Jornalismo compassivo: e se a saúde emocional dos repórteres virar prioridade nas redações em 2021?

Jornalistas exaustos, deprimidos, ansiosos, sobrecarregados e insones narram um mundo atravessado por essa paisagem emocional: em 2021, veremos a saúde emocional dos jornalistas e das redações no centro da pauta

Guilherme N Valadares
O jornalismo no Brasil em 2021

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Quando a jornalista espanhola Mar Cabra recebeu o prêmio Pulitzer por integrar a equipe responsável pela investigação “Panama Papers”, ela se sentia vazia por dentro. Cabra atuava como editora de dados do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, em inglês). Pediu demissão após entrar em burn out, durante o que muitos poderiam considerar um auge profissional. O colapso emocional de Cabra é parte de uma lista cada vez maior de casos entre jornalistas.

Muitos de nós estão como ela, exaustos. Entre sobrecarga profissional, salários reduzidos, uma cultura de silêncio emocional das redações, ataques institucionais, ameaças e pandemia, sobram causas para o cansaço.

Jornalistas exaustos, deprimidos, ansiosos, sobrecarregados e insones vão narrar um mundo atravessado por essa paisagem emocional. Não há objetividade capaz de impedir essa osmose. Isso impacta negativamente a saúde emocional de todos nós e da sociedade como um todo. Não é coincidência que tanta gente desistiu de acompanhar as notícias. Segundo o Digital News Report 2019 do Reuters Institute, 47% das pessoas percebem o jornalismo como muito negativo. Estudos acadêmicos sugerem que 80% a 100% dos jornalistas vão enfrentar ao menos um evento traumático relacionado ao trabalho em suas vidas, com muitos enfrentando exposição repetida a situações de trauma ou injúria moral — em especial aqueles cobrindo crises humanitárias.

Em 2021 vamos deixar de apenas falar sobre nosso cansaço.

2021 será o ano no qual vamos deixar de apenas falar sobre nosso cansaço, para nos dedicarmos a como transformar essa realidade, na prática. Isso vai envolver uma mudança de cultura profunda, enfrentar os efeitos nocivos do machismo e racismo nas redações, assim como a estruturação de políticas, comitês, metas, métricas e treinamento emocional em larga escala.

“Estou recuperando e me reconectando ao meu propósito ao longo dos últimos três anos. E também pensando muito em por que entrei em burn out”, Mar Cabra explica na sexta e última parte da série especial de podcasts sobre saúde mental no jornalismo do IJNotes. “Mais ou menos um ano depois de publicar o 'Panama Papers', fiquei esgotada e não vi outra opção senão largar o emprego para encontrar o que me deixava feliz.”, diz Cabra, que contou com a ajuda de Kim Brice, especialista em redução do estresse por meio do cultivo da atenção plena e ativista pela liberdade da mídia, para restaurar sua sanidade e alegria de viver.

Desde então Cabra e Brice juntaram forças no projeto “The Self-Investigation”, um programa online de treinamento para jornalistas interessados em reduzir o estresse, cultivar equilíbrio emocional e autocompaixão. Mais de 200 jornalistas ao redor do mundo já foram treinados nas turmas realizadas esse ano, com aulas em inglês e espanhol. O plano é aumentar esse número ano que vem.

Esse não é um esforço isolado. “The Self-Investigation” é parte de uma onda crescente de conversas sobre saúde mental e jornalismo. Marco Túlio Pires, diretor do Google News Lab Brasil, afirma que eles estão “comprometidos e investidos nessa frente para 2021. Bem estar, saúde mental, equilíbrio emocional… todos esses termos e discussões vêm ganhando força globalmente em nossa indústria. Um jornalismo de qualidade precisa de jornalistas saudáveis. Se a gente não coloca a saúde mental dos jornalistas como um pilar fundamental, não estamos cumprindo adequadamente nosso dever de lutar pela democracia.”

Afinal, como anda a saúde emocional dos jornalistas?

Nada bem.

“Há uma certa insalubridade em relatar e estar em contato direto com aquilo que de mais aflitivo acontece no mundo, sem ter condições de olhar pra dentro. Esse assunto foi relegado por muito tempo, associado a uma fraqueza, a uma fragilidade, a uma noção de que pessoas que buscam isso não teriam as qualidades necessárias para serem jornalistas. Ainda há muito preconceito e estigma”, afirma Marco Túlio Pires, do Google News Lab.

