A alteridade como chave para os encontros com a diversidade

É preciso conhecimento e autocrítica para que os jornalistas ampliem o diálogo com outras vozes

O jornalismo no Brasil em 2017
5 min readDec 6, 2016

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Para tentar compreender os desafios do jornalismo em relação à diversidade (seja nas questões de gênero, raça, sexualidade, etc.), tanto em seus discursos quanto nas redações, é preciso compreender o contexto social em que o mesmo está inserido. Lançar um breve olhar sobre o passado e o presente para buscar pistas sobre o futuro. Pensar sobre esses desafios do jornalismo no Brasil nos remete a não perder de vista que se trata de um país com altos índices de desigualdades sociais, cujas origens estão fundadas nas ideologias do machismo, do racismo, do classismo, da lgbtfobia, que forjaram os contornos do estado-nação brasileiro e que, até hoje, mesmo com avanços, ainda se expressam em dados alarmantes: a cada 90 minutos acontece um feminicídio; a cada 27 horas uma pessoa LGBT é morta; os jovens negros têm 2,5 vezes mais chances de serem assassinados do que os jovens brancos.

As diferenças são transformadas em desigualdades na cultura, por meio de um sistema de valores dominantes que circula como forma de conhecimento no senso comum. Essas formas de conhecer, cujas bases estão nas já referidas ideologias estruturantes da sociedade brasileira, são as mesmas que nos constituem tanto como sujeitos-cidadãos, quanto como sujeitos-profissionais, intervindo também nas relações de poder e nos modos como a realidade pode ser observada e descrita. O jornalismo e os jornalistas não são ilhas apartadas da sociedade e são permeados por essas visões de mundo dominantes. Deste modo, pode-se compreender por que suas estruturas e hierarquias obedecem a uma ordem semelhante àquela de distribuição do poder e do prestígio social, bem como perceber por que a falta de heterogeneidade nas redações acaba por resultar em narrativas mais afeitas a reproduzir estereótipos e preconceitos do que a promover uma melhor complexificação e compreensão dos fenômenos sociais.

De um modo geral, a formação dos jornalistas, seja na universidade, seja nas empresas, não tem sido capaz de promover uma percepção das práticas etnocêntricas que dificultam os encontros de alteridades entre o nós, jornalistas, e os outros (especialmente aqueles menos valorados nas hierarquias sociais). O reconhecimento da ação etnocêntrica parece ser tanto um desafio quanto uma potencialidade para a reversão dessas dificuldades a fim de entender e narrar a diversidade nos discursos noticiosos. Precisamos falar sobre gênero, sobre raça, mas principalmente precisamos compreender como nossa sociedade se estrutura historicamente nas ideologias do machismo, do racismo.

Precisamos sobretudo nos compreender como sujeitos e profissionais inseridos nesses valores que são dominantes e que permeiam nossas visões de mundo. Precisamos pensar que, em nossas práticas profissionais, o encontro com o outro será também perpassado por esses valores e, deste modo, ainda que inconscientemente, pode estar tornando diferentes em desiguais. Somente a partir desta tomada de consciência é possível reverter essas lógicas. Ou seja, somente a partir do reconhecimento de nossa condição etnocêntrica podemos começar a exercitar a alteridade no encontro com o outro.

O etnocentrismo se impõe como um permanente desafio ao jornalismo, especialmente para que ele possa cumprir suas responsabilidades sociais. Um caminho para uma ação mais afeita à alteridade pode estar no investimento na ampliação das condições de diálogo e de conhecimentos dos profissionais. O resgate da capacidade de ação transformadora dos jornalistas, bem como das condições de reflexão permanente sobre a prática, cria espaço para o exercício da ação ética. A busca por novas fontes de saber, a escuta genuína das diferentes vozes e verdades e a tentativa de compreensão do outro a partir de seus valores (e não dos “nossos”) têm sido caminhos demonstradamente possíveis de serem trilhados no exercício de boas práticas jornalísticas — aquelas que não transformam os diferentes em desiguais. Entre as boas práticas pode-se observar tanto a ação de jornalistas do chamado meio tradicional e hegemônico, como Eliane Brum, atualmente no jornal El País, quanto no jornalismo independente, como Natália Viana, da Agência Pública, apenas para citar dois exemplos.

Resgatar a subjetividade nos processos de objetificação do real, trazendo o sujeito jornalista para o cerne da reflexividade sobre as práticas, parece ser um movimento interessante para uma melhor relação com a diversidade, com as alteridades e com o cumprimento de uma deontologia e de uma ética profissional. O pensamento crítico e autocrítico é potencial para a transformação das relações de poder, seja na sociedade, seja no mercado jornalístico. Como tal, deveria ser fomentado, em detrimento do ideário da objetividade positivista, que vem dificultando a reflexividade sobre impactos simbólicos das práticas, assim como a emergência de uma sociedade plural.

Se até então os valores do mercado e as empresas têm norteado o pensamento e a ação do jornalismo, o resgate do sujeito-profissional em suas potencialidades pode ser uma chave de resistência e transformação. Pois já não é mais possível enxergar a realidade complexa do século 21 com as lentes binárias do século 19. Quem sabe 2017 seja um bom ano para se começar a investir no jornalista como importante agente para as transformações sociais, a começar pelo exercício e fomento da alteridade?

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2017. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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O jornalismo no Brasil em 2017

Jornalista, doutora em Comunicação e Informação. Pesquisadora nas áreas do jornalismo, gênero e interseccionalidades, produção do conhecimento.