O obituário do jornalismo já foi escrito

Igor Nishikiori
6 min readOct 4, 2015

--

Sair com jornalistas nestes tempos sinistros tem sido um pouco como se encontrar com um doente terminal que sabe que seu fim está próximo e que não lhe resta muita coisa a fazer senão esperar que o universo dê um basta em sua agonia. Ninguém sabe ao certo quando será o derradeiro suspiro da profissão, mas ele virá com certeza e será um duro golpe contra todos nós.

Os últimos anos têm sido de pura tensão e de más notícias nas redações – pelo menos para nós, que somos a parte mais fraca e descartável deste sistema. Quem sobreviveu aos passaralhos está em estado de alerta máximo e já traçando um plano B para o dia fatídico. O derradeiro fechamento enfim chegará e as luzes serão apagadas e o jornalismo descansará em um merecido sono eterno.

Parece um discurso pesado e catastrofista demais, mas não conheço ninguém que espere algum outro destino para a carreira. Ou meus amigos são pessimistas profissionais ou é a realidade que não tem ajudado. O fato é que a crise demorou, mas bateu, e ainda estamos no começo da queda.

O obituário do jornalismo já foi escrito. Uma criação coletiva confeccionada por múltiplas mãos, a começar pela própria lógica esquizofrênica do sistema. A busca por cliques, unique views e compartilhamentos — tudo em nome de bons anunciantes — criou uma receita nefasta que transformou o jornalismo no pior da televisão comercial, com seu entretenimento barato e conteúdo mequetrefe.

É óbvio que o jogo tem que ser jogado, mas esse vício da indústria por métricas de audiência é exatamente os sapatos de concreto que têm afundado o meio. Quando qualquer amenidade pode ser notícia, a notícia perde relevância. Deixamos de vender informação para oferecer passatempo para os incautos. Colunistas sagazes faturam alto arremessando polêmicas aos indignados como quem joga uma bolinha de tênis para o cachorro buscar. E eles sempre vão buscar.

Dessa esquizofrenia vem a grave questão dos profissionais mais criativos e experientes estarem saltando para fora do barco e sem expectativa de que voltarão algum dia. Conheci grandes repórteres que simplesmente desistiram da área porque não conseguiam mais ter prazer no que faziam. E como mão de obra barata é o que não falta, qualquer um que se adaptar ao esquema é considerado apto ao serviço.

A questão é que toda essa espiral de erros e problemas direciona o método de trabalho para um modelo engessado e problemático, numa mecânica baseada no máximo de cliques em menor tempo e esforço possíveis. Apuração e texto bem escrito são meras perfumarias. Infelizmente muita gente embarcou de cabeça nesse esquema e faz disso sua única ambição, como se fosse o guia que os levará a um futuro promissor.

Ora essa, óbvio que não. É uma ilusão achar que o reconhecimento virá de uma chamadinha bem bolada. Porque logo ela será esquecida e uma outra tomará seu lugar para ser consumida, e assim será, num loop infinito. O mundo não é tão fácil quanto parece, crianças.

O jornalismo não está morrendo, ele está se matando lentamente. É um viciado dormindo na sarjeta imunda, mas que é orgulhoso demais para admitir que tem um problema. Seus dias de glória já se foram e poucos ainda ligam para isso.

Aqueles que ainda não desistiram são os que realmente se importam com o que está acontecendo. O jornalismo se tornou um velho amigo que admirávamos, mas que hoje não passa de um vagabundo que vive em uma realidade paralela. A verdade é que o mundo mudou, meu caro, e você está comendo poeira. O ofício está obsoleto, e já faz mais de uma década. A internet fez com que qualquer pessoa tenha voz, e essas vozes mostraram ser mais sensatas do que aquelas que ostentam um diploma na parede. Enquanto o repórter está correndo feito louco atrás da informação, a internet já escreveu a história.

É triste constatar que para se aprofundar num assunto sem esbarrar em mentiras e manipulações você tenha que deixar de lado os grandes jornalões, as revistas semanais e os portais da internet, e entrar de cabeça na coletividade da rede. É nesse ambiente, nas discussões no Twitter, no Reddit e na imprensa alternativa que os dois lados aparecem, com fontes e especialistas prontos para derrubar falsas premissas e dar um novo sentido aos acontecimentos. Essa deveria ser a função do jornalista, mas a ele é negado esse direito. As entranhas do meio estão podres e carcomidas.