Ainda não temos estudos nacionais ou internacionais que se debruçaram com a profundidade necessária nessa pergunta. Mas há sinais. Uma pesquisa da FENAJ descobriu que 61% dos jornalistas reportaram aumento da ansiedade e do estresse durante a pandemia. O Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT) da USP realizou uma pesquisa sobre o impacto da pandemia que também levou em conta a dimensão da saúde mental. Na população em geral, 6 em cada 10 pessoas afirmavam lidar com um distúrbio emocional em 2019, segundo pesquisa do Instituto PDH / Zooma Inc. Talvez o número esteja maior hoje, durante a pandemia. Em uma profissão de notório estresse, é razoável esperarmos disso para pior.

Não à toa, vimos especiais sombrios sobre o tema na Columbia Journalism Review, no HuffPost Brasil, no The Wire (Índia) e no Journalist’s Resources da Harvard Kennedy School, dentre outros. De modo geral, todos retratam uma situação crítica, influenciada pela precarização da profissão, sobrecarga crescente, pressão pelo uso ininterrupto das redes sociais como parte do trabalho e uma cultura de silêncio nas redações quando o assunto é saúde mental. Transbordam relatos traumáticos.

Uma representação visual do risco da exaustão emocional em redações despreparadas | Imagem: Instituto PDH (Instituto de Pesquisa & Desenvolvimento em Florescimento Humano)

As pesquisas iniciais no campo, 20 anos atrás, eram esparsas e focadas em jornalistas alocados em zonas de guerra e demais coberturas envolvendo risco de vida. Felizmente, a quantidade de pesquisas acadêmicas no território vem aumentando, assim como a compreensão de que todos jornalistas necessitam de cuidado. Mas Anthony Feinstein, que estuda a saúde emocional de jornalistas em alta pressão há mais de 20 anos, acredita que falamos bem menos do que o necessário sobre isso.

“Depois dos profissionais de saúde, os jornalistas foram os que mais sofreram nesse ano pandêmico e problemático. No meu caso, por conta do Mundo Negro, eu produzo, mas também faço parte do grupo que mais morreu por conta da Covid. Ao mesmo tempo que discutimos a violência contra a população negra de forma histórica”, declara Silvia Nascimento, editora-chefe do portal Mundo Negro, veículo especializado na temática racial.

Organizações como Dart Center for Journalism & Trauma, Reuters Institute, International News Safety Institute eACOS Alliance (A Culture Of Safety Alliance) têm se esforçado para colocar lenha nessa discussão, o que parece estar surtindo efeito. O Dart Center publicou mais um de seus fantásticos guias, dessa vez com instruções sobre como cuidar da saúde mental das equipes expostas a situações críticas durante a pandemia.

Só esse ano participei de debates sobre saúde mental e jornalismo no Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da ABRAJI, no FIPP World Media Congress e no Newsgeist 2020. Em todos esses eventos foi sinalizado crescimento da pauta para as próximas edições.

Essa imagem com a descida do burn out costuma ressoar forte nas palestras — lembrando que, em caso de dúvida sobre seu atual estado, consulte um profissional | Imagem: Instituto PDH (Instituto de Pesquisa & Desenvolvimento em Florescimento Humano)

A conversa claramente ganhou fôlego nos últimos anos, mas o assunto segue indigesto, em especial para lideranças. Impera uma cultura de silêncio emocional, que mantém o tema como tabu. Existe muito medo de ser estigmatizado como um jornalista fraco, sem capacidade de “peitar o trabalho” ou “aguentar o tranco”.

Quais redações já estão fazendo algo a respeito?

A Reuters deu ao veterano Dean Yates o cargo de Head of Journalist Mental Health and Wellbeing Strategy por três anos. “Meu foco era em prevenção, trazer consciência e cultivar resiliência. Busquei criar um ambiente no qual jornalistas se sentissem confortáveis em conversar com seus gestores sobre estresse, trauma ou doenças mentais — desde a pressão diária do trabalho até burn out, depressão ansiedade e PTSD. Queria ajudar os gestores a entender melhor os desafios emocionais que suas equipes enfrentavam para que pudessem responder com empatia e apoio”, explica Yates. Lindo no papel, mas na prática enfrentou enorme resistência. Yates contou os aprendizados e frustrações vividas no cargo nesse precioso episódio do IJNotes.

Na BBC Academy há materiais específicos sobre trauma e saúde mental. Mas com exceção do trabalho de Dean Yates na Reuters, não conheço outros esforços estruturados, profundos e que considerem todos os profissionais da redação, não se focando apenas nos jornalistas em zona de guerra ou cobertura policial, por exemplo. O próprio Yates afirmou que hoje preferiria voltar a cobrir guerra do que trabalhar na cobertura de acontecimentos diários envolvendo Twitter e demais redes. Ele enfatiza ser um erro achar que somente repórteres em zona de guerra necessitam de cuidados emocionais.

