhimento. “Em estados como São Paulo, por exemplo, este centro de referência já existe. Nenhum estrangeiro que chega lá fica desassistido. Aqui é a gente que precisa garantir os nossos direitos.”, critica Mor.

Crença no futuro

“Muitos seguem religião islâmica, evangélica, pentecostal. Minoria é católica”. O trecho é uma das observações de Zamberlam. Apesar das diferenças religiosas, a relação com o acolhimento da igreja católica é amigável. Na ONG, são recolhidos 1600 kg de alimentos todos o mês e repassado aos mais necessitados. “Nem todos conseguem emprego logo que chegam e outro foram demitidos em função da crise que também afeta brasileiros. Em alguns casos eles precisam se sujeitar a viver numa casa com outras 10, 15 pessoas às vezes”, relata Jurandir.

O voluntário faz outro levantamento, também com dados de 2015: a presença de imigrantes por diocese. A de Caxias do Sul tem o maior número de atendimentos, com 5.573 mil pessoas, o que representa 39,1% do trabalho. Já a segunda, de Passo Fundo, recebe 2.520 mil. Pela diocese de Porto Alegre, 4º colocada, passaram 1.640 mil, ou seja, 11,5% dos atendimentos. A nova lei de imigração, proposta por Aloysio Nunes Ferreira, à época deputado e hoje Ministro da Relações Exteriores, aprovada em abril de 2017, prevê mudanças positivas ao acolhimento de imigrantes, mas ainda aguarda sanção do Presidente Michel Temer. Entre as mudanças, está a revogação do Estatuto do Estrangeiro, criado durante a Ditadura MIlitar. A lei passa a garantir que imigrantes que chegam ao Brasil os mesmos direitos dos cidadãos brasileiros, regula a entrada e estada no Brasil e estabelece princípios e diretrizes sobre as políticas públicas direcionadas a esses grupos. Mesmo com o repúdio de alguns setores da sociedade que fizeram manifestações contra a nova lei, em São Paulo, a garantia da mudança estabelece justamente o repúdio à xenofobia, ao racismo e à qualquer forma de discriminação.

A expectativa é de que o Presidente sancione a lei com poucos vetos, direcionados apenas à revogação de expulsões de estrangeiros, em 1988, com receio de que estes busquem indenizações. Por enquanto, a acolhida dos voluntários não mede esforços e divide-se entre o trabalho com a assistência e a coleta de informações que sejam suficientes para mudar essa realidade que, ironicamente, sem dados, oficialmente nem existe.

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