Sobre fatwas e concursos de beleza

Fabiana Marsiglia
Jornalismo não é  crime
11 min readNov 27, 2018

“Eu acendi o fósforo” — como uma jornalista de moda deu início a uma onda de protestos na Nigéria e recebeu uma sentença de morte.

Isioma Daniel | Reprodução

“O que Mohammed pensaria? Em toda a honestidade, ele provavelmente teria escolhido uma esposa dentre uma delas”, escreveu a jornalista nigeriana de 21 anos Isioma Daniel, em 2002. O que era para ser um comentário descontraído em uma de suas primeiras matérias para o jornal ThisDay acabou mudando sua vida — e a de seu país. A frase despretensiosa foi o que provocou uma revolta religiosa no norte da Nigéria, que foi considerada um dos tumultos mais sangrentos da história do país.

Mas essa não foi a primeira vez que protestos religiosos aconteceram na Nigéria. Alguns anos antes do país se tornar independente do Reino Unido, em 1960, um motim religioso aconteceu na antiga cidade de Kano e durou quatro anos, ficando conhecido como o Distúrbio de Kano de 1953. Nos anos seguintes, diversos tumultos entraram para a história do país, como o massacre dos igbos em 1966, que originou a guerra civil entre a Nigéria e o Biafra, e as revoltas lideradas por Maitatsine nos anos 1980.

Reprodução Google Maps

A República Federal da Nigéria é um país localizado na África Ocidental, cuja população é de, aproximadamente, 174.507.539 habitantes. Sua capital é Abuja e a cidade mais populosa é Lagos. Entre 1966 e 1999, a Nigéria viveu um regime militar, que acabou quando um novo governo tomou posse, em 1999, por meio de eleições democráticas. O novo presidente Olusegun Obasanjo prometeu ao país — que passou a ter um modelo de república inspirado nos Estados Unidos — uma nova era de direitos civis.

Liberdade de imprensa

A imprensa nigeriana começou como uma das mais livres da África, mas o país acabou se tornando um dos lugares mais perigosos para se praticar o jornalismo no mundo, ocupando a posição 119 na Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa de 2018. Desde 2002, ano da revolta religiosa provocada por Isioma Daniel, o ranking é publicado anualmente. Na época, a Nigéria estava em 49° lugar, o que mostra que a liberdade de imprensa no país vem diminuindo desde então. A ONG Repórteres sem Fronteiras, que publica a classificação, diz que existe um “clima de violência permanente” no país.

Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa de 2018
Nigéria | Reprodução Repórteres sem Fronteiras

Metáforas ingênuas

Isioma Daniel | Reprodução

Isioma Nkemdilim Nkiruka Daniel nasceu em 1981, na Nigéria. Aos 17 anos, se mudou para a Inglaterra e estudou Jornalismo e Políticas na University of Central Lancashire. A jornalista se formou no verão de 2002, aos 20 anos de idade, e se mudou para Londres, mas logo decidiu voltar para seu país. Em uma série de textos que escreveu sobre sua vida para a CBC News, em 2004, Isioma contou que queria passar seu aniversário de 21 em casa, com sua família.

“A minha imaginação era cheia de metáforas ingênuas de que eu varreria para longe a corrupção da Nigéria. Eu realmente acreditava na força do jornalismo como o quarto poder. Na minha mente, o jornalismo africano era o que o jornalismo realmente era. Envolvia escrever artigos que o governo tenta suprimir, jornalistas sendo postos na prisão e outros recebendo bombas na caixa de correio. Por que eu queria voltar para o país? Acho que eu pensei que poderia fazer a diferença.

Em entrevista para um programa da BBC, também em 2004, Isioma revelou que, no começo, não queria ser jornalista. Seu sonho era estudar Literatura Inglesa e ser uma escritora. Ou professora. E ganhar o Prêmio Nobel. Mas sendo uma jovem africana e crescendo em um lar de classe média com bastante dificuldades, Isioma tinha outras responsabilidades. Seus pais ficaram felizes com a escolha do jornalismo e esperavam que sua filha fosse ter uma vida melhor no exterior. Porém, nas palavras de Isioma, a Nigéria estava uma bagunça e ela achou que, se ela escrevesse sobre o assunto, a situação do seu país melhoraria.

O Mundo nos seus Pés…

Isioma Daniel | Reprodução

Isioma Daniel conseguiu seu primeiro trabalho como jornalista de moda no ThisDay, jornal diário com a maior circulação em Lagos. No dia 15 de novembro de 2002, o editor do veículo telefonou para o celular da jornalista pedindo que ela escrevesse uma matéria que seria usada na capa da edição de final de semana do jornal. O assunto da reportagem: Miss World.

O concurso de beleza Miss Mundo daquele ano seria sediado na cidade de Abuja. No ano anterior, a vencedora havia sido a modelo nigeriana Agbani Darego. Entretanto, o evento estava causando controvérsia na Nigéria. Alguns meses antes, uma mulher chamada Amina Lawal havia sido sentenciada à morte por apedrejamento num tribunal islâmico, acusada de adultério. Algumas das participantes desistiram do concurso, como uma forma de protesto contra a sentença de Amina. No final, a condenação foi anulada, mas o concurso continuou cercado de polêmica.

