Com a saúde da população e da democracia em risco, 2021 será decisivo para promover pluralidade de vozes

Se por um lado a escalada de ataques contra jornalistas e comunicadores deve continuar no próximo ano; por outro, os setores articulados no enfrentamento desse cenário podem se ampliar e serem fortalecidos

Débora P
O jornalismo no Brasil em 2021

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Em 2020 testemunhamos autoridades públicas cruzando a barreira entre notícias falsas e notícias jornalísticas, em especial para desacreditar a imprensa, propagando dados e recomendações sem comprovação científica capazes de agravar os impactos da pandemia de Covid-19. Observamos desde ataques sexistas direcionados a mulheres jornalistas até o próprio presidente da República expressando o desejo de “encher a cara” de um repórter de “porrada’’. Também acompanhamos grandes grupos de mídia suspendendo a cobertura da agenda presidencial no Palácio da Alvorada, em Brasília, em meio a maior crise de saúde pública de uma era.

A ARTIGO 19 lançou, no fim de novembro, seu oitavo Relatório Anual que compila e analisa graves violações contra comunicadores em território nacional: foram registrados 38 casos de homicídios, tentativas de assassinato e ameaças de morte. Segundo a organização, os dados revelam que o Brasil manteve o patamar dos últimos anos, com uma pequena variação em torno da média histórica de 30 casos por ano. Cada um deles representa pessoas reais, com vidas, sonhos e trajetórias interrompidas ou gravemente afetadas.

O relatório indica, por um lado, a perpetuação de graves crimes, violências históricas e estruturais cujo objetivo é silenciar vozes que realizam denúncias e trazem outras perspectivas, desafiando de alguma forma o poder local. Além de jornalistas, comunicadoras/es populares, periféricos e comunitários viram, em 2020, essas violações serem intensamente agravadas, especialmente quando combinadas com as desigualdades de raça, etnia, gênero, classe e território que atravessam o país.

Por outro lado, neste ano foi possível conhecer de forma mais nítida os novos contornos de silenciamento e censura, que estão emergindo nos últimos anos pelo estímulo à polarização, à estigmatização da imprensa, a ataques em massa via internet e à desinformação da população — partindo, muitas vezes, do próprio poder público, como mostraram monitoramentos de diferentes organizações nesta frente (conheça alguns nesta compilação da Abraji).

Não houve recuo nem diante das crises agravadas pelo coronavírus: desde que foram confirmados os primeiros casos de Covid-19 no Brasil, houve ao menos 82 ataques a jornalistas e comunicadores que realizavam coberturas especificamente relacionadas à pandemia, mostrou o monitoramento da ARTIGO 19. Ou seja, esse movimento não cessou nem no momento em que a circulação de informações confiáveis faria toda a diferença para decisões individuais e coletivas, e que iriam delinear nossa resposta à pandemia.

Em 2020 veremos crescer o coro de vozes que tentam reverter a escalada de ataques.

No ano que está se encerrando, as análises e dados apontam para a combinação de antigas e novas formas de ataques a comunicadores, indicando uma tendência de deterioração do ambiente para o exercício da atividade e da liberdade de imprensa como um todo. Além disso, a história recente nos mostra que ações como silenciar e reprimir a pluralidade de vozes, atacar a liberdade de imprensa e dificultar a comunicação popular, periférica, comunitária e autônoma sempre estiveram associadas à emergência de períodos autoritários.

Não por acaso, no Brasil e em outros países os ataques à liberdade de imprensa e a comunicadores acontecem em um contexto de recrudescimento de discriminações, violências e violações de direitos fundamentais. São, muitas vezes, associados a discriminações racistas, machistas e LGBTQI+fóbicas. Constroem-se por meio de narrativas que buscam impedir a fiscalização do poder público e estimular o tensionamento da população. E emergem em um momento de crise institucional em que diversas vozes da sociedade civil fazem um chamado pela proteção das democracias.

