Cubo mágico da criptografia

AlineLuisa
Jornalismo Econômico UniRitter Fapa
6 min readNov 24, 2017

Pensar fora da caixa é coisa do passado: iniciativas do Rio Grande do Sul testam o blockchain e demonstram de que forma esta tecnologia vai revolucionar seus negócios

Ao adquirir um imóvel, uma sequência burocrática de registros é necessária para certificar o vínculo entre comprador e propriedade. Ao final da conferência das informações, o escrivão da fé da aquisição e armazena a papelada do ato de compra em uma caixa de arquivo, que depois de fechada vai para os recônditos de uma sala inviolável. A cena ocorre diariamente em cartórios. Mas em dois estabelecimentos de registro de imóveis de Pelotas e Monte Bonito, região sul do Rio Grande do Sul, essa sequência é, na verdade, a engenhosidade do sistema blockchain. A tecnologia por trás das famigeradas criptomoedas é uma cadeia de blocos — um grande banco de dados — público, remoto e inviolável. Nele, arquivos digitais de todo tipo podem ser registrados. Cada item adicionado a esta ‘caixa’ recebe um registro de data e dá origem a uma assinatura, que neste caso é uma sequência criptografada de letras e números. Para especialistas, ele é a tecnologia mais disruptiva e revolucionária, depois da internet.

“Eu diria que o Rio Grande do Sul é sim um estado que está acompanhando o ritmo do Brasil. É sem dúvida um dos estados que mais têm se atualizado sobre blockchain”. Categórico, o consultor de transformação digital Fausto Vanin, dá palestras em todo o país e diz que mesmo em outros estados, a maioria do público dos eventos é gaúcho. E ele está certo. Iniciativas do estado se destacam no cenário nacional, desenvolvendo testes, pesquisas e contribuindo para o desenvolvimento de um sistema funcional, que atenda os diversos setores da economia. “O maior desafio é adaptar a tecnologia para oportunizar novos negócios. Isso não é nada fácil, mas se o Rio Grande do Sul continuar nesse ritmo, acredito que possa se destacar novamente na economia do país”, analisa.

Isso porque, a corrente de códigos fonte foi pensada para dar suporte à rede peer to peer (ponta a ponta, em inglês, ou P2P), garante o anonimato das transações com Bitcoin — a moeda virtual que alavancou o blockchain. Ao invés de um servidor único, centralizado, onde ficam armazenados os dados, é preciso que diversos usuários validem as transações, em seus computadores, sem necessidade de intermediários. Ou seja, é usado um algoritmo de prova de trabalho (o chamado proof of work), impedindo que a mesma operação seja realizada mais de uma vez — o que gera credibilidade ao sistema. Qualquer tentativa de alteração de uma informação já depositada no encadeado de blocos criptografados, é facilmente rastreada pela rede de usuários e combatida.

Por ter o código aberto, ou seja, editável — e público — desenvolvedores têm adaptado a arquitetura do sistema para necessidades há muito desatendidas: sigilo de dados de clientes e suas operações. Seja lá quem — ou quê — for Satoshi Nakamoto — desenvolvedor destas tecnologias — certamente não esperava os usos surpreendentes que teriam. Mesmo que ainda seja difícil desvincular o blockchain do Bitcoin — até os fonemas se confundem — um cenário já é nítido: a moeda gera polêmica e coloca em alerta o mercado financeiro, mas seu sistema é justamente a sua redenção.

Testes tímidos, revolução mandatária

Coordenador de TI dos cartórios de registro de imóveis de Pelotas e Monte Bonito, Rafael Mezzari, foi pioneiro em testar, junto da empresa americana Ubitquity, o registro de propriedade em blockchain. Ainda embrionário, o teste registrou na plataforma seis imóveis da região. “A intenção era entender como rastrear o registro e recuperá-lo depois”, comenta. O profissional explica que essas transações ainda mantém sua versão convencional, ou seja, em um servidor tradicional, além dos documentos físicos e salienta que a inclusão no blockchain é apenas uma tentativa de entender seu funcionamento.

