A silenciada luta de Daphne

Novembro de 2018. Treza meses desde o assassinato brutal da principal jornalista investigativa de Malta e ativista anti-corrupção, Daphne Caruana Galizia.

Matheus Gomes
Jornalismo não é  crime
4 min readNov 25, 2018

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Com 53 anos, ela foi assassinada às 15h do dia 16 outubro de 2017. Enquanto ela se afastava da casa de sua família em Bidnija, uma bomba colocada debaixo do carro foi detonada. A polícia explicou que a bomba era muito forte e que o veículo, um Peugeot 108, ficou despedaçado e espalhado pela área.

Mais de um ano depois, a justiça por seu assassinato continua indefinida. O caso está parado e existem grandes preocupações quanto à independência, imparcialidade e eficácia da investigação das autoridades maltesas. Apesar de suas reportagens sobre corrupção nos níveis mais altos do governo, nenhum político foi colocado como suspeita. Sua família teme que aqueles que ordenaram sua morte nunca sejam levados à justiça. A impunidade pelo assassinato de jornalistas impulsiona um ciclo de violência.

Ao longo de seus 30 anos como jornalista, Caruana Galizia enfrentou inúmeras ameaças, sofrendo assédio online e off. Sua casa foi incendiada; os cães de estimação de sua família foram mortos. Ela também enfrentou ameaças legais para impedir sua denúncia: na época de sua morte, 43 casos de difamação estavam pendentes contra ela, muitos de políticos de alto escalão.

Protestos clamam justiça para Daphne Caruana Galizia. Foto: Darrin Zammit Lupi/Reuters.

Aos 18 anos, ela foi detida por fazer parte de protestos contra o governo. Assim, em 1987, descobrindo o jornalismo como forma de praticar o ativismo dela. Através do jornalismo investigativo, ela nunca deixou de “enfrentar” governos autoritários.

Durante os anos 90, ela trabalhou como colunista no Sunday Times of Malta e no Malta Independent. Neste último ela atuou como editora. Em texto do The Guardian, colegas da jornalista a descrevem: “uma pessoa meticulosa e trabalhadora, embora nem sempre uma colega fácil de lidar”. Até o seu assassinato, ela escrevia uma coluna semanal para as edições diárias e dominicais do Malta Independent.

Mas sua contribuição jornalística mais importante foi seu blog, que ela comandava sozinha. Rapidamente se tornou o site de notícias independentes mais popular de Malta. Seus leitores, incluindo seus adversários, seguiam assiduamente sua luta contra a corrupção, a fúria e o crime. Todos sabiam que ela era aquela criatura rara em Malta — um dissidente que agia de forma independente de todas as autoridades, partidos políticos ou interesses financeiros. Ela recebeu mais histórias e denúncias do que qualquer uma das grandes organizações de mídia.

Últimas escritas publicadas no blog da jornalista. Foto: Matheus Gomes.

Quando Caruana Galizia divulgou a história de 2016 sobre as empresas panamenhas secretas que dois dos principais políticos do governo estabeleceram poucos dias depois de entrar no poder, ela atingiu o auge de sua influência. Ela então relatou que uma terceira empresa secreta no Panamá pertencia à esposa do primeiro-ministro, levando seu caso ao centro do poder político maltês.

Esta não foi a primeira vez que ela desafiou o poder: a jornalista denunciou casos de envolvimento de um comissário maltês da União Europeia com um suposto fraudador nas Bahamas. O caso levou à renúncia do comissário. Outro caso: Caruana Galizia investigou supostas conexões entre um banco em Malta, o Pilatus Bank, políticos do Azerbaijão e as principais personalidades do governo trabalhista maltês.

Mapa de Malta. Foto: Matheus Gomes/Google Maps.

O crime organizado, particularmente o contrabando de petróleo da Líbia, era um assunto frequente nas investigações da jornalista, especialmente durante os últimos 12 meses de vida. O principal alvo da Caruana Galizia no verão de 2017 foi Adrian Delia, líder do Partido Nacionalista desde setembro e, posteriormente, líder da oposição, a quem ela acusou de operar uma conta de cliente offshore para o proprietário maltês de várias comércios envolvidas em uma prostituição. Ele e outros políticos instituíram casos de difamação contra a jornalista depois de negar as acusações.

Detalhes da morte de Daphne em video feito por The Guardian.

Ultimamente, a Caruana Galizia não foi apoiada por nenhuma organização ou instituição. Sua independência era a coisa que ela mais valorizava. Seu assassinato chocou milhares de pessoas em seu próprio país e no exterior. O Papa Francisco mostrou sua solidariedade. A ONU, a Comissão Européia, o Parlamento Europeu e o Conselho da Europa expressaram sua condenação mais severa.

Os chefes de oito das maiores organizações de notícias do mundo, incluindo The Guardian, pediram à Comissão Européia que investigue seu assassinato e a independência da mídia em Malta. Parece que a luta da Caruana Galizia contra a corrupção e a favor da imprensa livre continuará após a morte dela com a mesma veemência que demonstrou quando estava viva.

Documentário produzido pela BBC conta o caso com mais detalhes.

Ela deixou seu marido, Peter Caruana Galizia, com quem se casou em 1985, seus três filhos, Matthew, Andrew e Paul, e seus pais.

Família da jornalista discursa pela primeira vez sobre o caso. The Guardian.

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