Jornalismo enfrentará encruzilhada entre transparência e proteção de dados

Força-motriz para abertura de dados, jornalistas também podem sofrer impacto de interpretações equivocadas da LGPD em 2021

Fernanda Campagnucci
O jornalismo no Brasil em 2021

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Transparência e proteção de dados pessoais são direitos complementares, mas tudo indica que devem entrar em rota de colisão em 2021. Os jornalistas precisam estar preparados para desfazer essa falsa dicotomia, distinguir os limites legítimos e defender ambos os direitos — essenciais ao exercício da profissão.

Brasil afora, das gestões municipais ao Executivo federal e em outros poderes, o baixo preparo para a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) deve se juntar à conhecida má-vontade de alguns setores da política em abrir informações. Resultado: em nome da LGPD, devem aumentar as negativas de acesso à informação, com justificativas evasivas e variações de “essa base de dados/documento/processo contém informações pessoais e não poderá ser fornecida”.

O poder sempre se beneficiou da invisibilidade e do sigilo para se manter alheio ao escrutínio público. Mas, na última década, tem se consolidado o entendimento de que algumas informações sobre indivíduos participantes da esfera pública são fundamentais para a democracia. O jornalismo precisa de CNPJs, CPFs (mesmo que com alguns caracteres ocultos), nomes e endereços para fiscalizar o poder, descobrir conflitos de interesse, jogar luz sobre redes de relações espúrias e de suas rachadinhas.

Nisso, está respaldado pela Constituição Federal de 1988. A própria LGPD diz, em seu artigo 2º, que a liberdade de expressão e de informação é um de seus fundamentos. No artigo 7º, parágrafo terceiro, está nítida a noção de que é possível tornar transparentes determinados dados pessoais, desde que prevaleça o interesse público.

Não é possível estabelecer regras gerais: pode ser legítimo abrir o CPF em determinado contexto (ex.: doações eleitorais), e proteger parcialmente com alguns caracteres em outros (ex.: auxílio emergencial). Em ambos os casos, considera-se importante que a sociedade possa conhecer a identidade dos beneficiários finais de recursos públicos ou de indivíduos que influenciam a política com recursos privados. Mas em muitos outros contextos (ex: usuários do sistema de saúde, estudantes das escolas públicas), faz mais sentido proteger os CPFs.

Na maior parte dos dados necessários para fiscalização de políticas públicas, a identificação completa de indivíduos não é mesmo necessária. Portanto, a evasiva com base na LGPD não pode ser aceita. Nesse caso, jornalistas devem demandar a abertura de dados com os devidos processos de anonimização previstos na lei. Datas de nascimento exatas podem virar faixas etárias, CEPs podem virar setores censitários, alguns casos podem ser agregados, nomes podem ser substituídos por outros identificadores únicos.

Essas decisões sobre o que abrir e como abrir serão tomadas no âmbito de cada órgão público. Interpretações e recomendações devem ser emitidas pela recém-instituída Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que deve ser foco de atenção. A nomeação de três militares entre cinco diretores da nova agência levanta dúvidas sobre como será o entendimento de eventuais conflitos.

O jornalismo pode ser a força-motriz para reverter retrocessos

Em 2021, a Lei de Acesso à Informação (LAI) completa dez anos de sua aprovação e avaliações sobre sua efetiva implementação serão muito bem-vindas. Os avanços foram muitos, mas ainda há dificuldades para fazer valer a lei, sobretudo em contextos locais — por exemplo, sistemas eletrônicos para protocolar pedidos inexistentes ou inoperantes, instâncias recursais não instaladas. Mas a principal lacuna é a transparência ativa de bases de dados sobre políticas públicas, prevista no artigo 8º da lei.

Com os esforços de cobertura da pandemia de Covid-19, o ano de 2020 ensinou que o jornalismo pode ser a força-motriz para reverter retrocessos de transparência e alavancar a abertura de dados. Aliado a iniciativas da sociedade civil, como o Índice de Transparência da Covid-19 da Open Knowledge Brasil, o jornalismo cobrou dos governos dados e informações sobre o contágio e o enfrentamento da pandemia.

Este foi um processo de abertura sem precedentes na área de saúde. Os sistemas de vigilância de doenças respiratórias, por exemplo, tinham o acesso bastante restrito. Os agravos de saúde, quando divulgados, eram limitados ao histórico, raramente em “tempo real”, como visto nesta pandemia[1]. Também vieram à tona de forma inédita dados — e suas incontáveis falhas — sobre a infraestrutura de saúde, existência e ocupação de leitos hospitalares. O aprendizado dessa cobrança deve ficar como legado, e precisa se estender a outros setores de política pública.

O ano de 2021 é propício para ampliar essa cobrança: começam os novos mandatos nas prefeituras municipais, muitos deles eleitos com a promessa de renovação. Catálogos contendo informação sobre todas as bases de dados existentes, planos de abertura de dados e repositórios são exemplos de instrumentos que devem ser cobrados em todos os níveis e esferas de poder.

Em 2021, dados não podem mais ser insumo apenas para o jornalismo de dados

A própria implementação da LGPD também deve ser pauta. É uma grande conquista para a sociedade. Mas, para evitar que seja usada como pretexto para fechamento de informações, deve ser exigida a máxima transparência sobre o tratamento dos dados. Relatórios de impacto à proteção de dados pessoais, políticas de segurança da informação, prevenção de ataques cibernéticos, eventuais doações e contratações de aplicativos e sistemas pelo setor privado devem ser assuntos incorporados a essa cobertura.

Em 2021, dados não podem mais ser insumo apenas para o trabalho do jornalismo de dados. Nessa encruzilhada em que há risco de retrocessos na transparência, é preciso fazer, cada vez mais, jornalismo sobre dados. Encarar a transparência e a proteção de dados como pautas é das maiores contribuições que o jornalismo pode dar para a defesa do espaço democrático.

[1] Sobre o tema, ver o painel “Saúde no Jornalismo e a Covid-19”, no Coda.Br 2020 https://www.youtube.com/watch?v=cnTix-J6GT4

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2021. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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Fernanda Campagnucci
O jornalismo no Brasil em 2021

Diretora-executiva da Open Knowledge no Brasil. Jornalista e pesquisadora em administração pública, já esteve à frente da política de transparência de São Paulo