Queda de braço pelas contas de Porto Alegre

Enquanto a prefeitura da Capital alega debilidade nas finanças, servidores públicos municipais exigem abertura das contas do governo Marchezan

Ulisses Miranda
Jornalismo Econômico UniRitter Fapa
10 min readNov 24, 2017

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Vice-prefeito Gustavo Paim durante reunião com a direção do SIMPA e vereadores que terminou sem acordo. Foto: Ricardo Giusti/PMPA

Por Deise Freitas, Matheus Closs e Ulisses Miranda| Jornalismo Econômico | UniRitter campus FAPA

A greve iniciada em 5 de outubro pelo Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (SIMPA) junto ao funcionalismo público porto-alegrense chegou ao fim na tarde do dia 13 de novembro. Exatos 40 dias depois de começar a paralisação, os objetivos da categoria foram, em parte, atendidos. A trégua concedida pelo prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), na manhã do dia 7 de novembro, no entanto, esconde um ponto essencial na queda de braço travada entre os servidores e o governo municipal.

As contas da administração do prefeito Marchezan são o derradeiro alvo do SIMPA, que solicitou uma auditoria junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS) no dia 28 de agosto. Ela diz respeito, sobretudo, a checagem quanto à disponibilidade financeira do município para pagar integralmente as folhas de pagamento do funcionalismo no último dia do mês e a verificação sobre os reais percentuais de gasto com pessoal a partir das percentagens definidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

O requerimento do SIMPA se transformou no processo nº 004608–0200/17–4 , aberto pelo TCE-RS. No parecer do Tribunal, recebido pelo sindicato em 30 de outubro e entregue ao Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) no dia 1º de novembro, são apresentados, por exemplo, comparações entre a disponibilidade dos recursos destinados à Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) e às chamadas Ações e Recursos Públicos de Saúde (ASPS), com a folha de pagamento líquida.

Em meio ao emaranhado de contradições entre as falas de um lado e de outro está a cidade de Porto Alegre. Acusações de parte a parte corroboram para a construção de um cenário no qual o diálogo parece não funcionar com a clareza necessária — semelhante ao que se observa nos portais de transparência utilizados como base da discussão.

“Cirurgia bem sucedida, paciente morto”

Ao assumir a administração municipal, o prefeito Marchezan anunciou também que estava recebendo R$ 507 milhões em dívidas. Não bastasse isso, o mandatário explanou aos quatro cantos da cidade que o caixa estava vazio. Com estas constatações, o prefeito deu início a uma série de medidas para melhorar a situação do fluxo de saída e entrada de dinheiro.

A primeira medida adotada foi a reforma administrativa, que cortou quase pela metade o número de secretarias. Na gestão anterior, de José Fortunati (PDT), o Executivo apresentava 37 órgãos, divididos em 29 secretarias, quatro autarquias, três empresas públicas e uma fundação. Com as alterações, passaram a existir 23 órgãos, sendo 15 secretarias, quatro autarquias, três empresas públicas e uma fundação.

Outro corte foi no número de Cargos em Comissão (CCs). Segundo documento enviado pela assessoria do secretário municipal da Fazenda, Leonardo Busatto, a diminuição foi de 34%, superando os 30% prometidos em campanha por Marchezan. O salário destes cargos também foi limitado em até R$ 9 mil. Contudo, entre janeiro e outubro houve um aumento na quantidade de CCs no Executivo municipal. O número de cargos comissionados passou de 694 para 772 (planilha elaborada pela página do Facebook “Meu ônibus Lotado” )— o maior desde o início do ano.

Professora Rosa Ângela Chieza, condecorada pela Câmara Municipal em 2016, ressalta que durante a crise a população necessita ainda mais do serviço público. Foto: Tonico Alvares/CMPA

A professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS Rosa Ângela Chieza acredita que cortar gastos nem sempre é a melhor solução em momentos de crise financeira. Pelo contrário, esse é o período no qual o Estado acaba mais demandado pela população, que migra do privado para o público. “Se os governos que estão fazendo a gestão tem a concepção de que cortando as despesas vai equilibrar as contas, ótimo. Mas é bem provável que se ele aumentar a dosagem desse remédio, vai chegar no final e dizer: ‘cirurgia bem sucedida, paciente morto’”, metaforiza a professora Chieza.

Projetos da prefeitura para estancar a sangria

As Parcerias Público-Privadas (PPPS) defendidas pelo governo — e denominadas como privatizações, pela oposição — são outra das medidas apontadas pela administração municipal como antídoto para superar a crise. No dia 2 de maio de 2017, o prefeito Marchezan assinou o decreto nº 19.736, instituindo o Programa Municipal de Parcerias (PROPAR/POA) e o Conselho Gestor do Programa de Parcerias (CGP). Economista assistente da Secretaria Municipal da Fazenda, Mário de Lima cita a empresa de transporte público da Capital, a Carris, como exemplo do que, segundo ele, já foi um modelo de estatal para o país, mas que hoje exige muita verba para sua manutenção. “Ou ela serve para dar o exemplo do que pautar, do que a iniciativa privada deve fazer, ou, a gente poderia estar fazendo outras coisas com os recursos que são passados para ela”, justifica Lima. Em entrevista à Rádio Gaúcha, Marchezan afirmou que os custos à prefeitura com a Carris giram entre R$ 50 e R$ 60 milhões por ano.

