A crise do estado e as contas que não fecham

Rarissa Grissutti
Jornalismo Econômico UniRitter Fapa
9 min readNov 24, 2017

Aumento de inadimplentes no Rio Grande do Sul é registrado em 2017. Após 21º mês de parcelamento de salários, passam a receber primeiro os servidores que ganham menos.

Daniela Knevitz e Rarissa Grissuti

Professores estão em greve há mais de 70 dias. Foto: Divulgação CPERS

O​ ​número​ ​de​ ​famílias​ ​endividadas​ ​no​ ​mês​ ​de​ ​outubro​ ​de​ ​2017, no​ ​Rio​ ​Grande​ ​do​ ​Sul, é 10,8% maior que nível registrado no mesmo mês em 2016. Conforme​ ​a Pesquisa​ ​de​ ​Endividamento​ ​e​ ​Inadimplência​ ​do Consumidor​ ​(PEIC)​ ​realizada​ ​pela​ ​Fecomércio-RS,​ ​referente​ ​ao​ ​mês​ ​de​ ​outubro​ ​de​ ​2017,​ ​o​ ​percentual​ ​de​ ​famílias endividadas​ ​foi de 75,3%,​ 2,1% menor que a taxa registrada em setembro deste ano, mas que permanece com valores superiores ao mesmo período no ano passado. Após atingir 21 meses de parcelamento de salários, as novas medidas do governo mudaram o esquema de pagamento da folha, iniciando pelos servidores que tem salário menor, atrasando o pagamento de parte da folha.

Segundo​ ​análise​ ​feita​ ​pela​ ​empresa​ ​de dados​ ​de​ ​crédito​ ​Serasa​ ​Experian e Fecomércio, no​ ​mesmo mês, no país, ​​o​ ​número​ ​de​ ​brasileiros​ ​inadimplentes​ ​atingiu recorde histórico, chegando a​ ​61 ​milhões​ e, somente no Estado, a taxa chegou a 5,4%. Já em outubro​ ​de​ ​2016​ ​existiam​ ​58,4 ​milhões​ ​de​ ​inadimplentes no Brasil, destes ​ 5,1% somente ​no​ Rio Grande do Sul.

O​ ​aumento​ ​do​ ​número​ ​de​ ​inadimplentes​ ​no​ ​Estado​ ​mostra​ ​relação​ ​com​ ​o​ ​aumento​ ​de famílias​ ​endividadas, ​ ​como​ ​aponta​ ​a ​(PEIC)​. Em​ ​uma​ ​situação​ ​de​ ​caos​ ​nas​ ​finanças​ ​públicas, ​onde​​ ​o​ ​parcelamento​ ​de salários​ ​de​ ​servidores​ ​estaduais​ ​chega​ou ​ao​ ​21º​ ​mês,​ ​a​ ​economia​ ​gaúcha​ ​sente​ ​inflar​ ​o número​ ​de​ ​devedores​ ​na​ ​praça​ ​e,​ ​ao​ ​longo​ ​de​ ​meses,​ ​as​ ​contas​ ​desequilibram​ ​no​ ​público​ ​e no​ ​privado.