No Brasil, tive contato com iniciativas puxadas pela Énois Jornalismo, Folha de S.Paulo e pelo projeto Redes Cordiais. A Énois me convidou para realizar treinamentos na Folha de São Paulo — em iniciativa apoiada pelo Google News Lab — e também para uma turma de repórteres periféricos de sua rede. Conduzi alguns minicursos de equilíbrio emocional para jornalistas na Folha, com resultados bastante animadores e quantificados, o que me parece ser uma iniciativa pioneira em uma redação desse porte. A convite do projeto Redes Cordiais e do ITS, apoiados pelo Facebook Journalism Project, também ofereci aulas de equilíbrio emocional para jornalistas.

Após todos esses processos, noto como queixas comuns em diversas redações e entre freelas: a falta de reconhecimento, falta de transparência, falta de empatia, comunicação violenta, invasão das folgas e sobrecarga. Gastrite, insônia, transtorno de ansiedade, depressão, relação nociva com álcool, vícios variados, problemas familiares, disfunções sexuais e crises alimentares figuram dentre as consequências usuais. Nada disso é estranho a jornalistas calejados, como esse visceral relato de Luiza Bodenmuller nos mostra.

Precisamos impedir que os jornalistas colapsem. Não faz sentido algum continuarmos nos destroçando para fazer bom jornalismo. Nem sequer pelo prisma de negócios há lógica. Pois como nos mostra esse estudo da Delloite, cada dólar investido em saúde mental dá ao menos outros quatro de retorno.

Por onde começar o trabalho para cultivarmos redações mais emocionalmente preparadas e compassivas em 2021?

Sugiro o enfoque em três pilares: cultura, políticas e treinamentos. Todas as editorias devem ser incluídas no processo, e não só aquelas das coberturas ditas mais pesadas, como as de guerra ou crime.

A liderança deve abrir espaço formal para o assunto e, se possível, colocar recursos financeiros. Etapas básicas de diagnóstico (com pesquisas internas), sensibilização (palestras e rodas de conversa), aprofundamento (treinamentos) e estruturação de planos para longo prazo, com formação de um comitê de saúde emocional, estabelecimento de metas, métricas e protocolos são um percurso típico para iniciar a mudança.

Imagem: Instituto PDH (Instituto de Pesquisa & Desenvolvimento em Florescimento Humano)

Esse não é um problema apenas individual, é estrutural e interseccional

Chega a ser uma violência dupla fazer com que jornalistas sobrecarregados, por vezes liderados por editores sem treinamento emocional e mal pagos, achem que eles são o problema. Ações individuais são parte necessária do processo. Mas sem uma mudança cultural profunda, atravessada por um olhar crítico para questões como machismo, racismo, homofobia e o próprio modelo de negócios, me parece difícil alcançarmos redações nas quais saúde emocional seja uma prioridade.

Uma jovem mãe negra vinda da periferia terá dificuldades emocionais muito maiores em uma redação liderada por homens brancos solteiros, se é que ela consiga ser contratada. Alissa Richardson, premiada professora de jornalismo, abordou o impacto do racismo na saúde mental de forma cortante no quarto episódio dessa série no IJNotes. “Jornalismo com questões raciais adoece. Tenho estado no meu limite”, diz Silvia Nascimento, do Mundo Negro. “Para mim, a mídia hegemônica ainda tem grandes dificuldades em ver o corpo negro em outras narrativas e isso afeta muito jornalistas negros, sobretudo as mulheres. Outro fato que acontece, como Maju Coutinho disse uma vez, é reunir jornalistas negros só para falar sobre questões raciais. Por que não temos uma mesa de jornalistas para falar sobre política ou questões ambientais, por exemplo?”

“As mulheres carregam pressões adicionais, relacionadas a assédio, tanto moral como sexual, nas redações e no contato com as fontes. Precisam enfrentar uma sociedade patriarcal que não as beneficia. Além de sofrerem ataques machistas frequentes nas redes sociais, que contribuem para uma situação psíquica ainda mais pesada”, afirma Natália Mazotte, coordenadora de Jornalismo do Insper.

Como ajudar jornalistas a cultivarem mais equilíbrio emocional

Em 2013 recebi uma bolsa de estudos do programa “Jornalista de Visão”, pelo Instituto Ling, que me permitiu realizar uma investigação sobre a saúde emocional dos jornalistas, o impacto emocional que o conteúdo produzido por nós gera nas pessoas e, por fim, ferramentas de transformação para desenvolvermos mais equilíbrio emocional no cotidiano profissional.

A motivação para ingressar nessa jornada veio da dor, de sofrimentos vividos e causados. Já estive na ponta em colapso emocional mais de uma vez e também fui o gestor abusivo, catalisador de crises emocionais na equipe. Portanto, meu envolvimento com o tema nunca foi mera curiosidade teórica, estava marcado na pele desde o princípio dessa jornada.