Para a professora Chieza, vender empresas públicas como a Carris é tornar o estado refém dos grandes grupos privados como bancos, indústrias, construtoras e a indústria farmacêutica. ”Quem vai mandar na sociedade são os grupos de poder e não os governos”, explica. A intenção do governo é tornar a ideia efetiva até 2018 — a proposta ainda não foi encaminhada para a Câmara de Vereadores.

A prefeitura também tentou aumentar a sua arrecadação através do que ela intitula como uma “atualização do IPTU de Porto Alegre”. O projeto levado ao Legislativo, porém, não foi digerido pelos vereadores. O resultado, 25 votos contra e 10 a favor (além de uma abstenção), causou divergências, inclusive, entre integrantes do governo. “Pessoal com viés mais liberal saiu do governo por causa disso, dizendo que era aumento de imposto, mas não é aumento de imposto”, aponta Lima. Vereador eleito pelo PP, Ricardo Gomes pediu exoneração da secretaria municipal de Desenvolvimento Econômico do governo Marchezan no dia 16 de agosto desse ano, contrariado com o projeto sobre o IPTU.

A proposta seria uma forma de “justiça tributária”, no entendimento da professora Chieza, se for levado em consideração que há vinte anos a planta de valores não é revista. Segundo a prefeitura, a atualização, no entanto, não geraria um acréscimo a ponto de resolver o problema dos salários, por exemplo.

Também favorável ao projeto e líder da base do governo na Câmara, o vereador Moisés Maluco do Bem (PSDB) em seu discurso durante a votação defendeu a proposta, e assim como Chieza, destacou-o como importante para se fazer uma “justiça tributária”.

Remédio negado

Um dos votos contrários ao projeto de atualização da planta do IPTU foi o da vereadora Fernanda Melchionna (PSOL), que embora acredite que seja pertinente a revisão, justificou o voto apontando incorreções no projeto enviado pela prefeitura. Segundo seu assessor Wolnei Prates, enquanto em regiões nobres da cidade, como em trechos da rua 24 de outubro, no bairro Moinhos de Vento, o aumento do valor do m² na planta de valores proposta chega a 109%, em bairros populares, como na Rua Florêncio Farias, no Bairro Belém Novo, os aumentos variam de 136% a 1446%.

Outro ponto citado, foi o tempo que a prefeitura despendeu para a execução do projeto. Em sua última atualização, no ano de 1991, o estudo realizado pelo grupo de trabalho da Secretaria da Fazenda — de cerca de 10 pessoas — levou quase um ano para ser concluído. Para o projeto de 2017, datado em agosto, o assessor da vereadora Melchionna acredita que se tenha levado, no máximo, 6 meses de trabalho, além de ter sido realizado por uma equipe pequena. Questionado, um membro da prefeitura não soube precisar, até o fechamento desta reportagem, o número de pessoas que compuseram o grupo responsável pela elaboração da proposição.

A pressa para votação do projeto não pegou bem entre os vereadores, que tiveram cerca de 45 dias para analisar o projeto de mais 400 páginas até o momento em que foi levado ao plenário. O vereador Felipe Camozzato (NOVO), que também votou contra o projeto, criticou a tentativa de aumento de arrecadação por parte da prefeitura sem antes rever gastos. “Eu não tolero um aumento de arrecadação disfarçado de justiça tributária para, especialmente, acomodar despesa. Porque não se vê iniciativas de corte drástico de gastos”, criticou o vereador durante discurso na Câmara.

Apesar do atual desprestígio do prefeito Marchezan frente aos parlamentares, a prefeitura segue preparando uma série de ações a serem votadas pelos vereadores. Inclusive, uma nova versão do projeto do IPTU deve ser apresentada no próximo ano.

Professor Dr. Eugênio Lagemann (à direita), em 2008, entrega um presente a governadora Yeda Crusius (PSDB). Em 2017 ele defende algumas das medidas tomadas pela administração municipal de Porto Alegre. Foto: Antonio Paz/Palácio Piratini.

Para estabilizar o quadro

Tendo uma visão bastante otimista, segundo Lima, se os projetos enviados pelo governo à Câmara de Vereadores forem aprovados — excetuando-se o de atualização da planta de valores do IPTU, que foi rejeitado — até o final de 2018 há “uma grande chance” da prefeitura voltar a ter um equilíbrio em suas finanças. O Doutor em Economia, Eugênio Lagemann defende as medidas adotadas, até então, pelo atual governo. Para ele, a mais coerente é a de continuar segurando os salários dos servidores. Uma segunda opção seria o aumento da receita. “Mas a população não quer. Tanto que o Marchezan fez agora, tentou aumentar o IPTU e levou uma surra, apanhou de todos”, destaca Lagemann.

