A música eletrônica em Aracaju: ontem e hoje

André Alcântara
Jornalismo Digital
Published in
7 min readMar 28, 2020
GIF: André Alcântara e Inácio Prado

“E se não fosse pela música, eu não saberia o que fazer” é uma das linhas que compõem um dos versos do clássico “Last Night a DJ Saved My Life”, hit do grupo Indeep nos últimos anos da era de ouro da disco music e que ecoa o espírito da música eletrônica. Desde suas origens alemãs à sua aparente infinidade de subgêneros, a “e-music” sempre foi um ambiente de celebração das diferenças: do techno de Detroit ao house de Chicago, vemos que a história da música eletrônica não se finda em si enquanto um estilo musical, mas perpassa várias séries de fatores socioculturais.

Em Aracaju, nos últimos anos, uma crescente onda de festas eletrônicas nos seus mais diversos estilos, propostas e espaços vêm tomando conta da cidade. Seguindo a corrente nacional da última década que evidencia a realização de eventos de música eletrônica que não abrem mão do seu caráter político, grupos como a Fugácida, o Slam Mulungu e o Fim de Linha vêm contribuindo para o surgimento de uma fervorosa cena eletrônica na capital sergipana levantando as bandeiras da produção independente e da disputa de espaços.

Contudo, é importante lembrar que apesar do esfriamento da cena aracajuana de música eletrônica, ela já existia bem antes disso. Da década de 80 ao início dos anos 2000, Aracaju já vivia uma experiência considerável onde DJs embalavam as noites ao som do techno, house, drum & bass e os mais diversos sons eletrônicos.

“E-music” em Aracaju

Festa realizada em 2004 no Tequila Café, em Aracaju — Foto: Arquivo pessoal de Júnior Versianni

“Tudo começou com o interesse e curiosidade nas versões remix que se tornaram hits de rádio a partir de 1985, com o surgimento das primeiras remixes nacionais”, relata o DJ Antônio Júnior “Versianni”. Autodidata, ele conta que aprendeu a mixar sozinho, com a ajuda dos equipamentos de um amigo que possuía uma loja de discos de vinil. Numa época onde os DJs na cidade ainda eram raros, a maioria deles tem um background de aprendizado próprio similar do de Antônio, às vezes contando apenas com algum tipo de figura mentora.

Lugares como a Mixsom, Cataventos, Tio Zé, Over Night, Tequila Café e Rainbow compunham algumas das “boites” (estrangeirismo em francês utilizado antigamente no lugar de do termo “boate”) que agitavam a vida noturna de Aracaju durante as últimas décadas do século XX. Na época tínhamos vários locais, onde podíamos curtir a noite aracajuana de alta qualidade”, conta José Cláudio dos Santos que atua como DJ em pouco menos de 30 anos.

Embora as casas noturnas tenham desempenhado um papel fundamental, é importante destacar que mesmo naquele tempo já existiam movimentações mais “underground” na cidade que promoviam eventos pontuais de forma independente. Locais como o Centro e a Farolândia já eram tentativamente utilizados para eventos pontuais, havendo relatos até de uma rave que aconteceu no terreno onde ainda era construído o Teatro Tobias Barreto.

Nessa fase áurea da cena eletrônica aracajuana, a recepção do público não se expressava de maneira exorbitante quantitativamente, mas consistia numa audiência sólida e sustentável. “As pessoas não sabiam muito bem o que tava acontecendo. Tinha uma ou outra pessoa do público que conseguia identificar o que era techno, o que era house”, declara Patrick “Patricktor4” Torquato, DJ e produtor musical.

Por mais que a cultura “clubber” não estivesse tão disseminada na capital sergipana quanto em grandes centros urbanos como São Paulo, isso não impedia que as pessoas se divertissem.

“Era um público que dava mais prazer de tocar e interagir pois a diversão era muito mais intensa. Ninguém se preocupava se ia suar de dançar, perder o penteado ou se seria criticado pelos movimentos dos quadris”, fala “Versianni” que sublinha a importância da recepção do público para o trabalho do disc jockey.

O Declínio

Festa Emotrixx, realizada em Aracaju, no início dos anos 2000 — Foto: Arquivo de Versianni Júnior

Próximo a chegada dos anos 2000, a música eletrônica foi perdendo a força e o espaço em Aracaju, que cada vez mais passava a receber grandes eventos relacionados à outros gêneros musicais como o axé, o brega e o sertanejo. Movimento atribuído à grandes empresários que buscavam alavancar o maior número de massas possível.

