Em 2021, o jornalismo negro e periférico será (a) chave

Em resposta ao olhar limitado e simplificador da imprensa corporativa, o jornalismo negro e periférico ganhará mais força partir do fortalecimento de uma relação de confiança entre comunicadores e territórios

Pedro Borges
O jornalismo no Brasil em 2021

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O jornalismo periférico e negro é uma ferramenta importante de conexão entre a notícia, o mundo, o bairro e as pessoas que vivem nestes territórios criminalizados pelo Estado e pelo jornalismo desenvolvido pela imprensa corporativa no Brasil.

O jornalismo e a comunicação produzidos por pessoas negras e periféricas ganharam mais credibilidade durante a pandemia da Covid-19 e os problemas vividos pelo país em 2020. Mas não é de agora que comunicadores de territórios vulnerabilizados são fontes confiáveis de informação. Comprometidos com a transformação social, com o fim das desigualdades e com os direitos humanos, essas pessoas caminham, vivem e transitam pelas periferias dos grandes centros urbanos. É dessa vivência que vem a sua credibilidade.

A relação de confiança entre comunicadores e territórios é construída principalmente a partir do contato cotidiano e direto. Se um desses profissionais divulgar uma “fake news” ou publicar algum conteúdo mal apurado, ele será questionado no dia a dia pela comunidade, quando for comprar pão na padaria ou ao mercado. Os leitores e jornalistas têm um vínculo de confiança, de famílias que se conhecem, de pessoas que se cruzam e encontram há anos ou até décadas.

O jornalismo produzido pela imprensa corporativa, comprometido com a construção de agendas políticas pró mercado, recuperou fôlego neste período. Grupos de comunicação que viviam sob ataques, e ainda seguem nesta toada, retomaram parte da credibilidade diante do público. A partir do ponto de vista do jornalismo local, esse cenário, contudo, pode ser provisório.

Porque a imprensa corporativa muitas vezes se limita a olhar para as periferias para reportar casos de violência e criminalizar esses territórios. Jornalistas desses veículos de comunicação, que em geral mal sabem circular pela cidade onde vivem, cobrem as periferias como uma zona homogênea, sem respeitar as singularidades de cada território.

O olhar do jornalismo é, de maneira geral, um reflexo da política de estado para esses territórios em todo país. Há ausência total no que diz respeito a direitos, mas a presença em massa no momento de repressão.

Enquanto isso, o canais, coletivos, grupos, agências de comunicadores e jornalistas negros e das periferias alteraram o tom da produção jornalística no país. E mesmo com limitações de infraestrutura, passaram a desenvolver conteúdos hard news, com informações em primeira mão para as comunidades locais. Esses grupos mantiveram o seu DNA: a produção de reportagens e pautas aprofundadas e de denúncia. Mas também passaram a investir na circulação de informações e notícias sobre o dia a dia das pessoas. O resultado foi uma aproximação ainda maior entre profissionais e seus territórios.

Em 2021, a experiência de coletivos negros durante a pandemia pode inspirar o surgimento de outros grupos.

Em 2021, a experiência positiva de coletivos de comunicadores negros e das periferias durante a pandemia pode inspirar o surgimento de outros grupos de jornalistas (ou não) nestes territórios. Pois o respeito às particularidades de cada região e a confiança entre o público e esses produtores de informação foram fundamentais para a circulação da notícias de qualidade, que, em última instância, foram decisivas para a sobrevivência dessas pessoas neste ano que termina. No ano que vem, a informação bem feita e distribuída pode ter um impacto ainda mais transformador na vida dessas coletividades.

O trabalho das agências de notícias Alma Preta e Nós, Mulheres das Periferias é um exemplo de como a conexão entre o jornalismo e a população pode transformar a realidade de territórios periféricos. Esses grupos comprometidos em cobrir a realidade a partir das perspectivas de raça, gênero, classe social e territórios, desenvolveram, ao longo de 2020, o projeto “Curvas das Periferias”, um boletim semanal com a atualização dos casos de Covid-19 nos bairros de periferia da cidade de São Paulo, com foco naqueles mais atingidos pela doença. O material permitiu informar em primeira mão as pessoas com dados precisos e fundamentais para a vida cotidiana: o desenvolvimento da pandemia nestes territórios.

