Quem são os jornalistas condenados à morte pela Coreia do Norte

A Coreia do Norte é o país com a menor liberdade de imprensa do mundo, segundo levantamento do Repórteres sem Fronteiras

Juliana Irala
Jornalismo não é  crime
9 min readNov 28, 2018

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O livro “A República capitalista da Coreia” nas prateleiras de uma livraria em Seoul, capital da Coreia do Sul (Foto: Ahn Young-Joon/Associated Press)

“Os criminosos não têm direito de apelação e a execução será levada a cabo a qualquer momento e lugar, sem procedimentos adicionais”. Essas podem ser exemplos de palavras usadas para anunciar uma condenação à morte nos 53 países ao redor do mundo que esse tipo de pena ainda vigora. Neles, enforcamento, injeção letal, apedrejamento, decapitação, cadeira elétrica ou fuzilamento são alguns dos meios utilizados para a execução.

E não são só os métodos que podem se diferenciar de uma nação para a outra; as causas também.

Em países como os Estados Unidos, por exemplo, homicídio qualificado ou ataques terroristas são os crimes que mais levam pessoas a serem sentenciadas à morte. Já em outros lugares do mundo não é preciso muito. Adultério e homossexualidade são crimes capitais no Irã. Já na China, a pena pode aparecer para casos de fraude fiscal, desvio de verba e tráfico de drogas com armas.

Para o país mais isolado do mundo, a Coreia do Norte, o ato de informar pode levar a pena de morte. E não é nem preciso botar os pés no país para ser sentenciado pelos tribunais de lá.

Aqui entram as palavras que abrem esta matéria. Não, elas não são meramente ilustrativas: saíram da boca do porta-voz do tribunal norte-coreano que, em agosto do ano passado, condenou dois jornalistas sul-coreanos à morte.

A causa? A publicação de resenhas sobre um livro britânico que conta como é a vida na Coreia do Norte, a partir de entrevistas feitas com desertores.

A edição coreana do livro, publicada no mesmo mês, foi resenhada por Yang Ji Ho e Son Hyo Rim. Mas eles não os únicos "criminosos".

Foram condenados também os diretores dos jornais Dong A Ilbo e Chosun Ilbo em que os jornalistas, respectivamente, trabalham. Os dois jornais são tradicionalíssimos na Coreia do Sul e somam mais de três milhões de cópias por tiragem.

Os jornalistas britânicos que escreveram o livro, no entanto, não tiveram seus nomes mencionados na condenação. São eles: James Pearson, da agência de notícias britânica Reuters, e Daniel Tudor, da revista The Economist. Ambos trabalham como correspondentes em Seoul.

O livro, publicado pela primeira vez em 2015, North Korea Confidential (“Coreia do Norte Confidencial” na tradução literal para o português), relata a crescente economia de mercado a que a população norte-coreana tem acesso — com os programas de televisão sul-coreanos e moda e filmes chineses ou norte-americanos levados por contrabando.

A edição coreana foi, assim, rebatizada para República Capitalista da Coreia, em um jogo de palavras que remete para o nome oficial do país: República Popular Democrática da Coreia.

Os jornalistas e os diretores dos jornais foram julgados à revelia, já que não estavam (e nem estiveram!) na Coreia do Norte. De acordo com o tribunal, os autores difamaram selvagemente a realidade da península, em uma “campanha sórdida de difamação”. As resenhas foram tidas como um atentado ao Estado e um insulto inviolável ao país e ao emblema nacional.

Pode até parecer roteiro de filme, mas de acordo com veículos de comunicação da Coreia do Sul, os condenados podem ser executados a qualquer momento.

O Ministério de Unificação sul-coreano também entrou em cena, condenando imediatamente a sentença emitida pelo tribunal da Coreia do Norte e afirmando que “Seoul tomará as medidas necessárias para garantir a segurança dos jornalistas”.