A Nigéria era fortemente dividida entre o Norte muçulmano e o Sul cristão. A ideia de ter mulheres desfilando em vestidos curtos, principalmente no meio do mês sagrado do Ramadão, causou ira em parte da população muçulmana. Foi sobre isso que Isioma escreveu em seu artigo.

Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, em 2003, a jornalista contou que teve dificuldade em escrever mais de 600 palavras. Ela queria que o tom da matéria fosse leve, mas questionador. Um comentário específico sobre o profeta Mohammed foi adicionado de última hora. Ela achava engraçado que uma religião que encoraja homens a ter a maior quantidade possível de mulheres estava fazendo tanta oposição ao concurso de beleza. Isioma imaginou que a frase não seria levada a sério. Entretanto, a nigeriana se sentiu inquieta depois de completar o texto. Talvez fosse sarcástico demais. Talvez as pessoas não entendessem que ela estava tentando ser engraçada.

“Os muçulmanos pensaram que era imoral trazer 92 mulheres para a Nigéria e pedir-lhes para se deleitar com a vaidade. O que Mohammed pensaria? Em toda a honestidade, ele provavelmente teria escolhido uma esposa dentre uma delas.” — comentário de Isioma Daniel na matéria The World at their Feet…

Isioma imprimiu uma cópia do artigo e entregou ao seu editor. “Certifique-se de ler”, ela falou. Alguns minutos depois, ela o relembrou. Ele leu algumas linhas. “Está bom”, ele disse. A jornalista voltou para casa se sentindo nervosa, mas sem saber o motivo. A matéria foi publicada naquele mesmo dia, 16 de novembro de 2002. Durante o resto do dia, Isioma descansou e se esqueceu do artigo.

Ninguém poderia imaginar o que estava por vir. No dia seguinte, domingo, a jornalista recebeu uma ligação de seu editor. Ele estava furioso e não parava de perguntar como ela teve a capacidade de falar algo tão insensível sobre o profeta Mohammed. Isioma só foi entender a dimensão do problema na segunda, quando o escritório do jornal em que trabalhava recebeu dezenas de ligações de pessoas indignadas com as palavras usadas em seu artigo. Para o público cristão, o que foi escrito pela nigeriana pode ser sido ignorado, mas os muçulmanos acharam suas palavras ofensivas e desprezíveis.

Os Tumultos de Kaduna

A aparentemente inocente frase de Isioma Daniel foi considerada heresia e desencadeou tumultos religiosos violentos, que deixaram mais de 200 mortos e mil feridos, enquanto dezenas de vilas foram destruídas e onze mil pessoas ficaram desabrigadas. Antes de tudo se acalmar, o concurso de beleza foi movido para Londres, na Inglaterra, as concorrentes voaram para longe do país e Isioma Daniel fugiu para o exílio com uma fatwa pronunciada contra a sua vida.

Terça-feira, 19/11/2002

O ThisDay pediu desculpas e fez uma retratação na primeira página do jornal.

Quarta-feira, 20/11/2002

O escritório do jornal em Kaduna, no norte da Nigéria, foi incendiado — é importante ressaltar que Isioma Daniel, na época dos conflitos, vivia em Lagos e não tinha nenhuma ligação com Kaduna. O chefe do departamento se escondeu. A jovem jornalista se sentia culpada.

Reprodução Google Maps

O editor-chefe e o presidente do conselho editorial do jornal pediram para a segurança do escritório não deixar ninguém saber que Isioma estava no trabalho e insistiram para que ela voltasse para casa. Eles aconselharam que ela se escondesse até o final do Ramadão. “Não fale com ninguém, apenas vá para casa, não é seguro continuar aqui”, eles disseram.

Isioma contou ao The Guardian que voltar para a casa parecia fugir. “Eu causei danos e não podia apenas ir embora”. Ela terminou seu último artigo para o jornal e escreveu uma carta ao seu editor pedindo desculpas. Por fim, foi para sua casa.

Quinta-feira, 21/11/2002

Foi quando os conflitos começaram. Isioma recebeu uma ligação dizendo que tumultos estouraram em Kaduna e muçulmanos estavam matando cristãos. Era perigoso sair de casa, pessoas estavam atrás dela. Em rede nacional, o sultão de Sokoto pediu que o povo tivesse calma e paz. Entretanto, líderes religiosos e o ministério de Abuja, capital da Nigéria, falaram que a jornalista tinha blasfemado contra o profeta Mohammed.

Segundo uma matéria do The Guardian, em 2002, quase ninguém em Kaduna — muçulmano ou cristão — parecia ter lido o artigo de Isioma. Poucos tinham opinião — ou, até mesmo, conhecimento — sobre o Miss Mundo. Só depois de quatro dias que as multidões muçulmanas furiosas de Kaduna se organizaram.