Rodei diversos países para conhecer os fundadores e as sedes do jornalismo de soluções, do jornalismo construtivo e das narrativas restaurativas, sendo treinado em seus respectivos workshops quando possível. Passei cinco semanas em retiro, como parte de uma formação em equilíbrio emocional. Atravessei o cerrado brasileiro em uma expedição de aprendizado experiencial ao ar livre — enxergo a questão ambiental e nossa relação com a natureza como aspectos-chave para o futuro do planeta e para nossa saúde emocional. Mergulhei em leituras, conferências e diálogos aprofundados no campo. Como resultado, estruturei um treinamento em equilíbrio emocional para jornalistas e venho desenvolvendo uma perspectiva que chamo de jornalismo compassivo.

Jornalismo compassivo, uma investigação em curso

Jornalismo compassivo é uma resposta a um mundo que está sendo devorado por nós e pede urgência no fortalecimento da vida. Do modo como o elaboro hoje, seria assim definido: uma abordagem jornalística rigorosa, ética e construtiva, aplicável a qualquer meio ou forma narrativa. Toma a compaixão como ponto de partida e o florescimento humano, individual e coletivo, como destino.

Quando falamos em coletivo, tratamos da profunda interdependência entre todos os seres vivos e as sociedades. Trazemos um olhar cuidador, regenerativo, que nos ajude a deixar para as gerações futuras um mundo apto a prosperar por séculos e séculos, melhor do que aquele recebido por nós.

Nessa perspectiva, ação compassiva é raiz. A lente por meio da qual construímos nosso ofício enquanto jornalistas. Nossa rotina, a apuração, as escolhas de edição, de palavras, de imagens, a arte, a forma de publicação, a definição do modelo de negócios, o projeto editorial, o diálogo nas redes, todas as escolhas são atravessadas pela compaixão.

Ou seja, não há como falar em jornalismo compassivo sem cultivo de compaixão em nossas vidas pessoais. É central conhecer o sentido do termo (que não é dó, não é ser bonzinho ou ingênuo e também não é a simples empatia), teórica e vivencialmente.

O aspecto construtivo dessa abordagem se refere à definição proposta pelo “Constructive Journalism Institute”. A face da compaixão toma como base o “Compassion Institute”.

Sendo prático, estamos falando de repórteres mais autocompassivos e emocionalmente equilibrados. Conscientes das implicações emocionais envolvidas em fazer o que fazem e também do impacto emocional gerado pelas matérias nas pessoas. Na dimensão estrutural, teremos redações que sejam exemplos vivos de compaixão e saúde mental.

Um produto jornalístico que compreendo materializar essa visão é o documentário “O silêncio dos homens”, fruto de uma pesquisa com mais de 40.000 pessoas, no qual atuei como idealizador e líder executivo. É um projeto que foi sonhado, construído e segue sendo nutrido até hoje por uma ótica compassiva.

Naturalmente, é necessário um projeto editorial e uma redação minimamente alinhados com os valores e perspectivas delineados aqui para produzir esse tipo de jornalismo. Por isso espero ver (e apoiar) cada vez mais redações abraçando a saúde emocional e a compaixão no próximo ano.

Minha aposta para 2021: saúde emocional dos jornalistas e das redações no centro da pauta

A pandemia acelerou uma conversa inadiável.

Mar Cabra, dona de um Pulitzer e sem qualquer vontade de voltar a ser jornalista no momento, afirma que o principal aprendizado de sua jornada foi o mantra vindo de sua professora emocional:

“Você é tão importante quanto o trabalho.”

Arrisco dizer que somos ainda mais. Um jornalismo capaz de nos ajudar a solucionar os problemas mais complexos de nosso tempo pede jornalistas saudáveis, corajosos e compassivos. Nesse sentido, temos belas perguntas em aberto para 2021.

É possível cobrir o dia a dia das dores do mundo sem adoecermos emocionalmente? Dá pé produzir jornalismo de alto nível e de enfrentamento em uma redação que priorize saúde emocional? Quem serão os faróis da compaixão nas redações brasileiras? Quais ações podemos tomar para zelar por nossa saúde mental e quebrar essa cultura de silêncio no jornalismo? Qual jornalismo será produzido por redações emocionalmente equilibradas e compassivas?

São respostas a serem construídas por nós no ano que se aproxima.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2021. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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Guilherme N Valadares
O jornalismo no Brasil em 2021

Diretor de pesquisa no Instituto PDH (Inst. de Pesquisa & Desenvolvimento em Florescimento Humano). Professor de equilíbrio emocional. Fundador do PapodeHomem.