Experiências parecidas aconteceram em outras partes do país. O coletivo de comunicadores Step Evolution Crew e a Associação de Moradores de Três Carneiros, do Recife, decidiram utilizar uma bicicleta com uma caixa de som para informar as pessoas do bairro sobre a Covid-19. No Rio de Janeiro, no Complexo do Alemão, o Gabinete de Crise levou à favela informações sobre a pandemia com banners, grafites e carros de som.

Em São Paulo, além de informar, a agência Alma Preta se mobilizou para entregar 3 toneladas de cestas básicas na Brasilândia, zona norte da cidade e um dos territórios mais atingidos pela Covid-19. É com ações como essa que o laço já existente entre jornalismo e comunidades se fortalece. Afinal, apesar de importante, notícia não enche a barriga de ninguém.

Essas ricas experiências de jornalismo vão ganhar protagonismo no próximo ano. Essa conexão, agora mais fortalecida entre comunicadores e seus territórios, deve se estreitar ainda mais em 2021, com o desenvolvimento de mais materiais de comunicação focados em informar o público. Veremos o fortalecimento de uma produção de notícias com respeito e entendimento das singularidades de cada território, diferente de um jornalismo pasteurizado, construído em escala industrial, que nada dialoga com esses espaços. É essa notícia que constrói uma relação de parceria entre o público e os produtores da informação.

A conexão entre comunicadores e seus territórios deve se estreitar ainda mais em 2021.

Essa ação é fundamental para o jornalismo em si enquanto instituição. Porque além de muitas vezes apresentar uma visão estreita da realidade das periferias, a mídia corporativa deverá continuar a sofrer ataques por parte de representantes do governo federal e de setores mais conservadores da classe média, o que pode ajudar a fazer ruir o laço criado com o público durante a pandemia. Nesse cenário, as mídias negras e de periferia devem ganhar ainda mais força e credibilidade com diversos públicos. Ou seja, no próximo ano, o jornalismo enquanto profissão deverá e muito ao trabalho desenvolvido por comunicadores comunitários de territórios vulnerabilizados.

A experiência de 2020 pode inclusive impulsionar a criação de novas mídias em 2021 devido à percepção da importância da informação para enfrentar processos agudos de uma sociedade, como a crise do coronavírus. Grupos espontâneos foram criados para enfrentar a pandemia, como o Gabinete de Crise do Alemão, e podem se formalizar e constituir novos grupos e coletivos de comunicação. Jovens e outras pessoas que perceberam a importância da informação de qualidade para a vida também podem se mobilizar para articular novos grupos.

As pessoas desses territórios sabem que a pandemia foi um problema gritante entre os demais existentes, entre eles a violência policial. A cobertura desenvolvida por esses grupos em 2020 pode servir de inspiração para a produção de notícias sobre violações naturalizadas nesses territórios, caso da ausência de saneamento básico e das péssimas condições de saúde.

O teórico John Downing desenvolveu uma pesquisa sobre o que ele denomina de mídias radicais. São grupos com diversas características, entre elas, o pequeno porte, a agilidade e o compromisso com a ruptura da ordem dominante. Essas mídias, que não tentam se aproximar da noção da isenção ou imparcialidade jornalísticas, conquistam a confiança das comunidades por serem objetivas, técnicas e reportarem os fatos com qualidade para esses territórios.

Em 2021, essas mídias estarão mais robustas e poderão desenvolver aquilo que John Downing descreve como uma “esfera pública radical”, diferente daquela produzida pela imprensa corporativa, capturada pelos interesses do grande capital. Serão esses grupos os responsáveis por fortalecer o jornalismo, informando com qualidade os desertos de notícia e, consequentemente, ajudando a desenvolver um país diferente, menos desigual e menos violento.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2021. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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Pedro Borges
O jornalismo no Brasil em 2021

Co-fundador do Alma Preta, jornalista do Profissão Repórter, integrante da Rede de Jornalistas das Periferias e da Coalizão Negra por Direitos