Coletivos Anarquistas em Porto Alegre

Por Daniel Fagundes, Lucas Arruda e Bruno Quiroga

Iniciativas comerciais com ideais anarquistas começam a chamar a atenção em Porto Alegre. Segundo o Projeto anarquista “Para Mudar Tudo”, existem hoje na capital sete coletivos de iniciativas libertárias, como são chamados. São eles: Café Bonobo e Espaço Cultural Libertário, Conceito Arte, Solidariedade a Flor da Pele, Coletivo Até o Talo, Editora Deriva, Coletivo Cumplicidade e Editora Artesanal Monstro dos Mares. Há também o coletivo Germina que não é citado pelo projeto, mas segue as ideais anarquistas. E como trabalhar em um empreendimento com pensamentos anarquistas que são conhecidos por ser contra o sistema? Este dossiê entra em um mundo anarquista e busca compreender como ocorre esse fenômeno.

Falar com os coletivos que conseguimos foi uma tarefa difícil. Isso, também, porque durante a produção da reportagem, a Polícia Civil realizou a operação Érebo para combater um grupo suspeito de cometer mais de 10 ataques terroristas contra viaturas policiais, sedes de partidos políticos, delegacias, bancos, concessionárias de veículos e prédios públicos. De acordo com a Polícia Civil, o grupo composto por mais de 30 pessoas se auto intitula anarquista. Foram cumpridos 10 mandados de busca e apreensão em Porto Alegre, Novo Hamburgo e Viamão. Mesmo não tendo atingido todos os coletivos, alguns deles preferiram não conversar conosco.

A palavra anarquia vem do grego anarkhos, que significa “sem governantes”. Na prática, é uma filosofia política que busca a autonomia do homem, eliminando qualquer forma de governo, onde funções políticas são reduzidas a funções industriais e a ordem social se daria através de trocas e transações. Uma das suas forças é que a liberdade individual do homem deve prevalecer contra qualquer instituição dominante. E o mais importante: o indivíduo não deve ser sacrificado ao interesse geral ou justiça social.

Discordando de ideais políticos tradicionais, o filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon (1809–1865) foi o primeiro grande autor a se considerar anarquista. Em sua primeira grande obra “O que é a propriedade? ou Pesquisa sobre o Princípio do Direito e do Governo” (Qu’est-ce que la propriété ? ou Recherche sur le principe du Droit et du Gouvernement) de 1840, ele criticou problemas de uma economia capitalista, mas também era contrário a muitos pensadores socialistas da época que copiavam o coletivismo. O livro é considerado a primeira grande obra com ideais anarquistas e traz conceitos sobre o que seria uma economia anarquista.

Apesar das ideias de Proudhon sobre o que seria um sistema econômico anarquista, diversos autores discordam. Com isso muitas vertentes foram criadas e não ficou definido um padrão, mas algumas linhas de pensamento se destacam: Economia da Dádiva, Mutualismo, Coletivismo, Teoria Valor-Trabalho, Propriedade Coletiva e Auto-Organização.

A Economia da Dádiva considera como uma proposta radical para transformação do atual modelo econômico, ela baseia-se em antigas práticas comunitárias e na atribuição de valor através de opiniões subjetivas, buscando libertar-se da relação capitalista entre cliente e dinheiro. Assim, cria um novo modelo abundante, somado a um fortalecimento dos laços da comunidade.

Com algumas similaridades em relação aos coletivos anarquistas, o recente movimento da economia solidária também ganhou força pelo país na última década. Transformou-se no mecanismo de mudança social para diversas pessoas, assim como abriu portas para um novo modelo, diferente do habitual. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em levantamento realizado entre os anos de 2009 e 2013, a região Sul do Brasil contava com quase 4 mil empreendimentos que faziam uso da economia solidária, ficando atrás apenas do Nordeste, líder disparado do ranking à época, com cerca de 8 mil. Sudeste com 3.228, Norte com 3.127 e Centro-Oeste com 2.021 completaram a lista das cinco regiões brasileiras.

Apesar das diferenças dos modos de gestão, sendo, por vezes, modelos horizontais, os empreendimentos que aplicam a economia solidária se difundem por diversos segmentos do mercado, especialmente no ramo alimentício e agricultura familiar. De acordo com a pesquisa, em todo o território brasileiro, cerca de 7 mil empreendimentos eram baseados no modelo agrícola, mais que o dobro do segundo colocado da lista: o artesanato com 3,4 mil. Somados, os outros citados na lista, à época, somavam cerca 3,5 mil, totalizando os 15 mil compreendidos na listagem.