Dessa forma, as “boites” foram perdendo cada vez mais seu público e consequentemente seu sustento e foram forçadas a fechar as suas portas. “Sem um local (ou mais de um) onde se possa criar um público, com uma programação semanal, proporcionando uma experiência que vai desde o som da casa, ao repertório do DJ, até decoração, iluminação adequada e tudo mais que é parte da cultura DJ, não é possível transformar um cliente eventual, aleatório, em um aficionado pela música eletrônica”, afirma o DJ Versianni.

GIF: André Alcântara e Inácio Prado

Uma nova cena eletrônica

GIF: André Alcântara e Inácio Prado

Surgida em 2017, a Fugácida pode ser apontada como o pontapé e um dos principais expoentes do cenário atual de música eletrônica da cidade. “A Fugácida foi algo muito importante e realizador”, comenta Dry, DJ e produtora musical, acerca da importância do grupo na cena aracajuana.

Coletiva composta de DJs, VJs e produtores, o grupo trouxe importantes nomes da música eletrônica nacional como BADSISTA, Slim Soledad e Jup do Bairro com a realização de eventos inéditos em Aracaju, o que fez com que suas festas fossem consolidadas como verdadeiras datas para serem aguardadas vorazmente, cativando um novo público da música eletrônica na capital sergipana.

Previamente, as festas de música eletrônica que ocorriam na cidade eram limitadas à raves de maior porte como Vooar ou a Sollares, que ainda que façam parte do gênero eletrônica, possuem um determinante econônimo muito marcante, o que acabava limitando de forma extremamente considerável a presença de muitas pessoas em seus espaços.

Hoje, a aTrack produzida pelo Slam Mulungu e o Baile da Frente produzido pelo Fim de Linha parecem seguir os passos da Fugácida tanto na fomentação de festas eletrônicas como de uma caráter mais social e atento ás suas atuações dentro do contexto sociopolítico.

Ser quem é: corpo político

Evento promovido pelo coletivo “Fugácida”, na casa de shows Tequila Café - Foto: Inácio Prado

Outro diferencial do atual cenário é a diversidade de corpos presentes nos espaços, não só da parte do público mas também na parte da organização dos eventos. “Quando eu comecei era um mundo dominado por homens cis, hoje temos mulheres cis, trans, enfim uma diversidade maior de pessoas fazendo a cena como um todo”, comenta Rafel “Rafa” Aragão, jornalista que completou oito anos como DJ.

Para Patrick, o acolhimento da música eletrônica pelas minorias sociais é indissociável da história do eletrônico enquanto também um movimento sociocultural. “O House e o Techno surgem, crescem e se potencializam em Detroit e em Chicago dentro do gueto latino, negro e gay. Então sim, a música eletrônica é desse público”, relata ele.

Um dos marcos é a presença crescente da lista trans free nas festas, uma política de gratuidade para pessoas trans e travestis que começou a ser adotada cada vez em âmbito nacional.

“Há dois anos, costumava ser a única travesti na maioria das festas em que costumava ir enquanto consumidora. Hoje, consigo dividir lines completamente preenchida por travestis, ou por pessoas negras, ou por pessoas LGBTI+ no geral”, comenta Stella Carvalho, DJ e produtora cultural.

GIF: André Alcântara e Inácio Prado

O futuro ainda que calcado de dificuldades, representa também um horizonte de novas possibilidades. Para o produtor cultural e sócio da empresa Doca, o público aracajuano vem abraçando cada vez mais as festas de música eletrônica: “Cada vez mais o público tem entendido e compartilhado a importância de apoiar a cena”, ele conta. Se alguns anos atrás as opções eram escassas, agora o que podemos testemunhar é a construção de uma cena diversa e com opções, algo muito difícil anteriormente.

“É uma cultura que atualmente tem se instalado de forma firme justamente por conta de angústias e desejos de pessoas que não se sentiam totalmente contempladas com algumas propostas, mas é um trabalho de formiguinha, de paciência e de vontade também”, fala Dandara, DJ “Trapos”, acerca do futuro da cena eletrônica aracajuana.

Rafael Aragão parece compartilhar uma opinião semelhante: “É difícil prever o futuro, mas eu acredito muito que a cena tende a se tornar mais autoral, mais criativa, até porque a necessidade de conquistar o público vai levar a isso. O futuro não demora e ele virá cheio de batidas para fazer o povo mexer”, ele relata. De uma forma ou de outra, a música parece ser a resposta.

Texto: Thyago Soares | GIFs: André Alcântara e Inácio Prado | Fotografias: Inácio Prado | Vídeo: André Alcântara, Inácio Prado e Thyago Soares.

--

--