Tudo que reluz

Arthur Rodrigues
Jornalismo Econômico UniRitter Fapa
7 min readNov 22, 2017

Como um criptógrafo anônimo, duas pizzas e um vírus de computador revelaram a maior revolução financeira do início do século XXI

Não, estas moedinhas não são de verdade. São apenas uma concepção decorativa. Um bitcoin mesmo está mais para um conjunto gigantesco de “0” e “1”, como qualquer coisa em ambientes digitais (Foto: Divulgação)

Uma mensagem misteriosa entrou na caixade e-mails dos inscritos no site metzdowd.com, um fórum especializado em criptografia sofisticada, naquele 31 de outubro de 2008. O nome Satoshi Nakamoto aparecia pela primeira vez no pequeno espaço dedicado ao remetente, anunciando a criação de um novo sistema de pagamentos online diretamente entre usuários, sem a necessidade de um intermediário. O artigo Bitcoin: A Peer-To-Peer Eletronic Cash System”, escrito em um rígido formato acadêmico, foi inserido junto da breve mensagem.

O modesto comentário, enviado poucas semanas após o grande crash que originou a crise econômica mundial de 2008, inaugurou o intitulado Bitcoin (BTC, na sigla oficial), um protocolo financeiro baseado na transparência e ao mesmo tempo na privacidade. A ideia, no entanto, estava longe de ser novidade. Diversas iniciativas tentaram — sem sucesso — lançar moedas virtuais descentralizadas, incentivadas pelo movimento cypherpunk dos anos 1990. O pulo do gato estava na segurança: nas nove páginas do artigo de Nakamoto, nasceu também a Blockchain.

A Blockchain é como um irmão mais velho das moedinhas digitais, que cuida para saber se elas pegam o caminho de casa ou estão tentando sair de bicicletinha sem rumo pelo mundo. A ferramenta registra o caminho de uma carteira para a outra por meio de blocos de transações — daí o nome.

O bloco funciona como uma caixa de vidro com a tampa aberta. Durante alguns minutos ela fica disponível para os usuários do sistema colocarem ali os comprovantes digitais de transações. Depois de atingir o tamanho predeterminado ela é selada com um algoritmo, uma chave matemática que atrela o bloco ao resto da cadeia, começando o processo mais uma vez com outra caixa. Depois de fechado fica ali, transparente, a vista de todo mundo, mas impossível de alterar. Até 2025, o Fórum econômico Mundial espera que 10% do PIB mundial passe por este livro-caixa aberto.

O processo de fechamento da cadeia é também a maternidade das moedas. Sem um banco central para ligar a impressora e jogar notas do mercado, são os usuários que criam as novas unidades. Mas não pense que é fácil: o protocolo de registro e execução das operações financeiras na rede bitcoin, a chamada proof of work (prova de trabalho, em trad.), é uma corrida contra o tempo. Quem resolver primeiro, entre todos os usuários da rede — os chamados mineradores — , leva como prêmio uma dúzia de bitcoins novinhos, que valem mais do que dinheiro — e até mais que barras de ouro.

O sistema era inovador, e resolvia os problemas das criptoexperiências anteriores. Era confiável, auditável, escalonável, mas não resolvia o principal desafio: a moeda não valia absolutamente nada. Nem meio centavo. Um zero, redondinho e absoluto. Na prática, poucos meses depois, o bitcoin já existia, mas sem reserva de valor.

Quando tudo parecia que ia acabar em pizza… foi exatamente isso que aconteceu. Em 21 de maio de 2010, Laszlo Hanyecz, um programador americano ofereceu ฿10 mil para quem lhe comprasse duas pizzas. A proposta beirava o absurdo, já que ninguém nunca havia feito qualquer transação real com a moeda. Tão absurdo na verdade que, naquele dia, ninguém topou o negócio. Foi apenas na manhã seguinte que, após insistência de Hanyecz no tópico de discussão, um usuário britânico comprou duas pizzas para o programador em troca da criptomoeda. Assim, foi definida a primeira taxa de câmbio baseada em um bem físico: ฿ 10 mil valiam, naquele momento, US$ 40 (ou duas pizzas de calabresa). Como em qualquer transação bitcoin, o registro é aberto e disponível para qualquer usuário. Para ver a compra histórica, veja a carteira virtual que recebeu o valor.

As pizzas originais que deram o pontapé inicial no valor da criptomoeda (Foto: Arquivo Pessoal)

No fechamento desta matéria, o bitcoin é negociado, cada um, a US$ 8,25 mil. Se fossem compradas hoje, as duas pizzas custariam R$ 295 milhões. Por este preço, é bom que elas venham com queijo extra. “Eu queria simplesmente comprar algo real com o bitcoin”, explicou Lazslo. Entretanto, engana-se quem pensa que este foi o jantar mais caro do planeta. O que hoje vale milhões, em 2010 não passava de um punhado de protocolos criptográficos.

Foi o programador e seu comprador que deram o pontapé inicial na reserva de valor da moeda, o conceito pelo qual se sabe qual o preço de alguma coisa. Naquele momento ele nem imaginava, mas estreava uma das principais tendências econômicas do século XXI. “É o primeiro registro fidedigno de compra e venda de bitcoin”, relata o economista Fernando Ulrich, autor de Bitcoin — A moeda na era digital.