O coletivo Germina trabalha nesse sentido. O projeto, iniciado em 2016, segue ideais anarquistas e afirma que trabalhando em pequena escala e formando um senso de comunidade, o anarquismo pode ser organizado e funciona. Eles funcionam como um restaurante-café e possuem estrutura sem patrão e sem empregado, com responsabilidades e trabalho iguais, sem exploração de ninguém. Seu principal pilar é o veganismo. Por isso acreditam e lutam pela igualdade de espécies e a libertação humana e animal.

Restaurante Germina. Foto: Reprodução/Facebook.

De acordo com o Sindicato de Hospedagem e Alimentação de Porto Alegre (SINDHA), são 3149 restaurantes licenciados em Porto Alegre. Desses, 20 são veganos. O coletivo Germina é um deles. O projeto trabalha com um sistema chamado “Sem Preço”, o cliente paga o quanto achar justo pela refeição. Daniel Silva, um dos nove integrantes do coletivo, diz que essa é uma maneira de fazer uma ruptura nas estruturas sociais. “Não nos é possível uma sociedade onde a pessoa precisa ter uma quantia ‘x’ de dinheiro para entrar por uma porta, ainda essa porta sendo de um lugar que serve comida. Então o sem preço é para quebrar com essa dinâmica, para também tirar o nosso poder de cobrar por aquilo que a gente faz e de distribuir essa responsabilidade”, afirma.

É impossível viver sem dinheiro e disso o Germina sabe. Daniel conta que eles não são movidos pela ganância de ter mais dinheiro para poder comprar mais coisas, mas sim por suas ideias. O dinheiro serve para suprir necessidades que são possíveis de outra maneira.

Livros e artigos do coletivo Monstro dos Mares. Foto: Reprodução/Site Oficial.

A relação da editora Monstro dos Mares com o dinheiro é influenciada pelos pensamentos de um dos maiores símbolos da Anarquia no mundo, o espanhol Buenaventura Durruti. Ele participou do assassinato do Arcebispo de Salamanca e lutou na Guerra Civil espanhola contra as forças do General Franco. Durruti não escreveu livros, nem contribuiu diretamente com a Teoria do Anarquismo, mas até hoje é um dos maiores símbolos do movimento. Sua história rendeu vários livros e até um filme chamado “Buenaventura Durruti, anarquista”, de 2000. Quando perguntados sobre o que fazem com o dinheiro, a Monstro dos Mares responde “Nós fazemos mais livros com o dinheiro dos livros. É isso”.

O destino do dinheiro no Germina é explicado pelo próprio coletivo (pode ser visto na imagem abaixo). O processo de divisão busca atender as necessidades básicas de cada um e não gerar desequilíbrio entre as partes. Primeiro, eles usam para pagar as contas regulares do local como aluguel, impostos, luz, água e gás, e compram os insumos para fazer os alimentos durante o mês, além de possíveis emergências. No final do mês é feito o fechamento financeiro. Com a quantia que sobra em mãos, é realizada uma reunião para fazer a partilha do dinheiro. “Sentamos, os nove, em volta de uma mesa e a gente bota a quantia que sobrou no meio da mesa. A gente faz um processo que chama ‘pilha de grana’. Então, cada um pode fazer qualquer movimento com aquele dinheiro. Para qualquer pessoa e para si, e pode desfazer o movimento podendo falar, ou não, sobre seu movimento. Não é obrigado a falar”, explica Daniel.

Divisão dos valores recebidos pelo coletivo Germina. Imagem: Reprodução/Facebook.

A intenção dos coletivos é quebrar paradigmas. Mudar a forma em que as pessoas se relacionam entre si e com a sociedade. “Queremos criar a consciência de quem tem mais paga mais e quem tem menos paga menos. Isso pode mudar em cada indivíduo com o passar dos dias e dos anos. Hoje eu posso estar bem financeiramente, amanhã posso não estar tão bem e eu contribuir conforme minhas possibilidades e meu senso de corresponsabilidade”, acredita Daniel. As diferentes vertentes de pensamento possuem muitas características em comum e até se confundem, mas com um objetivo principal: promover alternativas ideológicas e econômicas diferentes para o padrão capitalista atual.

RELATÓRIO

Daniel — Entrevista com Daniel Silva, do Germina, e coletivo Monstro dos Mares. Dados do portal anarquista “Para Mudar Tudo” e SMIC. Pesquisa sobre Anarquia, Proudhon e Bakunin, além dos termos.

Lucas — Trecho da Economia Solidária. Dados do IPEA.

Bruno — Dados do SINDHA e da Economia da Dádiva.

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