A ressalva com a tecnologia é justamente quanto à transparência, que permite a visualização do passo a passo das operações. Para Rafael, o sistema vai sim revolucionar as operações em vários setores, mas para os registros civis, precisa ser adaptada. “O blockchain é a melhor forma de associar algo a alguém e certificar esta ligação. E é exatamente o que fazemos no cartório. Só que nós temos o compromisso de manter seguras as informações dos clientes, por isso, eu jamais deixaria o conteúdo do cartório em um blockchain aberto”, afirma. A expectativa é de que em breve não haverá nenhuma tecnologia que não seja baseada na lógica do blockchain, mas com capacidade superior de armazenamento de dados.

Banrisul desponta no cenário nacional de tecnologia

Segundo dados do Fórum Econômico Mundial, o blockchain deverá armazenar 10% do PIB global em 2025. Atento à disrupção que a tecnologia propõe, o Banrisul — banco estatal do Rio Grande do Sul — faz parte do grupo de trabalho da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) que está ‘estudando’ a tecnologia dos blocos criptografados. O comitê uniu-se em 2016, conduzido pelo Itaú, em busca de modelagem de soluções para bancos brasileiros. Para o diretor de TI do Banrisul, Jorge Krug, é importante que as instituições financeiras trabalhem em conjunto para padronizar as soluções com o blockchain. “Estamos muito no início, é cedo para falar em reestruturação geral. Precisamos pensar na segurança da implantação, na arquitetura dos códigos, sem quebrar a nós e a rede toda”, salienta.

A ponderação de Krug se justifica: o sistema financeiro é o principal vetor de estudos e práticas envolvendo a tecnologia dos quadrados. “Afinal, são os bancos que têm dinheiro. É natural que todo o investimento que fizermos na implantação de processos inovadores, facilitará para que outros setores tenham acesso e possam desenvolver as suas experiências com o blockchain”, aponta. Sem mencionar os custos ou valores envolvidos, Krug entrega que o sistema significaria uma economia para as instituições financeiras por eliminar a necessidade da terceirização de servidores. “O custo se refere ao desenvolvimento da plataforma. Mas logo seria revertido, pois os benefícios desse sistema de segurança são superiores”, completa.

Banco Central do Brasil, mostra-se interessado na revolução do blockchain. Desde o ano passado a instituição mantém o Laboratório de Inovação — grupo de trabalho formado no Departamento de Tecnologia da Informação do BC com foco em tecnologia, que pesquisa as vantagens da utilização do blockchain e que chegou a publicar um de seus estudos, Como os processos com blockchain são transparentes e podem ser acessados por qualquer um, a aplicabilidade da tecnologia esbarra justamente em questões de privacidade entre instituições financeiras, o que infringe os requisitos atualmente exigidos pelo Banco Central. Mesmo assim, o grupo de trabalho do Banrisul está prestes a anunciar — no Congresso CIAB da Febraban, em 2018 — um protótipo baseado nos testes já desenvolvidos.

Cada um no seu quadrado

Uma das mais importantes universidades do país, a Pontífica Universidade Católica — PUC RS oferece cursos de extensão voltados ao blockchain. Segundo o coordenador Michael da Costa Mora, faz parte da missão da PUC a formação complementar. “Nós percebemos uma carência nessa área que é o centro da inovação” justifica. O curso ocorreu em outubro, com duração de um mês e teve lotação máxima. Novas turmas estão previstas para abril. Confira mais iniciativas que estão transformando seus negócios com o blockchain.

Ainda que o blockchain proponha uma revolução na tecnologia, as operações bancárias e os registros civis seguirão existindo. O que muda é onde e como essas informações ficarão armazenadas. “A longo prazo os próprios clientes vão tomar a iniciativa de ter uma assinatura digital para poder realizar transações”, completa Rafael. A identidade digital e a autonomia para realizar transações sem intermediação de terceiros, no entanto, não ameaçam as instituições. O processo de toda a triagem de documentos, comprovações, declarações e a transmissão de processos continua sendo necessária, mesmo que os sistemas migrem toda sua operação para o blockchain. É como montar e desmontar um cubo mágico: mesmo que seus encaixes sejam baseados em uma lógica matemática, o trabalho humano e manual ainda é o que possibilita a combinação.

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