Literatura, games e teatro: o jornalismo cada vez mais próximo da arte

A aposta é em recursos que exploram sentidos como percepção e sensibilidade

5 min readDec 6, 2016

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Estética é palavra que compete ao campo da arte: sua menção nos sugere um desapego de si, um afastamento de questões não necessariamente ligadas ao imediato. Estética é também palavra que compete cada vez mais ao jornalismo: sua presença se impõe em linguagens, experimentais ou não, que procuram a adesão de um público de atenção nômade e extremamente fragmentado.

É importante abrir mão da dicotomia arte/jornalismo para fazer essa reflexão. Em um primeiro momento, pensando em práticas frescas no mercado informativo — inauguradas recentemente, como o namoro jornalismo/videogames, o teatro-show-reportagem e a realidade virtual jornalística –, pode-se inferir que a questão estética é uma novidade dentro do campo noticioso. Não é. A literatura, velha aliada, volta a aparecer com força nos sites dedicados à reportagem. Nos Estados Unidos, um exemplo é o já sedimentado Narratively, criado em 2012, em que “pessoas normais com histórias extraordinárias” são o foco das reportagens baseadas no conceito de storytelling (resumidamente, a narração de fatos como se fossem histórias). Apesar do termo novidadeiro, o Narratively faz o básico do jornalismo: fazer surgir em um bom texto dados interessantes da realidade, principalmente a realidade aparentemente besta.

Um caminho potencial a ser adotado é o casamento entre jornalismo e games. O Brasil é o quarto maior mercado do mundo de jogadores de videogames, com cerca de 35 milhões de usuários (faturamento de US$ 1 bilhão por ano). O vasto interesse por plataformas digitais em lugar de meios impressos também é realidade nos Estados Unidos, onde os jogos interativos já representam o quarto meio de comunicação mais importante para toda uma geração de jovens americanos entre 18 e 34 anos, superando os meios impressos. Os dados estão presentes no artigo NewsGames — Games como emuladores de notícia, uma proposta de modelo de Jornalismo Online, de Geraldo Seabra e Jornalismo e videogames: Desafios para a formação profissional e a produção de novos conteúdos jornalísticos, de Antonio Brasil.

A linguagem dos games está sendo trabalhada por um dos ícones do jornalismo mundial, o New York Times, que lançou, durante a campanha presidencial, o jogo The Voter Suppression Trail, primeira experiência nessa linha do projeto Op-Docs (voltado até então apenas para a produção de documentários). O The Voter… traz três opções de personagens para a jogadora ou jogador escolher: um vendedor negro do Wisconsin, um programador branco da Califórnia e uma enfermeira latina do Texas. Todo o ambiente remete aos games da Nintendo dos anos 1990, com personagens e cenários pixelados, formas arredondadas e cores fortes.

A experiência estética relacionada à virtualidade também está no projeto 6X9 do jornal The Guardian, certamente um dos periódicos que melhor vem unindo esteticidade noticiosa, sensorialidade e conteúdo informativo. No projeto pioneiro, o jornal usa a realidade artificial como maneira de “adentrar”, por meio da simulação, as solitárias das penitenciárias inglesas, criando assim uma cela virtual. Presidiários e psicólogos foram entrevistados para a criação do projeto — ou seja, houve investigação, ferramenta do jornalismo.

Atuando também fortemente nas redes sociais, a norte-americana Pop-Up Magazine sai da caixa da virtualidade para também beber na estética do teatro e do show e apresentar suas reportagens. Os textos são mostrados em teatros e mobilizam um leque heterogêneo de profissionais: além de jornalistas/escritores, a Pop-Up arregimenta músicos (com trilhas ao vivo), fotógrafos, realizadores e produtores em suas incursões, que já foram apresentadas em cidades como Los Angeles, São Francisco e Nova York.

A arte, lugar-mor da experiência estética, também vem utilizando ferramentas jornalísticas, curiosamente enquanto os jornalistas ainda não exploram a contento os espaços convencionais da arte (Alfredo Cramerotti discute essa relação no livro Aesthetic Journalism). No Brasil, dois nomes importantes no circuito da arte contemporânea, Bárbara Wagner e Jonathas de Andrade, ambos formados em jornalismo, trabalham com intensa observação participante (recurso etnográfico) e temas sociais. Os elogiados trabalhos de ambos na Bienal de São Paulo de 2016 são mostras disso.

Bárbara é autora do projeto Mestres de Cerimônias. Nas imagens, ela documenta o cotidiano de jovens ligados aos movimentos brega/funk ostentação. Jonathas, em O Peixe, uma das obras mais elogiadas desta edição, retrata pescadores do litoral alagoano. Em vídeo, o público é apresentado a uma maneira muito peculiar de pesca, na qual o peixe é abraçado pelo seu algoz até parar de respirar.

Outra atual união da arte com o jornalismo aconteceu até o dia 20 de novembro no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, na exposição A lama — de Mariana ao mar, parceria entre a revista Piauí e os fotógrafos Cristiano e Pedro Mascaro. A dupla, a convite da revista, percorreu todo o Rio Doce (Minas Gerais) até a desembocadura no mar do Espírito Santo.

​O que se observa é que as saídas para driblar a instabilidade do modelo de negócio e das relações com a audiência repousam em suportes e mecanismos vários, todos eles explorando, como escreveu Bruno Souza Leal ​no livro Jornalismo Contemporâneo, a informação também na dimensão dos sentidos: percepção, afecção, sensibilidade e significação. ​O jornalismo de agora e de amanhã precisa se apropriar desse campo expandido.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2017. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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Fabiana Moraes
O jornalismo no Brasil em 2017

jornalista, escritora e professora do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE. autora dos livros O Nascimento de Joicy,Nabuco em Pretos e Brancos e Os Sertões