Sexta-feira, 22/11/2002

Na sexta, os tumultos começaram em Abuja. Isioma fez suas malas. Seu pai estava convencido de que ela não poderia continuar em Lagos. A jornalista recebeu um telefonema dizendo que a segurança do Estado queria vê-la. Disseram que não era nada sério e que ela não seria presa. Isioma não acreditou. Foi naquela noite que ela deixou a Nigéria. Temendo por sua segurança, a nigeriana foi para Benim, país vizinho.

Reprodução Google Maps

“Foi na sexta-feira que a minha culpa se cristalizou em raiva. E senti uma onda de indignação e fúria e eu suspeito que outros nigerianos também sentiram isso. Nada justificava um grupo religioso matando pessoas simplesmente porque eles consideraram um comentário ofensivo.”

A fatwa

Alguns dias depois, o governo islâmico de Zamfara, um Estado do norte da Nigéria, emitiu uma fatwa contra a vida de Isioma Daniel.

“Como Salman Rushdie, o sangue de Isioma Daniel deve ser derramado. É obrigação de todos os muçulmanos onde quer que eles estejam considerar o assassinato da escritora como um dever religioso”, disse o vice-governador de Zamfara, Mamuda Aliyu Shinkafi.

Isioma estava em um cibercafé quando ficou sabendo sobre a fatwa. Ela recebeu e-mails de amigos dizendo para não levar a situação a sério, porém não explicaram qual era situação. Foi aí que ela resolveu pesquisar seu nome no Google. “Eu tive que me mudar para diferentes lugares, porque tinham muitos nigerianos lá e eu fiquei preocupada que alguém pudesse me reconhecer”, ela contou ao The Guardian. A nigeriana revelou que foi nesse momento que ela percebeu que não teria como voltar para a Nigéria. Até então, Isioma tinha esperança de que pudesse voltar a trabalhar como jornalista no seu país. Mas, depois de ficar sabendo sobre a sentença de morte, ela percebeu que não tinha volta. “Eu acendi o fósforo sem nem saber”.

A fatwa causou discórdia tanto na Nigéria, quanto em outros países. Líderes cristãos criticaram a maneira que o país implementava a Lei Islã. Segundo matéria publicada pela BBC UK em novembro de 2002, o arcebispo Makinde culpou a violência testemunhada nos conflitos na introdução insensata da xaria (direito islâmico) em alguns estados do norte.

O governo nigeriano acabou denunciando a sentença de morte de Isioma Daniel como “inconstitucional” e “nula”. Latif Adegbite, secretário-geral do Conselho Superior para Assuntos Islâmicos da Nigéria, rejeitou a fatwa, já que a jornalista não era muçulmana e que o jornal se desculpou publicamente. Entretanto, Olusegun Obasanjo, presidente na época, colocou a culpa dos tumultos no “jornalismo irresponsável” praticado por Isioma.

Uma nova vida

Enquanto Samuel Rushdie — autor britânico de origem indiana cujo livro “Versos Satânicos” causou protestos ao redor do mundo por “satirizar” o profeta Maomé — recebeu reconhecimento e sucesso depois da fatwa contra a sua vida, a carreira de Isioma Daniel em seu país chegou a um inesperado fim. Ainda com medo, a jornalista buscou exílio na Europa, com apoio do Comitê para a Proteção dos Jornalistas e da Anistia Internacional.

“Eu não tinha a intenção de viver em nenhum lugar do mundo além da Nigéria. Eu seria enterrada lá. Eu dizia isso o tempo todo. Eu era completamente apaixonada por quele país, apesar do quão conturbado era, e eu amo aquele país pelo que ele me deu.” — Isioma Daniel.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados processou rapidamente a candidatura de Isioma para refúgio e a jornalista deixou Benim para a Europa. O primeiro país a aceitar seu asilo político foi a Noruega, onde ela continuou trabalhando como jornalista e teve uma vida normal.

“Agora eu estou tentando entender meu novo lar. Eu imagino se eu poderei escrever de novo. Nada de ousado e belo saiu da literatura africana desde os grandes dias de Chinua Achebe, Cyprian Ekwensi e Wole Soyinka. São os meus sonhos que me dizem que eu tenho um futuro. Se eu os perdê-los, eu sou um caso perdido.” — Isioma Daniel em entrevista ao The Guardian, um ano depois de se mudar para a Noruega.

Isioma Daniel na Noruega | Reprodução

Depois de cinco anos morando na Noruega, Isioma Daniel se mudou para Londres, onde trabalha com análise, planejamento, estratégia e design de conteúdo. Em seu site, não é mencionado nada sobre o fatwa e os tumultos de 2002. Graças ao exílio e aos órgãos de proteção que a apoiaram, Isioma teve a oportunidade de viver uma vida normal. Mas a censura contra o jornalismo a impede de voltar ao país que tanto ama. Jornalismo não é crime. Ao menos, não deveria ser.

A matéria original sobre o Miss Mundo escrita por Isioma Daniel foi retirada do site do ThisDay, mas pode pode ser lida aqui, em um site dedicado a homenagear a jornalista e outras mulheres que sofreram situações parecidas.

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