Os atingidos em cheio

Segundo o ​ ​levantamento​ ​do​ ​D​epartamento​ ​Intersindical​ ​de​ ​Estatística​ ​e​ ​Estudos Socioeconômicos​ ​​(DIEESE)​​ ​​os​ ​servidores​ ​estaduais​ ​somam, ​ ​em​ ​um​ ​contexto​ ​familiar, ​ ​uma população​ ​equivalente​ ​a​ ​de​ ​cidades​ ​como​ ​Canoas​ ​ou​ ​São​ ​Leopoldo. ​ ​Pode-se​ ​imaginar​ ​o impacto​ ​de​ ​dívidas​ ​acumuladas​ ​por​ ​esses​ ​ao​ ​longo​ ​de​ ​quase​ ​dois​ ​anos​ ​de​ ​salários parcelados. ​ ​Conforme​ ​o​ ​apontamento, ​ ​a​ ​própria​ ​arrecadação​ ​estadual​ ​sofre​ ​com​ ​a​ ​medida, já​ ​que​ ​a​ ​contribuição​ ​com​ ​cobranças​ ​públicas​ ​(IPVA​ ​por​ ​exemplo)​ ​acabam​ ​prejudicadas. Também, ​ ​a​ ​dificuldade​ ​de​ ​pagar​ ​contas​ ​como​ ​de​ ​água, ​ ​luz​ ​e​ ​telefone, ​ ​ocasionam​ ​na diminuição​ ​da​ ​arrecadação​ ​de​ ​ICMS. ​ ​Além​ ​de​ ​terem​ ​restrição​ ​ao​ ​crédito, ​ ​já​ ​que​ ​muitos servidores​ ​acabam​ ​por​ ​não​ ​conseguir​ ​saldar​ ​dívidas​ ​de​ ​empréstimos​ ​com​ ​o​ ​próprio​ ​Banco do​ ​Estado​ ​(Banrisul), ​ ​o​ ​que​ ​mais​ ​uma​ ​vez​ ​retroalimenta​ ​a​ ​dificuldade​ ​de​ ​arrecadação​ ​dos cofres​ ​públicos.

A​ ​população​ ​estimada​ ​do​ ​Rio​ ​Grande​ ​do​ ​Sul​ ​em​ ​2017​ ​chega​ ​a​ ​mais​ ​de​ ​11​ ​milhões. A​ São​ ​mais​ ​de​ ​cem​ ​mil​ ​servidores, num​ ​universo​ ​que​ ​ultrapassa​ ​duzentas​ ​mil​ ​matrículas (mais​ ​de​ ​um​ ​vínculo)​ ​e​ ​que​ ​reflete​ ​na​ ​economia​ ​do​ ​Estado.

Segundo​ ​pesquisa​ ​feita​ ​pela​ ​própria​ ​reportagem,​ ​as​ ​dívidas​ ​fazem​ ​parte​ ​da​ ​rotina​ ​dos servidores.​ ​Os​ ​apontamentos​ ​indicam​ ​utilização​ ​de​ ​cheque​ ​especial​ ​mais​ ​de​ três​ ​vezes​ ​em um​ ​período​ ​de​ ​dois​ ​anos,​ ​adesão ao crédito​ ​também​ ​nas​ ​mesmas​ ​proporções​ ​e​ ​, cada vez mais, o aumento de​ ​dívidas,​ ​oriundas​ ​na​ ​maior​ ​parte​ ​do​ ​cartão​ ​de​ ​crédito​ ​e​ ​financiamentos.​ ​Além​ ​da​ ​parcela que​ ​passa​ ​por​ ​dificuldades​ ​em​ ​arcar​ ​com​ pagamentos mensais como a​ ​educação dos filhos​.

A​ ​perspectiva​ ​de​ ​pagamento​ ​de​ ​dívidas​ ​contraídas, ​ ​conforme​ ​a​ ​pesquisa, ​ ​na​ ​maioria​ ​das vezes​ ​se​ ​torna​ ​longínqua, ​ ​já​ ​que​ ​muitos​ ​acabam​ ​sem​ ​saber​ ​ao​ ​certo​ ​quando​ ​e​ ​como receberão ​seus​ ​salários​ ​no mês seguinte. Segundo a análise, a maior parte dos consultados tem perspectiva de quitar seus débitos daqui um ano ou mais.

Segundo a professora Denise Ferreira, diretora do 22º Núcleo do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (CPERS), o clima entre os docentes é de total insatisfação e desmotivação. “Estamos sendo desrespeitados e penalizados por um péssimo programa de governo que atinge principalmente a classe dos servidores públicos”, disse Denise.

Cada vez mais fundo na crise

Representando 62,6% do total de matrículas do Estado, os professores são uns dos que mais sentem a situação econômica desfavorável. Conforme o levantamento do DIEESE, os docentes não tem reposição salarial desde 2014, o que indica uma diminuição nos salários de 17,6% em comparação com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) de agosto. Também, o período registra elevação do ICMS, que somente em 2016 teve crescimento de 4,36% acima da inflação.