Os grandes chefões da imprensa pensam que ainda é possível manipular impunemente. Por um lado estão certos, mas já não é tão simples como antes. A internet é capaz de rebater qualquer distorção em questão de segundos, chutando de prima antes mesmo da bola quicar no chão. Entrar na fila da Justiça já não é a única maneira de garantir seu direito de resposta. Uma postagem nas redes sociais e alguns compartilhamentos e seu alcance pode ser maior que o de um jornal decadente.

Ora, alguns vão dizer, mas a manipulação ainda continua como um trem seguindo velozmente rumo ao horizonte. E responderei: sim, é verdade. Em 2013, a Polícia Federal flagrou um helicóptero de propriedade da família Perrella transportando 450 kg de pasta base de cocaína em uma fazenda do Espírito Santo. O que se seguiu foi um festival de non-sense, com presos em flagrante sendo soltos, delegados desistindo de investigar, promotores não querendo acusar e jornais deixando o assunto por isso mesmo. E quando alguém tentou levantar o assunto, uma juíza chegou e censurou.

É muita loucura, um lance meio kafkiano, estar diante de estruturas fortes e cínicas e não poder fazer nada contra isso. Aí se vê que a eterna busca pela verdade é um mero discurso bonito que a gente decora na faculdade ou vê em alguma peça de ficção. Quando o repórter perde sua razão primária de existir, que é questionar as coisas, é melhor fechar a banca. É por isso que ninguém mais acredita na imprensa e nem em qualquer outra instituição, e voltamos ao tempo do linchamento, da barbárie e da boataria sem limites.

Ser jornalista nos dias de hoje tem sido como morar em uma área de risco: você sabe que uma hora ou outra tudo vai vir abaixo e não há absolutamente nada que possamos fazer. Haverá um dia depois da tragédia, mas não sabemos como ele será.

Tudo isso soa muito triste, mas acredito que não é o fim da história. O jornalismo vai morrer, sim, mas certamente dele nascerá algo novo. Todos nós vimos quando a indústria fonográfica foi acuada com o surgimento do MP3 e muito sangue foi derramado pelo caminho. Mas, se olharmos o mercado hoje, até que as coisas não estão tão ruins quanto se alardeava naqueles tempos loucos.

Lógico que muitas lojas quebraram nessa brincadeira e os CDs físicos já não são mais a mina de ouro de outrora, mas por outro lado vimos um público mais exigente emergir e se tornar peça fundamental dentro do fluxo de caixa das gravadoras. É um consumidor que banca vinis e está atrás da tal experiência de ouvir música, de entender um disco como uma obra completa e com todas as frequências que um analógico pode oferecer. É a realização do sonho interrompido do SACD. Ao mesmo tempo, o público em geral ouve músicas pelo Spotify e pelo Youtube em troca de algumas propagandas, ou por uma assinatura, e todos saem ganhando.

O que eu quero dizer é que a crise do jornalismo vai obrigá-lo a se reinventar. Há um público ávido por informações relevantes, capaz de consumir até porcarias conspiratórias sem sentido em troca de explicações minimamente racionais para seus medos, frustrações e angústias. Mas também haverá sempre o público a fim de entretenimento de fácil consumação. O lance é saber como contemplar os dois, como fazer o analógico e o digital coexistirem pacificamente, sem que um engula o outro.

Plataformas como Patreon ou Apoia.se podem ser um caminho, mas vejo elas como uma trilha alternativa, tal qual uma gravadora independente: elas funcionam bem, mas com certas limitações. Às vezes surge um Arcade Fire, mas a grande maioria fica soterrada, longe dos olhos do grande público.

O fato é que essa questão deve necessariamente passar pelas próprias empresas jornalísticas. Elas precisam ver que o sistema de audiência por cliques é uma bomba-relógio prestes a mandar tudo pelos ares, e desarmá-la o quanto antes. O Buzzfeed e a Vice sacaram isso e implantaram um modelo de negócios baseado em publieditoriais que sustentam suas demais atividades. Eles também fragmentaram suas operações em múltiplas marcas para contemplar públicos específicos, como a Motherboard e a Noisey no caso da Vice, e diversificar sua receita de anunciantes. É verdade que elas são novatas e estão abrindo espaço sem ter muito a perder, mas pelo menos elas apontam para uma rota alternativa.

O lance é que as coisas devem ficar nebulosas por muito tempo ainda. Mas tenho esperança que acharemos um rumo e certamente, quando isso acontecer, o jornalismo que conhecemos já estará morto e enterrado e faremos uma missa de sétimo dia para ele. Ficaremos tristes e chocados, é claro, mas no momento seguinte estaremos fazendo piadas sem parar.

--

--