Por dentro da Coreia do Norte

O regime de Kim Jong Un tem o controle de tudo. Nas escolas, os professores andam em escoltas e tudo o que fazem e ensinam deve ser aprovado, monitorado e gravado. Com os alunos, o governo decide a escola em que irão estudar, as atividades que irão fazer e a profissão que irão seguir. Até os cortes de cabelo nos salões de beleza já estão previamente decididos.

A praça Kim Il-Sung é um poucos locais em todo o país que é possível fotografar sem vigilância (Foto: Michal Huniewicz)

E nem haveria muita inspiração para os cortes, já que não há revistas de moda por lá. Nem nenhuma publicação do tipo. Em todo o país, só há um jornal diário, que é editado por um órgão estatal.

Em solo norte-coreano, até a personalidade é questão de Estado. “É um regime que decide como os cidadãos devem se apresentar”, escreve Renato Alves, repórter do Correio Braziliense, em seu livro O reino eremita: um jornalista brasileiro na Coreia do Norte.

Botar os pés na Coreia do Norte é algo que poucos estrangeiros têm a oportunidade de vivenciar: o país abre as suas portas apenas quatro vezes por ano. Assim, tudo o que ficamos sabendo de lá é através de depoimentos ou de livros, como o escrito pelos jornalistas britânicos. Ou como o escrito pelo repórter brasileiro. Ou como o escrito por Suki Kim.

Com cidadania norte-americana, Kim nasceu e cresceu na Coreia do Sul. Em 2011, foi até o país vizinho dar aulas de inglês na Universidade para a Ciência e Tecnologia de Pyongyang, a única privada do país. Passou seis meses disfarçada por lá, tomando notas que originaram o livro Without You, There Is No Us: My Time with the Sons of North Korea’s Elite (“Sem você, não há nós: meu tempo com os filhos da elite norte-coreana” em tradução literal), publicado em 2015.

Em relato escrito à BBC, a jornalista conta que a vontade de ir a Coreia do Norte surgiu por dois motivos. Profissionalmente tinha a frustração de não saber o que acontece de verdade por lá. Pessoalmente, a sua família foi separada pela Guerra da Coreia, que aconteceu entre 1950 e 1953.

“Eram adoráveis, enérgicos e curiosos”, escreveu Kim ao ser perguntada sobre a relação que criou com os alunos. A jornalista os retrata como os típicos estudantes de 20 anos que fazem piadas e falam sobre garotas o tempo todo. “Esse aspecto humano é um enorme contraste com o estilo de vida que lhes é imposto e ao qual estão continuamente expostos”.

Kim conta que os seus alunos nunca tinham ouvido falar de internet. Não conheciam nem o Taj Mahal, nem a Torre Eiffel, nem o Michael Jackson. Não tinham nenhuma informação sobre o que acontecia fora das fronteiras norte-coreanas.

Por lá, os alunos são tratados como soldados e nunca ficam sozinhos. Semanalmente, eles têm reuniões para informar sobre os professores e uns sobre os outros. A cada hora saem para marchar em grupos e são frequentemente lembrados sobre a grandeza do líder supremo e o ódio aos Estados Unidos.

Fora que o regime de Kim Jung Un não mede esforços em manter a guerra das Coreias viva na consciência coletiva da população. Exemplo disso foi a inauguração, em 2011, de um novo edifício do museu dedicado ao conflito entre os dois países.

Mas há alguns fragmentos da história que ficaram de fora das paredes do museu. Como o nome das 300 mil pessoas que faleceram devido a fome devastadora que atingiu o país na década de 1990, e que ainda deixa suas marcas.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mais de um terço da população norte-coreana está mal nutrida, sem assistência médica e sem saneamento básico. E o isolamento do país com o restante do mundo faz a população penar com a insuficiência de produtos agrícolas, devido ao clima rigoroso de inundações e secas.

Os conflitos diplomáticos e as sanções rigorosas fazem com que a Coreia do Norte tenha poucos parceiros. As ressalvas são a China e o Irã. Mesmo com as ameaças do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de parar todo o comércio com os países que fazem negócios com os norte-coreanos, o governo chinês resiste em aumentar a pressão contra Pyongyang.