Entretanto, para conseguir a aprovação dos projetos planejados será necessária muita articulação por parte da prefeitura, afinal, as propostas de revisão de benefícios de servidores municipais, por exemplo, não teve apoio dentro da Câmara, fruto da pressão exercida pela greve dos servidores.

Enquanto a Casa do povo sutura a disputa, Tribunal de Contas faz o diagnóstico

Em meio ao conflito da Prefeitura com o SIMPA, a Câmara dos Vereadores se estabelece como peça importante do jogo que envolve os projetos do governo. Além de ser fundamental para o sucesso da estratégia da prefeitura de alcançar o equilíbrio das finanças, o Legislativo também partilha com o sindicato os questionamentos sobre as finanças do município.

Entre os meses de agosto e setembro, após o início do parcelamento dos salários dos servidores municipais, a Câmara de Vereadores solicitou ao TCE-RS a verificação das disponibilidades financeiras do município para pagamento da folha, assim como as metodologias consideradas para a avaliação do comprometimento da receita do município.

Adelto Rohr (à esq.), durante reunião entre o Simpa e a prefeitura para apresentação do fluxo de caixa. Foto: Joel Vargas/PMPA

A complexidade encontrada nas páginas de transparência dificulta a compreensão da real situação financeira de Porto Alegre. Além do pedido proveniente do Legislativo, o SIMPA também questionou ao TCE-RS a falta de clareza das informações divulgadas pela prefeitura. O diretor financeiro do SIMPA, Adelto Rohr, acompanha diariamente o Portal da Transparência do município e reclama da ausência de extratos e da especificação dos pagamentos que, segundo ele, deveriam informar o caminho de cada movimentação do caixa, mostrando que o pagamento x foi realizado com uma verba proveniente do fundo y. “Isso ele não mostra para a gente saber se ele está fazendo correto ou não. Então os dados do Portal da Transparência, de fato, não são transparentes”, critica.

Sobre a questão, Lagemann aponta que como não há, legalmente, um procedimento padrão, cada portal adota um método próprio. “Essas questões de transparência não ajudam em nada. Então, essas coisas se tu for tentar entender, vai ficar louco”, ironiza o professor.

Um dos diagnósticos presentes na conclusão do relatório realizado pelo Tribunal de Contas sugere, justamente, que o município aprimore as ações de transparência quanto ao fluxo de caixa mensal previsto e realizado, de forma a tornar clara e objetiva a situação financeira para a população. Além disso, determina que “se promova adequações necessárias nos sistemas informatizados”, para que seja feito os lançamentos contábeis dos pagamentos de cada parcela da Folha de Pessoal nas datas correspondentes.

Outro sintoma apontado pelo TCE-RS, foi a diferença de valores no fluxo de caixa observada pelo SIMPA e pela Prefeitura. Enquanto a análise realizada pelo sindicato — baseada em dados diários do Portal da Transparência da PMPA — aponta uma sobra no caixa de cerca de R$ 328 milhões no dia 31 de agosto (última data para o pagamento da folha), os números divulgados pela Secretaria Municipal da Fazenda defendem que no mesmo período o município terminaria com déficit de R$ 58 milhões.

Uma das principais divergências de entendimento entre os Tribunais de Contas e a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), refere-se às Despesas com Pessoal. A STN é o órgão central do Sistema de Contabilidade Federal, pertencente à estrutura do Ministério da Fazenda, que edita e publica periodicamente o Manual de Demonstrativos Fiscais, que compreende os relatórios e anexos referentes aos demonstrativos exigidos pela LRF.

A Prefeitura Municipal de Porto Alegre, segundo relatório do TCE, publica em seu Portal de Transparência o Demonstrativo da Despesa Pessoal segundo as orientações do Manual de Demonstrativos Fiscais elaborados pela STN. No entanto, o artigo 59 da LRF atribui aos Tribunais de Contas a fiscalização do cumprimento das normas referentes a mesma lei. Além disso, o Superior Tribunal de Justiça reconhece a força normativa de resoluções expedidas por Tribunais de Contas. Sendo assim, os administradores públicos possuem a obrigação de cumprir os atos normativos expedidos pela Corte de Contas.

Enquanto Mário de Lima citou, mais de uma vez, durante entrevista para os alunos da disciplina de Jornalismo Econômico, a necessidade de diálogo com os representantes da população (ou seja, os vereadores), o representante do SIMPA, Adelto Rohr afirmou que o sindicato busca maior detalhamento das contas para que ambos (prefeitura e servidores) debatam baseados nos mesmos números. A disputa é econômica, claro, mas acima de tudo trata-se de um jogo político-ideológico sem previsão de alta.

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