O que o jornalismo brasileiro pode aprender com os EUA

Em 2017, a sociedade descobrirá o que é o jornalismo, para que ele serve, e como saber se está “funcionando”

6 min readDec 6, 2016

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Logo após a eleição de Donald Trump, a mídia dos Estados Unidos começou um processo de autoanálise que parece longe de terminar. Após errar grosseiramente o prognóstico e a mão na cobertura de ambos os candidatos, veio a busca por culpados. Dependendo da análise que se lê, erro foi ficar em uma bolha, confiar demais nos dados, não ter diversidade nas redações, dar espaço demais a um candidato, dar espaço de menos aos seus eleitores, ou não chegar aos leitores. A culpa, claro, pode não ser da imprensa, mas do Facebook, Google e sites de notícias falsas. Seja como for, há um consenso de que veículos tradicionais falharam em prever — ou mesmo entender — a ascensão de Donald Trump à presidência.

Em paralelo a esse momento de aparente autodescrença na mídia, um fenômeno curioso aconteceu: vários veículos dos Estados Unidos ganharam um impulso nas vendas em novembro. A The Atlantic aumentou as assinaturas em 160%; no Wall Street Journal, em 300%. New Yorker, Washington Post e Guardian também viram números animadores semelhantes. O New York Times, um dos jornais mais criticados, por todos os lados, ganhou incríveis 41 mil assinantes em uma semana pós-Trump.

Esse movimento me fez ter mais fé no futuro do jornalismo. Não apenas pela urgente questão financeira. Mas também porque o impulso financeiro pós-Trump foi mais forte no setor de jornalismo sem fins lucrativos, de empresas como ProPublica, Mother Jones e Center for Public Integrity. No Marshall Project, outra empresa do tipo, e onde trabalho atualmente, houve um recorde de doações e mensagens encorajadoras dizendo que nosso trabalho — cobrimos especificamente justiça criminal — seria mais importante do que nunca nos anos que virão.

O boost financeiro na tal “mídia” precisa ser compreendido dentro de um movimento maior, de fortalecimento de entidades de defesa dos direitos civis de minorias ou que garantam saúde e direitos reprodutivos das mulheres. Várias dessas ONGs receberam doações expressivas após as eleições. O que é uma novidade agora e pode ser uma tendência para 2017 é a percepção, ao menos de parte do público, de que New York Times e ProPublica cumprem um papel semelhante e complementar às ONGs da sociedade civil, de defesa da democracia.

Tweets com a hashtag #payforjournalism começaram a pipocar na reta final das eleições americanas

Corta para o Brasil.

Há décadas, as peças de publicidade que vendem assinatura de jornais e revistas oferecem, com alguma variação, “informação de qualidade”. A ideia que se vende é que um veículo é bom por ter mais e melhor “conteúdo” que o outro, ou oferecê-lo antes da concorrência. A tal “informação” que um jornal, revista ou site fornece sempre é vista pelo marqueteiro como “indispensável” — o tal “não dá pra não ler”.

Isso é uma fantasia.

Creio que em 2017 e em diante, uma coisa deve ficar mais clara para as empresas de comunicação: no mundo de hoje, onde um “furo” é exclusivo por no máximo meia hora, e onde a informação é copiada e compartilhada por todo lugar, não é o acesso à informação, ou mesmo o seu empacotamento, que “venderá” o jornalismo. Minha previsão — ou, talvez, desejo — é que o jornalismo se venda mais pelo seu impacto do que pelo produto em si. Vender a “praticidade de não esbarrar num paywall” pode ter um sucesso melhor que o esperado, mas é uma tática que não ganhará mais leitores sozinha, nem será suficiente para estancar a sangria da publicidade, que paga cada vez menos.

A movimentação espontânea de parte importante do público americano pós-eleições deu um indicativo do caminho a seguir. Parece romântico pensar que o jornalismo está a serviço de um país, não apenas do seu leitor. Mas talvez esse pensamento seja também mais realista e financeiramente correto. O jornalismo, nos seus melhores momentos, é um bem público, e, como resolução de ano novo, os jornalistas poderiam aprender a vender melhor esse peixe. Há saídas plausíveis, sem apelar para o romantismo ou sentimento de culpa do leitor que não quer pagar.

Foi isso o que concluiu James T. Hamilton, economista da universidade de Stanford, no fantástico livro chamado Democracy’s Detectives. Hamilton estudou investigações custosas e impactantes, dessas que ganham o Pulitzer — e calculou o impacto financeiro dessas reportagens, em termos de políticas públicas que diminuíram os custos para o contribuinte ou que salvaram vidas. A sua conclusão é que cada US$ 1 investido no jornalismo pode trazer mais de US$ 100 de benefício para a sociedade. Muitas vezes, os mais beneficiados nem sonhavam em pagar a assinatura.

Outro exemplo é o Education Lab, uma editoria concentrada em “soluções em educação” incubada no Seattle Times, com custo bancado por fundações e anunciantes externos. Com um time reforçado e mais tempo para fazer jornalismo, conseguiu provocar uma mudança importante em política educacional do município (detalhes aqui). O jornal se manteve imparcial, apenas apresentando o problema e possíveis soluções, fortalecendo o debate, elevando as vozes. Um estudo de uma das fundações financiadoras calculou que investir no jornalismo do Seattle Times foi significativamente mais “barato”, rápido e sustentável do que investir em lobby para resolver o mesmo problema, e a solução foi construída de baixo pra cima.

É claro que todo jornalista sabe que seu trabalho é um bem público, ainda que intangível e dificilmente mensurável. Mas quando deixamos isso mais claro para o público, por meio de impactos na sua vida, tudo na redação — da alocação de recursos às peças publicitárias e modelos de negócios — pode mudar. E a avalanche de novos apoiadores após um processo eleitoral traumático mostra que uma parte importante do público está sintonizada com a ideia de que o jornalismo de qualidade é patrimônio da democracia. Em 2017, acharemos uma definição mais precisa de jornalismo, novas formas de medir o seu sucesso.

Por isso, acho que, por exemplo, O Globo merece a minha assinatura não apenas pelo “conteúdo de qualidade para eu ficar sempre bem informado”. Mas porque uma reportagem de junho literalmente salvou uma vida menos de um mês depois de sua publicação. Todos sabemos que page views e likes são uma medida imperfeita, mas o que deve ocupar o seu lugar? Humildemente, acho que dizer que O Globo ajudou Ana Júlia Alves Aleixo, de oito anos, a ganhar um novo coração, parece bastante convincente. Se, como jornalistas, começarmos a pensar em pautas não pelas manchetes e prestígio interno, mas pelos seus possíveis efeitos e demandas atendidas pela sociedade, mudaremos o conceito de sucesso no jornalismo. E o público deve seguir. Porque, aí, pagar por jornalismo fica parecendo até uma maneira barata de melhorar a sociedade.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2017. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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