Pequim até aderiu às sanções estabelecidas pela ONU que impedem a importação de carvão e outros produtos norte-coreanos, mas continua exportando petróleo e alimentos para lá.

Especialistas acreditam que Pequim teme uma mudança de regime na Coreia do Norte. A reunificação com a Coreia do Sul colocaria toda península perante a influência dos Estados Unidos e os soldados americanos estariam a um passo das fronteiras chinesas.

Apesar disso, não fica muito claro qual a verdadeira intenção da China. Ainda mais depois que a Coreia do Norte ignorou seus avisos de suspender os testes atômicos.

Mas Kim Jong Un não deve ser visto como o imprudente que gosta de aparentar ser. Muito pelo contrário. Com 35 anos, ele fortaleceu o seu poder com o partido e com todo o Estado, através de ações estratégicas e efeito dissuasivo que o mantiveram em pé de igualdade nos diálogos com os Estados Unidos.

No final das contas, Kim não precisa de mísseis como armas de ataque. O seu ataque mais fatal é a certeza que nenhum outro país quer pegar pra si a responsabilidade que um colapso de Pyongyang traria.

Talvez Kim realmente possa guardar os mísseis na gaveta. Mas o que tira o sono de muitos especialistas é a possibilidade de, mais cedo ou mais tarde, aparecer outro Kim, com ainda mais vontade de manter viva — e poderosa — a única ditadura comunista familiar do mundo.

Onde o jornalismo não tem vez

“Para os norte-coreanos, jornalismo é sinônimo de propaganda”, diz Jean Lee. De etnia coreana, ela foi a primeira jornalista norte-americana a ter a oportunidade de mergulhar fundo na Coreia do Norte. Lee foi chefe da equipe da Associated Press no país entre 2008 e 2013.

No tempo em que ficou por lá, a jornalista pôde visitar escolas, academias militares, unidades agrícolas, fábricas ou casas. E, apesar da estranheza em razão dos diferentes sistemas sociais e políticos, Lee sempre teve uma relação de muita neutralidade com os norte-coreanos. “A minha abordagem não era a estar em frente a personagens fictícios, mas sim cidadãos coreanos como eu, com muitas características parecidas com as minhas, tanto no modo de ser ou no humor", conta a jornalista.

Com os repórteres locais com quem trabalhou, a relação foi diferente. Por mais que pudesse ter confiança pessoal em cada um, confiar na informação recolhida com eles era outra história.

Isso porque, na Coreia do Norte, todas as “notícias” são positivas. Como se o país nunca tivesse sofrido com a fome ou com a pobreza. Como se os cidadãos se sacrificassem pelo seu líder com a mais pura boa vontade.

Aqueles autorizados a viver na capital, Pyongyang, têm de usar um broche que é de venda proibida. Há rumores que os broches podem ser encontrados ilegalmente na China (Foto: Michal Huniewicz)

Nesse cenário, o país se tornou o maior vácuo de informação do mundo.

De acordo com o levantamento feito em 2018 pelo Repórteres Sem Fronteiras, a Coreia do Norte é o pior país para a liberdade de imprensa. É a nação da conexão renegada, em que a generalização dos smartphones foi acompanhada de medidas que permitem o governo controlar a comunicação e os documentos transmitidos dentro da intranet nacional.

A ideia de jornalismo independente não existe na Coreia do Norte. Todas as rádios e emissoras de TV são controladas pelo governo. Ainda que as autoridades norte-coreanas venham demonstrando maior flexibilidade com a imprensa internacional, abrindo suas portas para que repórteres de outros países possam cobrir eventos oficiais, as restrições são enormes.

Trinta jornalistas de diferentes nacionalidades, convidados por Kim Jong Un para o cobrir o “desmonte” de um dos locais usados para testes nucleares, tiveram seu telefones “confiscados” via satélite, bem como os aparelhos que levaram para medir a radioatividade.

Fora que a agência central de imprensa, KCNA, é a única autorizada a fornecer informações oficiais aos outros meios de comunicação. O resultado é que sobrou poucos meios para realizar um trabalho investigativo de verdade.

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