Dessa forma, conforme levantamento feito pela reportagem, o maior apontamento de endividamento parte do cartão de crédito, onde as taxas de juros mensais giram em torno de 15%, com taxas de juros anuais em torno de 363,3%. A partir da nova regra, que entrou em vigor no início de 2017, as operadoras podem contar 90 dias para que se efetue o pagamento da fatura, passado o período, o débito é parcelado e as taxas de juros ultrapassam os 15% mensais.

Ainda assim, se tratando de comércio e vendas, os economistas são mais positivos em relação ao nível de consumo no fim de ano. Não se aposta em quedas nas vendas reflexivas ao parcelamento de salários ou referente ao pagamento de servidores com menor salário. Conforme o professor da escola de economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Eugenio Lagemann, o que pode afetar as vendas é o não pagamento do décimo ou o parcelamento deste ao longo do ano, como o que foi feito com o de 2016. “A forma de pagamento agora implantada é de não atrasar o pagamento dos salários menores, deixando o problema de recebimento defasado com os funcionários de maiores salários que podem estar capitalizados e, eventualmente, têm acesso a fontes de receita complementares”, diz o economista.

Em outubro, servidores receberam salários parcelados pelo 21 mês consecutivo. Foto: Carol Ferraz — CEPERS

Extinções: defasagem da máquina pública

Em novembro de 2016 o governador do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori, anunciou um pacote de medidas para conter a crise no Estado. Entre elas, estavam a extinção de fundações do alicerce da pesquisa e desenvolvimento estadual, como a Fundação de Economia e Estatística (FEE) e a Cientec.

Somente nos dois locais um quadro de mil funcionários sofrem com a ameaça da perda do emprego por não terem um regime de trabalho estável. A reportagem entrou em contato com a FEE, no dia 23 de outubro, na ligação a preocupação dos servidores transpareceu. Cartas de demissão haviam sido entregues pouco antes.

A médio e longo prazo a decisão das extinções e, consequentemente, das demissões será sentida no bolso dos gaúchos ainda mais do que hoje. De acordo com a análise do economista, sem pesquisa cientifica pública, a solução é a inciativa privada, o que por vezes debita do orçamento mais do que se planeja economizar hoje.

O que diz o Governo?

Segundo informações da Secretaria de Comunicação do RS, as dificuldades financeiras do Estado vêm se agravando há décadas. Por e-mail, afirmaram que “passamos 40 anos gastando mais que o arrecadado e isso vem tornando o Estado ineficiente e sem capacidade de prover os cidadãos com serviços essenciais de qualidade, além de comprometer o pagamento integral do funcionalismo”.

Atualmente, o Rio Grande do Sul gasta 54,1% dos recursos com servidores inativos e 75% da arrecadação é utilizada apenas para quitar a folha de pagamento. O déficit financeiro do Rio Grande do Sul é causado por conta de receitas insuficientes para honrar as despesas, além da limitação cada vez maior de fontes extraordinárias de recursos. Apesar disso, mesmo com dificuldades, os salários foram quitados sempre no mês corrente, nunca ultrapassando o dia 15, como acontece em outros estados.

Para tentar estabilizar a crise, o Governo criou uma Lei de Responsabilidade Fiscal que fecha o cerco contra a irresponsabilidade administrativa. O objetivo é aprofundar o controle na criação ou aumento de despesas e, com entendimento da Assembleia Legislativa, enxugar a máquina pública.

Segundo informações, a partir de agora todo o empenho está voltado à adesão do Rio Grande do Sul ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) proposto pela União. “Trata-se de um conjunto de medidas que será capaz de dar fim ao parcelamento de salários, nomeação de servidores em áreas essenciais, além de garantir a prestação de serviços de qualidade ao cidadão”, afirma.

Se aderido, o RRF representa de imediato, um ganho de fluxo financeiro com a suspensão do pagamento dos serviços da dívida com a União pelo prazo de três anos. Considerando os benefícios da repactuação da própria dívida, o alívio no caixa poderá superar os R$ 18 bilhões até 2020. A adesão ao regime prevê uma carência de até 36 meses no pagamento da dívida com a União, prorrogáveis por igual período.

