Lígia de Oliveira
Jornalismo não é  crime
5 min readNov 20, 2018

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A pintura que condena

Com a liberdade de imprensa recuando a níveis nunca vistos há três décadas, a Turquia, considerada a maior prisão do mundo para profissionais de comunicação, ocupa a posição 157 no Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa 2018, publicado pela ONG Repórteres Sem Fronteira. Ser jornalista em um país como esse é um grande desafio, principalmente para quem é mulher.

Zehra Doğan é umas das jornalistas que está presa desde 2017, condenada por “espalhar propaganda terrorista”.

Doğan é fundadora e editora da agência Jinha, um dos mais de 100 meios de comunicação fechados desde o fracassado golpe militar de julho de 2016.

Em 2015, foi ganhadora do Prêmio de Jornalismo Metin Göktepe , em homenagem ao jornalista que morreu sob custódia policial na Turquia em 1996. O prêmio foi pelo trabalho de Zehra Doğan sobre as mulheres yazidis que escaparam do cativeiro do Estado Islâmico.

Contexto

Nusaybin, localizada na província de Mardin, é uma cidade que esteve sob toque de recolher de 24 horas devido à guerra entre o exército turco e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) em 2016.

Localização Província de Mardin I Reprodução: Wikipedia

Há décadas em confronto, o PKK tinha como objetivo original a criação de um Estado independente. Passados os anos, hoje pede por autonomia ao povo curdo. Enquanto que Turquia, Estados Unidos e Europa consideram o grupo uma organização terrorista, os civis julgam a guerrilha PKK como grande aliada tanto para a independência do Curdistão, como para a luta contra opressores e o Estado Islâmico (EI).

Desde 2016, a jornalista vivia e fazia reportagens em Nusaybin. Porém, durante o período de conflitos, ela raramente conseguia sair de seu apartamento. Logo, informava-se conversando por telefone com outros residentes da cidade, observando os confrontos de suas janelas e ouvindo tiros.

Devido à “prisão domiciliar” e da ampla censura da mídia turca nas reportagens, a jornalista decidiu se concentrar na pintura.

Twitter de Zehra

Navegando pelo Twitter, encontrou uma foto que representava a vitória do exército turco e a derrota do PKK. Todavia, a artista enxergava vidas que foram destruídas e civis que foram forçados a fugir por causa da guerra.

Diante disso, pegou seus pincéis e recorreu à pintura como forma de protesto. Abaixo, é possível ver a fotografia original e, ao lado direito, a intervenção artística.

Foto original tirada por autoridades turcas I Pintura de Zehra

Decisão do tribunal

A obra foi compartilhada por milhares de pessoas, até chegar no governo turco. Em 2 de março de 2017, a segunda maior corte criminal da Turquia condenou Doğan a 2 anos e 10 meses de prisão por postar uma pintura nas mídias sociais que mostrava a destruída cidade curda de Nusaybin, com bandeiras da Turquia sobre as ruínas.

Ainda que sua prisão seja inconstitucional, uma vez que viola os artigos 26 e 28 da República da Turquia, que garantem a liberdade de expressão e uma imprensa livre, respectivamente, a pintura foi um exemplo de propaganda terrorista, segundo o tribunal:

“O réu fotografou uma cena em Nusaybin e pintou bandeiras turcas em prédios destruídos. É muito claro que esta pintura é contra as operações que foram conduzidas como resultado da política de barricada e trincheira da organização terrorista PKK, que, sem dúvida, inclui violência e força.” (trecho da decisão do tribunal)

Zehra é acusada de ter tirado a foto e de ter adicionado bandeiras turcas na pintura, embora as bandeiras já estivessem lá.

“Eles me deram uma penalidade de prisão por tirar a foto das casas destruídas e colocar bandeiras da Turquia nelas. Mas não fui eu quem fez isso, foram eles. Acabei de pintá-lo ”, disse Zehra após a decisão.

Sem acesso a tela e tinta na prisão, Doğan cria trabalhos em sobras de papel com “tinta” que ela produz de alimentos, bebidas e seu próprio sangue, diz o porta-voz do grupo #FreeZehraDogan, formado por amigos e colegas anônimos baseados na Turquia, Europa e Estados Unidos.

Repercussão internacional

Em novembro de 2017, o artista dissidente chinês Ai WeiWei publicou uma carta em solidariedade ao caso de Doğan, traçando paralelos entre a repressão chinesa e turca da expressão artística.

Carta de Ai WeiWei I Reprodução: KEDISTAN

Na esquina das ruas Bowery e Houston em Nova York, o artista de rua britânico Banksy produziu o rosto da jovem curda atrás de barrotes em uma parede de 30 metros, rodeado por uma série de palitos riscados como os que são feitos por prisioneiros para contar seus dias em cativeiro. “Libertem Zehra Dogan”, se lê na parte inferior do mural.

Mural de Bansky

Ao saber da intervenção artística, Zehra encaminhou uma carta clandestina a Bansky, relatando as condições difíceis dentro da prisão, os conflitos internos do país e agradecendo expressamente pelo protesto em Nova York. A carta foi traduzida e publicada no Instagram do artista.

“Eu estou escrevendo esta carta ilegal para você de uma masmorra que tem uma história de torturas sangrentas …”, ela começa.

Ela explica que está proibida de qualquer comunicação (envio de cartas e telefonemas) e, por isso, estava escrevendo e entregando a carta de foma clandestina.

“Vimos sua arte sobre Nusaybin e sobre a prisão. Em um momento de pessimismo, seu apoio trouxe a mim e aos meus amigos uma enorme felicidade. Longe de mim e do nosso povo, foi a melhor resposta ao regime desonesto que nem consegue tolerar uma pintura.”

Mobilização online

A mobilização online já reuniu diversas pessoas, organizações e ativistas em prol da liberação da jornalista. No Twitter, o movimento é norteado pela #FreeZehraDogan.

O movimento incentiva ainda a pressão às autoridades turcas. A partir do site Voice Project, é possível encaminhar e-mails para o Presidente da Turquia, Tayyip Erdogan, e para o Ministro da Justiça, Abdulhamit Gul.

Reprodução: site VoiceProject

A luta pela liberdade de expressão e de imprensa não pode parar. Jornalismo não é crime. Jornalismo não é terrorismo. Jornalismo é o fundamento da liberdade.

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