Nada indica que os ataques vão cessar em 2021. Porém, à medida que dados, análises e relatórios, como os mencionados, permitem conhecer melhor essas dinâmicas e comprovar seus impactos, podemos esperar que seja crescente também o coro de vozes que se somam para tentar reverter sua escalada e conter seus impactos. Com isso, é possível esperar que haja mais espaço para alianças entre setores da mídia, da comunidade internacional, da sociedade civil, de movimentos sociais e de algumas esferas do poder público.

Ao longo de 2020, a ARTIGO 19 se somou a diversas organizações que cobraram o Estado em relação a sua obrigação de prevenir, proteger e processar ataques contra comunicadores e defensores de direitos humanos. Também lembraram que autoridades públicas possuem o dever de conter o fenômeno da desinformação, sobretudo não compartilhando notícias que saibam ou deveriam saber serem falsas, ou não usando a etiqueta ‘fake news’ indiscriminadamente para levantar dúvidas sobre a cobertura jornalística sempre que ela desagrada. Ainda de garantir um ambiente seguro, em todos os espaços, para mulheres comunicadoras, bem como de desconstruir estereótipos discriminatórios que perpetuam a violência contra as mulheres nos mais diversos ambientes, incluindo o profissional — como indica a nova resolução da ONU sobre a proteção de jornalistas, divulgada em 2020 com um amplo chamado às diferentes nações nesse sentido.

Esse é um momento especialmente importante para lembrar que o jornalismo se insere no campo da comunicação social — ou seja, carrega deveres e pode desempenhar um importante papel na defesa de vidas, direitos e futuros.

A deterioração do ambiente para o exercício da profissão prejudica o acesso à informação pública e a circulação de diferentes informações e opiniões. A naturalização de ataques e da desqualificação da imprensa, seja por ação direta ou omissão, coloca comunicadores em risco num país já marcado por violências contra esses profissionais. Como resultado, a capacidade de comunicadores de fiscalizar o poder público, algo essencial para proteger instituições democráticas e responder às crises no horizonte, fica em xeque. Assim, o direito de toda sociedade à informação é sistematicamente violado.

Em 2021, o jornalismo será ainda mais importante para a saúde da democracia e da população.

Mas é preciso sempre lembrar que, se por um lado, as violações cerceiam e silenciam, por outro, a circulação de informações diversas, produzidas com responsabilidade e a partir das diferentes realidades vividas no país são um caminho sólido para enfrentar um cenário adverso. Nesse contexto, a atividade de jornalistas, comunicadores e comunicadoras se torna ainda mais importante quando pensamos que 2021 será um ano decisivo para a saúde da democracia e da população no Brasil e no mundo.

No seu relatório mais recente sobre essas violações, a ARTIGO 19 teceu ainda, a diferentes setores do poder público, uma série de recomendações, que são fruto de uma sólida agenda, construída a muitas mãos, pela garantia da liberdade de imprensa. No próximo ano, esse conjunto de recomendações, caminhos e práticas deve ser resgatado, atualizado e fortalecido mutuamente por organizações da sociedade civil, pela população e pela própria mídia.

Para responder ao complexo desafio de enfrentar esse ambiente de deterioração das liberdades de imprensa e expressão, estabelecer essas alianças no próximo ano será fundamental. Também será preciso cobrar daqueles com poder de decisão — como as grandes empresas de mídia e as de redes sociais — o compromisso com uma agenda de promoção de direitos humanos, da segurança de jornalistas e comunicadores e da pluralidade de vozes. Também com o enfrentamento ao racismo, ao machismo e outras formas de discriminações nas suas próprias estruturas. E de exigir ainda mais intensamente que os deveres do Estado sejam cumpridos, buscando a responsabilização de representantes que mobilizem a máquina e os recursos públicos para promover violações.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2021. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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Débora P
O jornalismo no Brasil em 2021

Jornalista e coordenadora de comunicação da ARTIGO 19 Brasil e América do Sul de 2018 a 2020.