Até 2020, isso representaria um alívio financeiro de aproximadamente R$ 11,3 bilhões. Desse total, R$ 7,9 bilhões estarão à disposição do próximo governo. “Portanto, independentemente de quem esteja administrando o Estado a partir de 2019, queremos entregar um Rio Grande do Sul com novo fôlego para investimentos e maior capacidade de governabilidade pelas próximas duas décadas”, finaliza.

Últimas medidas:

A mais nova medida, já posta em prática, foi a venda de ações do Banrisul. Ofertando ao mercado até 49% das ações ordinárias do Banco (com direito a voto) e 7% das ações preferenciais (sem direito a voto). A expectativa é de que os recursos resultantes ajudarão no equilíbrio financeiro e em investimentos em áreas essenciais.

Segundo Denise Ferreira, o CPERS não aprova a venda das ações, pois entende que a decisão acarreta de certa forma o processo de privatizações no Estado. “Esse processo não beneficia nem melhora as finanças. O governo insiste nas privatizações que ocasionam uma série de problemas principalmente a classe trabalhadora”, afirma a professora.

Além disso, o Governo publicou nessa semana portaria que regulamenta trabalho voluntário para professores no RS. A medida, assinada pelo secretário estadual de Educação, Ronald Krummenauer, objetiva a reposição das aulas perdidas por conta da greve, que já dura mais de 70 dias.

Os professores reivindicam a garantia de pagamento do salário e 13º integrais e em dia — este pode ser o terceiro ano consecutivo de parcelamento do 13º salário; reajuste de 21,85%; retirada do projeto de prevê a legalização do parcelamento de salários e 13º; garantia de indenização pelos atrasos de salários com juros de mercado (cheque especial, cartões de crédito, financiamentos, etc).

Segundo a diretora do 22º Núcleo do CPERS, o sentimento a respeito da regulamentação do trabalho voluntário é de repúdio, e afirma que entrar em greve é sempre a última opção. “Suportamos 22 meses de parcelamentos e decretamos a greve com uma adesão de mais de 80% da categoria, o que não acontecia há bastante tempo. Conseguimos desacomodar e estremecer o governo Sartori que mesmo com sua intransigência, sentiu a força da categoria. Vamos continuar exigindo o respeito pela educação pública de qualidade e pelo cumprimento dos nossos direitos”, finaliza Denise.

Economia e reflexos

A análise quanto ao reflexo do parcelamento de salários dos servidores estaduais na economia do estado se torna intuitiva. Não existem estudos que se debrucem sobre esse fator, o que deixa a situação ainda mais complexa. Mesmo assim, observando os índices de consumo realizados pelo IBGE, nota-se maior intenção para aquisição de bens nos últimos meses.

Contudo, a politica de parcelamentos pode gerar uma preocupação que atinge diversos setores. Uma vez que as vendas do comércio fiquem abaladas, isso será refletido na diminuição de aquisição de bens, na geração de empregos e na diminuição de oferta do mercado. Sempre que uma crise instaurada, os reflexos são mais complexos do que é sentido em um primeiro momento, conforme análise da economista da Fundação de Economia e Estastica (FEE) e professora da Escola de Negócios da PUCRS, Cecilia Hoff.

Com uma politica fiscal com medidas que geram desconforto para os servidores, as inciativas de conciliação entre estado e economia seguem no curto prazo. Com perspectiva de fôlego para o fim de ano, as projeções de reflexo da crise na economia podem vir na contramão da espera de bons resultados.

Produção: Daniela Knevitz e Rarissa Grissutti.
Fontes Eugenio Lagemann e Cecilia Hoff: Rarissa Grissutti.
Fontes Secretaria de Comunicação do RS e CEPRS: Daniela Knevitz.
Dados/bancos SERASA Experian ,PEIC (Fecomercio) e 5 receitas: Rarissa Grissutti.
Dados/bancos DIEESE e FEE: Daniela Knevitz.
Texto: Daniela Knevitz e Rarissa Grissutti.
Edição de texto: Daniela Knevitz.
Fotos: Banco de imagens CEPRS.

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