Negócio da China

Sem precisar de conta no banco, RG ou CPF, o bitcoin nunca fez distinção para ninguém. Sem fazer perguntas, as transações não envolvem qualquer tipo de identificação do negociante, são rápidas e muito mais baratas. Transacionar bitcoins é simples: basta ter uma carteira virtual, um endereço eletrônico onde ficam armazenadas as moedas. Embora ela não exista fisicamente, o saque pode ser realizado praticamente em qualquer moeda oficial. Para isso, basta transferir o valor da carteira para uma exchange, um tipo de casa de câmbio virtual onde a moeda é vendida por dólares, reais, euros ou qualquer outra unidade de valor padrão.

Podendo ser enviada para qualquer lugar do mundo quase livre de taxas e de maneira anônima, o bitcoin ganhou fama mesmo foi pelo seu principal utilizador naqueles primeiros anos: o Silkroad, maior mercado de drogas do mundo. Hospedado na Deep Web, uma parte da internet escondida sob camadas e camadas de criptografia, o Silkroad operou entre 2011 e 2013, e movimentou anualmente US$ 22 milhões, principalmente em contrabando de produtos ilegais e tráfico de heroína e LSD. Segundo definiu o senador norte-americano Charles Schumer, “É uma loja completa de drogas ilegais que representa a tentativa mais descarada de vender drogas online que já vi. É anos-luz mais descarado do que qualquer outra coisa.”

Silk Road movimentou millhões de dólares em BTC durante três anos (Foto: Divulgação)

Os pagamentos no Silk Road eram todos feitos em BTC atrelados ao dólar americano. O preço dos produtos variava de acordo com o câmbio e popularizou a moeda de uma forma bastante duvidosa. “No começo, chamavam o bitcoin de moeda do crime online”, conta Ulrich. Ele é um dos principais nomes do bitcoin no Brasil, e ganhou fama entre os adeptos com um canal na plataforma de vídeos YouTube sobre a criptomoeda. Após o FBI acabar com a festa e mandar Ross William Ulbricht, o dono do site, para uma temporada de vida inteira na prisão, em meados de 2013, novas comunidades de venda começaram a se organizar em torno da moeda que fazia TED’s bancários internacionais parecerem piada de mau gosto. O bitcoin começou uma caminhada em direção ao topo que impressiona especialistas do mercado financeiro. Sem uma agência reguladora ou um governo para controlá-lo, o bitcoin ganhou as graça de especuladores profissionais e amadores, atrás de lucro rápido e expressivo. Considerada um ativo de altíssimo risco devido a sua volatilidade, a criptomoeda saltou dos R$ 634 em 1 de janeiro de 2015 para os atuais R$ 29 mil, uma valorização de mais de 4.500%.

O lado negro da força

“Não desliga não, nós estamos com a sua esposa” Esta foi a frase escutada por Rocelo Lopes, principal minerador de bitcoin do Brasil, no último dia 26 de abril. “Nóis não quer real porra nenhuma, nóis quer é nas moeda, nas criptomoeda, entendeu?” diziam os sequestradores, que pediam 240 mil Zcash e 900 mil Monero, duas outras criptomoedas semelhantes ao bitcoin. “O valor era absurdo, achei que fosse trote”, explicou o empresário à Folha de S. Paulo. A quantia exigida pelos sequestradores era próxima dos R$ 115 milhões. Ao ligar para sua companheira, caixa postal. Uma, duas, três vezes o telefone não completou a chamada, até que os sequestradores novamente telefonaram. Começou a negociação. Quatro dias depois, com valores na casa dos R$ 5 milhões, a Polícia Civil de Santa Catarina estourou o cativeiro na Zona Leste de São Paulo. O crime chamou atenção nos fóruns especializados nas criptomoedas, por ser o primeiro ataque físico onde o objetivo da extorsão era a obtenção de moedas virtuais.

Departamento de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil de Santa Catarina estoura cativeiro onde esposa de empresário era mantida refém (Foto: Divulgação/Polícia Civil SC)

Outro caso de crimes envolvendo criptomoedas foi a onda de ataques via ramsomware, um tipo de vírus de computador que bloqueia o acesso de dados da memória interna. O vírus, chamado de wannacry (Vai Chorar, em trad.) atingiu 200 mil computadores em 150 países.O vírus exigia o pagamento de bitcoins para a liberação das máquinas, e atingiu centenas de empresas e órgãos públicos, como o servidor central do sistema de saúde pública do Reino Unido e alguns ministérios no Brasil. Ao todo, os hackers embolsaram US$ 142.361,51 em poucas semanas. Os bitcoins foram transferidos para diversas carteiras rapidamente, despistando o rastro dos bandidos. Ninguém foi preso, e não há suspeitas sobre responsáveis.

A privacidade é um valor fundamental para a criptomoeda. Tão importante que, até hoje, não se sabe quem é a pessoa — ou grupo de pessoas — que se escondeu sob a identidade de Satoshi Nakamoto naquele email em 2008. Ele se identificava como japonês, usava servidores de e-mail alemães e falava um perfeito inglês americano.

Assim como o seu criador, o futuro do bitcoin é um mistério absoluto. Em meio a inovações tecnológicas e popularidade em alta, será a moeda capaz de deixar de ser um mero ativo especulativo e se tornar uma moeda utilizável amplamente no dia-a-dia ou se mostrará apenas uma bolha, que quando estourar irá esvaziar cofres mundo a fora? Isso, só o futuro dirá. Compre uma pizza e aguarde os próximos capítulos.

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Arthur Rodrigues
Jornalismo Econômico UniRitter Fapa

Jornalista e chef da minha cozinha. Siga-me também no instagram @ar.thrr